Rafael Spregelburd é ator, dramaturgo e diretor de Spam. |
O músico Zypce produz uma variedade de sons cambiantes. |
Espetáculo visto no dia 30 de março de 2014, no Festival de Curitiba.
– por Luciana Romagnolli –
(Foto de capa: Nereu Jr)
Crítica escrita a partir da peça Wayqeycuna (Meus Irmãos), de Tiziano Cruz, vista na MITsp 2024.
É raro encontrar um trabalho com a sagacidade de Tiziano Cruz em Wayqeycuna (Meus Irmãos) para se situar entre dois mundos, sem perder de vista suas distinções e as delicadas relações que se estabelecem entre eles. A cultura popular e a arte institucionalizada. A pobreza e a elitização social. O trágico e a alegria. A morte e a aposta na vida. Cruz opera dobras que preservam a complexidade dos paradoxos que a sua criação artística envolve, mesmo que ouvidos menos atentos deixem escapar a tensão que ele está sustentando em cena.
Sozinho no palco, vestindo um macacão branco, ele se dirige à plateia de uma instituição de arte, em uma mostra internacional de teatro, apresentando suas origens: um artista vindo de um povo que sofre genocídio (os indígenas sul-americanos, no caso, do norte da Argentina) e de uma classe social à qual são negados os recursos materiais. Ele a nomeia diretamente: pobres. “Um pobre pode ser reconhecido por seus dentes. Eu tento, incessantemente, me camuflar como sendo de outra classe social”, diz.
Cruz afirma a distância entre esses mundos e o fato de que ela não se desfaz nas travessias que os agentes da arte contemporânea propõem ao pautar temas e artistas de contextos culturais adversos. Sem meias palavras, ele expõe ao público as condições de sua presença: “Sei que muitos estão aqui para ver quem é a pessoa da moda. Quem é o coya, o indígena que está na moda no teatro […]. Olhem meu corpo quebrado, quebrado, indignado, violado, agora podem me devorar com seus estômagos famintos. Comam e bebam de mim, este é o meu corpo.”
Esta última frase terá ressonâncias ao fim de sua apresentação, assim como todo esse posicionamento inicial está feito para a modalização do que se segue. E aí que parte do público se nega a saber o sabido, resiste a escutá-lo.
Cruz demarca a distância entre o que significa política na vida de quem vem de um contexto de pobreza e, digamos assim, não sem desconforto com essa nomeação, na da chamada elite cultural e intelectual de um país. Não se trata apenas de posicionamento social. Questão de vida ou morte.
Ele é didático ao falar das armadilhas do mercado quando a falta é da ordem material. “Sei muito bem que, muitas vezes, serei a mão de obra barata que sustenta o poder, porque esse foi e será o meu lugar. Em última análise, é isso que o Sul Global representa para o mundo. Para alguns, sou apenas um artesanato, um bem indígena, um produto regional, como os comprados pelos turistas […]”, ele continua, sustentando o desconforto e a contradição que é dizê-lo enquanto se apresenta nos contextos aos quais se refere.
Entretanto, a sustentação serve menos a uma posição cínica do que a uma certeza trágica. “Não se confundam, sou apenas um pobre fugitivo, que busca refúgio nas instituições de arte para não morrer. Não há metáfora aqui”, diz.
A imagem-síntese para a distância de que Cruz trata, para essa falha trágica contemporânea e anacrônica, é a boca. Um pobre se reconhece pelos dentes, afirma o artista. E não é preciso dizer mais quando vemos projetado o vídeo de um homem de traços físicos que se assemelham aos dele, um tanto mais velho, com apenas dois dentes a se entrever através da abertura dos lábios enquanto fala. A materialidade da pobreza insiste sobre os discursos.
Wayqeycuna é última parte da trilogia Tres Maneras de Cantarle a una Montaña, em que se tecem os fios que atam a história familiar de Cruz à dimensão pública, política e econômica do laço social. A primeira trazia a memória do pai à cena. A segunda, a da mãe (que faleceu no dia da apresentação vista para a escrita deste texto). A terceira, apresentada na MITsp, detém-se sobre a memória da irmã.
A morte dela, criança, é narrada como uma fábula de horror, na qual a violência é atribuída aos lobos das histórias infantis. “Tenho certeza absoluta de que se as estrelas pudessem gritar, elas o teriam feito naquela noite, mas só conseguiam brilhar mais e mais […] enquanto as mandíbulas de ódio por nossos corpos penetravam em nossa carne, fazendo o sangue escorrer pela vala. Um concerto de Guaypos nos acordou, e lá estávamos nós, com três lobos em cada perna […]”.
Cruz evidencia o tratamento inumano reservado a sujeitos cujos corpos revelam os traços da pobreza e da origem étnica não branca. A crítica e a poesia aqui não se excluem, elas se intensificam.
A intensa crueza poética conduz o espetáculo através da dor do luto até a celebração de uma partilha. Uma via que poderia ser vista como apaziguadora, como tantas vezes tem sido no teatro contemporâneo, não fosse aquele primeiro posicionamento crítico que o artista faz apontando o impossível de apagar de sua origem seja a qual destino chegue.
Foto: Luciana Romagnolli
Então, quando ele partilha o pão moldado em formas infantis com o público do Itaú Cultural, na avenida Paulista, este não é um ato a ser lido ingenuamente no discurso do “comum”. Há um contexto que nos solicita a considerar os ruídos silenciados para que essa cena aconteça. Dá o pão, o seu corpo, aos lobos.
Quanto do público, anestesiado, não o come sem querer saber de nada disso?
A distância está também entre o dizer e o escutar.
– por Felipe Cordeiro –
A frase que intitula esta crítica é atribuída ao costureiro Paco Jaumandreu no filme “Eva Perón: la verdadera historia”(1996), dirigido por Juan Carlos Desanzo. Jaumandreu foi o responsável por cuidar do guarda-roupas de Eva a partir do momento em que ela se torna a primeira-dama da Argentina. O diálogo entre o estilista e Evita (como era chamada por seus “descamisados”) pontua a forma como pessoas marginalizadas pela alta sociedade argentina eram vistas na primeira metade do séxulo XX: com extremo desdém e tentativas de invalidação de suas existências. Recorro à frase para introduzir o espetáculo dirigido por Marcial Di Fonzo Bo, a que tive a oportunidade de assistir em dois dias diferentes no Teatro Nacional Argentino – Teatro Cervantes, em Buenos Aires, no início de agosto. A obra traz dois textos teatrais de Copi apresentados em sequência, cindidos apenas por um entreato. São elas “El homossexual o la dificultad de expresarse” e “Eva Perón”.
Pouco conhecido no Brasil, Copi é a persona adotada por Raúl Damonte Botana (Buenos Aires, 1939 – Paris, 1987) para assinar seus trabalhos artísticos. Filho de pais vinculados à cultura, Copi viveu junto à família o exílio no Uruguai e posteriormente na França, onde se radicou em 1962. Foi um dos fundadores do movimento Pánico, juntamente com outros grandes nomes das artes como Alejandro Jodorowsky e Fernando Arrabal. Suas obras são centradas em um humor transgressor das normas vigentes, bem como em uma crítica despudorada das sociedades que lhe foram contemporâneas. Além de peças teatrais, escreveu também romances, caricaturas e outras formas de relatos. Copi morreu em decorrência da AIDS; no mesmo momento ensaiava, ironicamente, a peça “Una visita inoportuna”, texto em que o protagonista também morre vitimado pela doença. Copi costumava brincar que era tão transgressor que até na morte pela síndrome ele estrearia antes dos outros.
O primeiro ato, El homosexual o la dificultad de expresarse, apresenta a história das personagens Mãe e Irina, que discutem sobre as faltas da filha em suas aulas de piano. Elas vivem em uma Sibéria infestada por lobos, onde a temperatura oscila em torno de -40ºC. Por isso, a cenografia remonta diversas montanhas de neve de distintos tamanhos, delimitadas ao fundo por dois painéis cinzas formados pela junção de diferentes placas simétricas de metal. Durante o início da encenação, percebe-se uma atuação embasada em uma estética do grotesco com este cenário a princípio imaculado.
Os diálogos rejeitam a seriedade e criticam a razão pura, apresentando personagens sem leis, pudores e comandos. É o que podemos observar no diálogo em que Irina diz que o pai do filho que está esperando é sua própria Mãe:
Mãe: Não transamos há anos!
Irina: E no trem?
Mãe: Em que trem?
Irina: O único trem que tomamos foi há quatro meses, para vir à Sibéria.
Mãe: Mas estávamos algemadas!
Irina: Então talvez seja do tio Pierre.
Mãe: Como do tio Pierre?
Irina: Na Estação. Quando desmaiei e você foi buscar o conhaque na maleta.
Mãe: Não os deixei mais de dois minutos sozinhos!
Irina: Estou com vontade de ir ao banheiro, mamãe.
Mãe: Você não comeu nada e quer ir ao banheiro?
Irina: É para cagar o bebê.
Mãe: Tem vontade de abortar?
Irina: Sim.
Mãe: Vem que eu te ajudo.
[Esta e as demais traduções presentes nesta crítica são de minha autoria]
As personagens realizam o aborto, em uma cena mais humorística que aspirante à realidade. Porém, não se trata de um humor que está simplesmente a serviço do entretenimento. É uma comicidade que flerta com o terror (atribuído ao deus Pã na mitologia grega), ou mesmo com a crueldade do teatro de Antonin Artaud e o surrealismo presente nas vanguardas artísticas do século XX. Um humor que desestabiliza normas que são performadas reiteradamente em nossas sociedades, como a figura da mãe cristã que ama incondicionalmente seus filhos e o tabu existente em torno do tema do aborto.
Os novos personagens que vão se juntando às protagonistas (Senhora Garbo, Garbenko) sugerem que o medo que paira pela atmosfera da encenação tem relação direta com os conflitos entre a China e a União Soviética (lembremos que a peça original estreou em 1971). No entanto, não são fornecidas informações suficientes para que o espectador consiga situar os personagens em uma situação de causalidade explícita entre o contexto público e o privado. Talvez o principal efeito estético seja o de justamente zombar e expor ao ridículo a ruptura sino-soviética sem, contudo, deixar de evidenciar também as próprias incongruências de quem propõe narrativas que colocam essa história em cheque.
Mãe: Não estamos na Sibéria pelas mesmas razões, senhora Garbo.
Garbo: Isso não a impede de conversar comigo, suponho.
Mãe: Podemos falar sobre tudo que queira. As palavras não mudam o mundo.
O conflito inicial do texto, como já assinalamos, consistia nas faltas de Irina nas aulas de piano que fazia com a Senhora Garbo. Mas, com a chegada da professora Garbo, a encenação passa a girar em torno do amor existente entre ela e sua aluna, com a qual desejava fugir para a China, onde viveriam em paz, sem maiores repressões.
Mãe: Minha filha não é uma burguesa, senhora. Nós carregamos um passado sombrio.
Garbo: Também me operaram em Casablanca, senhora Simpson. Tenho um sexo de homem.
Mãe: Não é possível.
Garbo: Toque.
Mãe: E o oficial Garbenko?
Garbo: Me operaram aos dezesseis anos, contra minha vontade.
Mãe: Minha filha e eu mudamos de sexo por vontade própria, senhora. Agora, boa noite.
[…]
Garbo: Sua filha espera um filho meu.
O espetáculo ganha novos contornos rítmicos e cada vez mais escatológicos (com presença de sangue, cuspe, fezes, zoofilia etc). As personagens narram diferentes formas de sexo, tamanhos de “picas” e diversidade de penetração. Alguns recursos conferem imprevisibilidade à encenação e diversas modulações na transposição do texto dramático ao espetacular, como: a utilização de canções dos mais variados estilos; aparição de novos personagens (que entram, de supetão, chutando alguma das barras de metal do painel que compõe o cenário e entrando por elas); bem como tiros na tentativa de matar lobos – ou mesmo a representação desses animais mortos.
O primeiro ato não deixa o espectador em uma posição confortável, pois, ao mesmo tempo em que apresenta suas personagens de forma risível, ele também expõe as fraturas histórico-sociais que oprimem e precarizam esses corpos. Copi, que além de ter escrito o texto também atuou na montagem original, coloca em tensão muitas de nossas assertivas morais. Estar diante dessas imagens, como diria o filósofo Georges Didi-Hubermann, é estar diante do tempo. E essa nunca é uma posição fácil ou simplória, pois em cada imagem existem distintas temporalidades e discursos heterogêneos que não cansam de se chocarem entre si, seja promovendo sínteses ou mesmo reinflamando as discussões.
O ato se encerra com Irina cortando sua própria língua antes de embarcar no trem Transiberiano que a levaria à China junto com a Senhora Garbo. Naquela altura, já sabíamos que ela e Mãe não possuíam parentesco algum e que estavam na Sibéria escondidas de uma possível força repressiva. Já o motivo exato desse exílio forçado perde-se com a linguagem que se vê restringida pela impossibilidade da fala e pelo apagar das luzes do palco.
As cortinas se fecham e nelas se lê projetado: ESTE É UM ENTREATO. Uma personagem que se apresenta como Travesti e possui nítidos traços indígenas assume a cena do intervalo. Aos poucos o espectador entende que ela dá voz a Copi, a partir de recortes de seus textos literários e de entrevistas que deu ao longo da vida, seja comentando suas criações artísticas ou mesmo questões pessoais e familiares. As narrativas acentuam um interesse pelas temáticas das sexualidades e dos gêneros, criticando o fato de serem vistas como divergentes pela sociedade média. As palavras de Copi são marcadas de forma contundente por suas memórias do exílio e por seu constante estrangeirismo onde quer que estivesse. O autor enfrenta esse lugar de desconforto a partir de uma produção iconoclasta, cadenciada por um humor tipicamente argentino e uma linguagem que transgride as normas ao mesmo tempo que violenta possíveis lugares de conforto. Como é o caso do primeiro ato, que põe diante de seu espectador uma ficção centrada em um existencialismo trans ou, segundo pontua Renan Ji, uma distopia trans.
Em busca de atingir tais tensionamentos, a estética do entreato remonta o gênero teatral Vaudeville, uma vez que apresenta atrações distintas (canto, dança, dublagem, contação etc.) e de forte apelo popular de entretenimento.
As cortinas se abrem novamente e agora o palco nu é apresentado – já sem o enorme cenário do ato anterior – com todas suas maquinarias e recursos técnicos e de contrarregragem expostos. A Travesti abandona o proscênio e corre para as mediações da rotunda. Apesar de agora estar pequena diante dos olhos do público, sua presença cênica cresce ao formar uma imagem extremamente potente que é a soma da figura emblemática de seu corpo travestido com o tango que ela dubla e que ressoa altíssimo pelas paredes do suntuoso teatro inaugurado em 1921.
O entreato é bastante extenso, visto que os cenários dos dois atos são bastante complexos e exigem muito tempo para suas devidas montagens. Contudo, toda a transição é realizada de maneira cênica e muito bem cuidada pelo diretor, não chegando a perder o ritmo da encenação. Di Fonzo Bo criou um inventivo encadeamento dos fragmentos heterogêneos, deixando, assim, o trabalho da montagem e do distanciamento serem os grande responsáveis pelo ritmo da peça.
O segundo ato, Eva Perón, é o ponto alto da obra por uma série de fatores. O primeiro deles, porque gira em torno da figura mítica de Evita, que é amplamente reconhecida não apenas na Argentina, mas em toda a América Latina – quiçá em tantas outras regiões do globo, graças ao filme hollywoodiano estrelado por Madonna. Evita, nascida no interior, era filha bastarda do estancieiro Juan Duarte com a costureira Juana Ibarguren. Antes de se tornar líder política, era atriz. O que naquela época era sinônimo de prostituta – pelo menos para as camadas argentinas antiperonistas. “Vamos deixar que uma puta se aposse da presidência desse país?”. E. Perón gostava de dizer que queria ter direitos e fazer parte do Estado para nunca mais ter que ouvir intervenções como “com que direito você diz isso?”. Podemos dizer que, em sua curta vida de 33 anos, seus desejos foram realizados. Quando morreu, em 1952, foi preciso importar flores do Chile – as floriculturas da capital argentina foram esvaziadas.
O Papa Pio XII recebeu cerca de 26 mil petições para que se tornasse santa. Apesar de toda sua importância frente às classes trabalhadoras, na Argentina dizia-se que, de Perón, não perdoavam o presente; de Eva, além do presente, era imperdoável seu passado. Sua figura ascendeu para profanar espaços até então mantidos pela segregação de classe. Mesmo após ter adquirido todo seu prestígio social e político, Evita era tratada como “essa mulher” ou, nos espaços privados, era “a égua, a potranca, puta, copeira, louca, Agripina, Nefertiti, Semprônia etc”.
Voltando à obra, este segundo ato da encenação também é mais suntuoso imageticamente e produz no espectador um efeito de deslumbre frente à beleza dos figurinos de Eva (vestidos, perucas, joias) e à reprodução do que seria o requinte de um palácio presidencial. Para atingir tal objetivo o diretor e a equipe de cenografia demonstram domínio sobre as múltiplas engenhosidades que o teatro (desde que seja feito com subsídios financeiros e patrocínios) permite criar.
Nesta temporada, Eva Perón foi interpretada pelo ator Marco Antonio Caponi. A escolha de a personagem ser interpretada por um homem já vinha de Copi. O próprio entreato havia assinalado que, se a personagem fosse interpretada por uma mulher, seria a história de uma mulher sofrendo com seu câncer em estado terminal. Ao passo que, sendo interpretada por um homem, tal escolha conferiria um caráter grotesco à cena, apresentando uma espécie de king kong. Caponi não se propôs a fazer uma mimesis corporal a fim de reproduzir os gestos e a postura da primeira-dama argentina; manteve os muitos pelos de seu corpo robusto e musculoso, que em nada evoca os 1,65m e o pouco peso que Eva possuía no período final de sua vida.
O espetáculo aborda os últimos momentos de Eva Perón e tudo corre para o desfecho final (sua morte), que já está dado desde a cena inicial da peça. A partir de um jogo de luz realizado com uma tela de shark teeth, vê-se o espírito de Eva sair do próprio corpo.
Historicamente, a dramaturgia coteja o momento quando o presidente Juan Domingo Perón, seu marido, já havia decidido que ela não seria vice na sua chapa para a reeleição (como queria a grande parte dos eleitores), em decorrência de um câncer de útero. Na peça, no entanto, há um anacronismo temporal, pois, como a história já nos contou, a segunda presidência de Perón ocorreu dois meses antes da morte de Eva.
Tanto o texto de Copi quanto a encenação de Di Fonzo Bo não se propõem a fazer propaganda pró ou contra o peronismo. Talvez a única exceção seja o momento em que Caponi, sem sair da personagem, mas se dirigindo à plateia, diz que oferecerá à população aposentadoria aos 50 anos e aborto grátis e seguro. Naquela semana específica, o senado argentino votaria a legalização do aborto no país – que, como sabemos, foi rejeitada. Essa posição pode ser considerada consoante com o partido peronista, visto que, em 1947, o governo peronista instituiu o voto feminino, permitiu que os “filhos ilegítimos” pudessem ter o nome do pai em sua certidão, valorizou a presença das mulheres na política, além de ser o principal elo com a classe obrera do país. Nos dois dias em que assisti ao espetáculo, a plateia aplaudiu este momento em cena aberta. O mais impressionante é que, apesar da latente contemporaneidade, tal fala já constava no texto original da década de 1970.
Sobre a escolha do elenco, todos os personagens são interpretados por homens, tanto as personagens femininas quanto as masculinas. O único caso que foge à regra é a enfermeira, que é interpretada pela atriz Rosario Muma Varela. É ela também a única personagem que atua em um registro mais naturalista durante todo o ato. Enquanto a verdadeira Eva Perón morre aos 33 anos de idade, na ficção ela apenas foge, deixando a enfermeira em seu lugar. A personagem que cuidava de Evita até seus últimos instantes é vestida como a primeira-dama e assassinada com um crucifixo. Tal alegoria remonta o papel violento que a Igreja Católica assume em diversos âmbitos políticos, sendo (apesar de sua imagem sacra) responsável direta ou simbolicamente por tantas mortes ao longo de sua história.
Aqui temos distintas possibilidades de interpretação desta imagem. Uma, corrobora a ideia de que o corpo do homem é uma espécie de câncer nas vivências das mulheres – levando em consideração todo um sistema de imposições patriarcais. Enquanto sofria da doença, Eva era interpretada por um homem. Como disse Copi, para que o câncer se visse mais monstruoso em uma mulher seria necessário que ele fosse construído a partir da figura de um homem. O mito de Eva só assume de fato a figura de uma mulher quando já está morta e, portanto, livre do sofrimento. Outra hipótese que podemos levantar é a de que a personagem da Enfermeira – que sequer tem nome e só é validada a partir de sua força de trabalho e de seu próprio sacrifício – é a única que, com efeito, representa a classe trabalhadora. Por isso, ela era a substância consistentemente real do povo argentino, ao contrário das outras personagens que são farsescas e atendem a uma lógica do simulacro.
Outro ponto de profanação do mito que podemos especular nesta cena é o fato de que para que a Enfermeira se transformasse em Eva, bastava que ela se vestisse como a primeira-dama. Critica-se aqui todo a ornamentação e indumentária do poder, que para se legitimar perante uma sociedade carece de toda uma mise-en-scène. O texto de Copi deixa sem pele toda a montagem do poder, suas narrativas e linhas discursivas. Talvez deva-se a tais imagens, consideradas blasfêmias pelos argentinos durante tantos anos, o fato de que essa peça só foi publicada em Buenos Aires nos anos 2000, cerca de trinta anos após sua escrita. A obra era considerada repulsiva até mesmo pela família do autor.
Acredito que um ponto chave para entender a produção teatral de Copi é saber que, apesar de se inserir numa corrente de vanguarda, ela propõe suas reconfigurações estéticas a partir de um texto cuidadosamente construído. Assim, ele se distingue dos contemporâneos que constroem obras surrealistas e happenings nos quais o que está em jogo não é necessariamente um discurso lógico-articulado. Distingue-se também dos que se preocupam em comunicar um conteúdo ostensivamente político, mas, em termos estéticos, não possuem reconfigurações de linguagens que rompam ou acrescentem algo ao campo da arte. Conforme pontuou Augusto Boal:
Existe forte tendência para que uma obra seja julgada levando-se demasiado em conta as ideias progressistas ou reacionárias contidas no texto, transformando-se este no único padrão de excelência ou inferioridade. Procede-se ao julgamento ético, abandonando-se o estético.
Ou seja, Copi possui uma produção que não se abstém de encontrar uma linguagem literária que formalize esteticamente as problemáticas com as quais deseja trabalhar. Assim, suas imagens pungem não apenas no plano ótico, mas também no papel e na fala.
Em sua dramaturgia repulsiva, Copi traveste formas de se pensar importantes mitos políticos e transgride a heterossexualidade das figuras históricas. Mostra em cena um Perón quase irrelevante, como se fosse apenas mais um móvel do palácio onde reina apenas Eva. A medida em que os espectadores se aproximam dos personagens, percebem que eles são apenas disfarces, uma sobreposição de máscaras sociais. Conforme escreveu César Aira, na obra copiana, todo mundo deve ser receptáculo de outro, não pode haver mundos desprovidos de mundos adentro, como uma espécie de boneca russa.
Para Susana Rosano, desde o início é clara a insistência de Copi em explodir o pensamento binário homem-mulher, e daí as bases de ambos mitos: o peronista (a santa dos humildes, a porta-estandarte dos trabalhadores) e o antiperonista (Eva é uma puta, já que não cumpre com o papel atribuído às mulheres na sociedade).
Os personagens sempre estão atravessados pelas possibilidades de serem outros (homem, mulher, puta, santa, travesti, heterossexual, morto, vivo, humano, animal etc.), assim como também o teatro (do realismo ao grotesco, do trágico ao farsesco, do camp ao kitsch, do épico dialético à sedução das imagens). E essas infinitas possibilidades esbarram nas metas das classes dominantes, suas redes de produção de cultura e seus dispositivos de poder – conforme nos lembram filósofos como Michel Foucault e Judith Butler.
Um teatro que apela às suas potências performativas reitera, portanto, que nossas condutas (políticas, sexuais, morais) são atos rituais de repetição. E, assim sendo, podemos compactuar com eles ou mesmo transgredi-los; como o faz a personagem Eva em um de seus últimos e mais expressivos monólogos:
Eva:Vocês me deixaram cair sozinha até o fundo do meu câncer. São uns turrões. Eu fiquei louca e estava sozinha. Me veem morrer como uma besta no matadouro. Permita-me, quero estar com você, não tenha medo. Fiquei louca, louca, como aquela vez em que fiz entregarem um carro de corrida a cada puta e vocês me permitiram. Louca. E nem você nem eles me disseram para parar. Até a minha morte, até a encenação da minha morte tive que fazer completamente sozinha. Sozinha. Quando ia às vilas miseráveis e distribuía maços de notas e deixava tudo, minhas joias e meu carro e até meu vestido, e voltava como uma louca, nua, no táxi mostrando o cu pela janela, vocês me permitiram. Como se eu já estivesse morta, como se eu já não fosse mais que a lembrança de uma morta. Era isso que eu queria te dizer, velhinho.
A figura simbólica do câncer da personagem Evita não a impediu, mesmo que sobrevivendo à base de morfina, de enfrentar os discursos intolerantes das classes média e alta argentinas. Aqui vale lembrar que quando Eva Perón (a verdadeira) estava já no fim de sua vida, picharam nos muros de Buenos Aires, próximo a sua residência, a seguinte frase: VIVA EL CANCER. Não obstante, naquele momento, seu único desejo (na vida e na ficção de Copi) era ser velada e embalsamada na CGT (Confederação Geral do Trabalho), o maior sindicato da Argentina. Infelizmente, o desejo de Evita seria apenas cumprido durante um breve período. Com a nova ditadura militar, em 1955, Perón foi deposto e o corpo embalsamado de Eva foi roubado, esteve desaparecido e chegou a ser violado sexualmente por um de seus vigias – como relatam diversas personalidades políticas e pesquisadores.
Copi também, num incidente menos trágico do que o de Eva, após ser cremado, enquanto sua mãe e amigos cumpriam o ritual de “beber o morto”, num descuido de sua mãe que foi até a cozinha e deixou as cinzas na sala, acabou sendo fumado pelos seus amigos, que o confundiram com maconha. Ao que sua mãe pôde apenas intervir: “Esse é o Copi, é o Copi!”.
Como bem sintetizou Mactas, “feroz, afiado, queer, desaforado, bizarro, trans. Hashtags que, no mundo de Copi se chocam, enlouquecidas, com Evita, Perón, câncer. A vanguarda é assim, capaz de dialogar com a contemporaneidade anos depois da morte do jovem autor”.
Assim, escrevendo em francês sobre um dos maiores mitos da América Latina, em uma linguagem marcada por diversos exílios, o argentino Copi reivindica sua verdadeira nacionalidade: a de artista.
Encerramos essa crítica com o monólogo final do personagem Perón, interpretado magistralmente pelo veterano Rodolfo de Souza, que em um pronunciamento presidencial (potencializado por um microfone multidirecional e pela excelente acústica do teatro) reitera o poder emblemático da mãe dos pobres, Evita Perón:
PERÓN- Eva Perón se apagou. Decreto uma semana de luto nacional ao término do qual terão lugar os funerais. Seus restos descansarão na Confederação Geral do Trabalho; essa foi sua vontade. Senhores, roguem para que sua alma esteja na paz de Deus. Aquela que chamamos de a mãe dos humildes, aquela que sacrificou o tempo de sua vida para aliviar a desgraça dos deserdados da terra, aquela que nos ajudou com sua clarividência e sua força de caráter nos momentos mais difíceis em que nós – a pátria e também os homens – atravessamos, aquela que foi nossa companheira pela vontade de Deus, nossa companheira infatigável em todos os instantes de nossa pesada tarefa frente a Pátria, Eva Perón, foi abatida pela mais atroz das enfermidades. Para nós, que a acompanhamos com nosso amor durante o longo calvário até sua morte, será difícil, será impossível não nos rebelarmos, em nosso fórum interior, contra a injustiça do destino. Sim, Evita é insubstituível. Quem, como ela, poderia imolar sua vida e sua generosidade de mulher pela causa do trabalhador, do camponês, do oprimido? Homens e mulheres de minha Pátria, trataremos de interpretar, uma vez mais, a vontade divina. Eva Perón não está morta, está mais viva que nunca. Até hoje a amamos; a partir de hoje adoraremos Evita. Sua imagem será reproduzida até o infinito em pinturas e em estátuas para que sua memória permaneça viva em cada escola, em cada rincão de trabalho, em cada lugar. Desde o alto de seu pedestal, a força invencível de seu destino exemplar nos dará coragem, mais do que nunca, para continuar a tarefa, a dura tarefa à qual temos dedicado nossa vida: condenar a riqueza injusta, dar pão aos pobres, construir uma sociedade nova onde cada homem e cada mulher encontrem sua felicidade no trabalho e no amor à Pátria. Eva Perón, senhores, está mais viva do que nunca!
Referências
AIRA, César. Copi, Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1991.
BOAL, Augusto. Explicação. In: Revolução na América do Sul. São Paulo: Massao Ohno Editora, s/d, p. 6.
COPI. Teatro 3: Eva Perón, El homosexual o la dificultad de expresarse, Las cuatro gemelas. Buenos Aires: El Cuento de Plata, 2014.
DESANZO, Juan Carlos. Eva Perón. Prod. Hugo E. Lauría e María de la Paz Marino. Rot. José Pablo Feinmann. Lançamento: 24/out./1996. Argentina.
MACTAS, Mariana. “Eva Perón” y “El homosexual o la dificultad de expresarse”: el teatro encendido de Copi vuelve a Buenos Aires.TN (Todo Noticias). Disponível em: https://goo.gl/XG1ND3. Acesso em 25/set./2018.
ROSANO, Susana. Eva Perón es un travesti. Sobre Copi, entre el mito y la blasfemia, Lectures du genre, n. 4, Lecturas queer desde el Cono Sur, 2008.
Ficha técnica
Direção: Marcial Di Fonzo Bo
Texto: Copi
Tradução: Joani Hocquenghem, Jorge Monteleone
Atuação: Marco Antonio Caponi, Rodolfo de Souza, Carlos Defeo, Hernán Franco, Gustavo Liza, Juan Gil Navarro, Rosario Varela
Figurino: Renata Schussheim
Cenografia: Oria Puppo
Iluminação: Bruno Marsol
Música original: Ettienne Bonhomme
Assistência de direção: Ana Calvo
Produção: Maxi Libera, Silvia Oleksikiw, Lucía Quintana
Duração: 145 minutos
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Felipe Cordeiro é artista de teatro, editor e pesquisador. Doutorando em Literaturas Modernas e Contemporâneas pela FALE/UFMG. Possui o título de Mestre pela mesma instituição. Realizou pesquisa de aperfeiçoamento científico em Recepção Clássica na Universidade de Coimbra.Bacharel em Interpretação Teatral pela EBA/UFMG.Membro co-fundador do grupo de teatro Mulheres Míticas. Editor da “Em Tese – Revista de Literatura da UFMG”. É membro pesquisador do Núcleo de Estudos em Letras e Artes Performáticas (NELAP/UFMG) e do Grupo de Estudos em Dramaturgia Letra e Ato (UNICAMP). Possui artigos e capítulos de livros publicados (e aceitos para publicação) no Brasil e em países da Europa. Atualmente, leciona a disciplina “Teorias do Teatro” para os cursos de graduação em Letras e Teatro da UFMG.
– por Clóvis Domingos –
Crítica panorâmica a partir da programação da MITsp 2018.
Fotos de Guto Muniz e Nereu Jr
No material gráfico e visual da MITsp, encontra-se uma imagem emblemática: uma cadeira vazia disposta sobre as águas, que tem como horizonte o infinito. Tal imagem retorna agora à minha memória quando percorro as inúmeras e diferentes cadeiras nas quais me sentei como espectador e crítico para assistir espetáculos nos quais as palavras foram minhas companheiras de viagem. Ainda no que se refere a essa imagem de uma cadeira vazia, penso no fenômeno cênico não apenas como um ato de contemplação, mas como um convite à escuta. Palavras como embarcações poéticas e políticas para abordar questões emergenciais, como memória, história, conflito, violência e colonização. Da abertura da programação com o trabalho Suíte nº2, de Joris Lacoste, ao encerramento com a instalação cênica A Gente Se Vê Por Aqui, do artista plástico Nuno Ramos, a palavra navegou em suas múltiplas possibilidades de instaurar deslocamentos, desnaturalizações, reflexões críticas e denúncias sobre nossa situação atual.
Em Suíte nº2, a palavra surge como narrativas em disputa, num mundo feito Babel, no qual discursos macropolíticos se sobrepõem às nossas existências minoritárias. Entre pronunciamentos oficiais e diálogos mais cotidianos, a palavra performa a coexistência de sonoridades distintas que oscilam entre medo, opressão, tentativas de comunicação e desejos de encontro. Numa sinfonia entre o universal e o singular, algumas palavras legislam sobre nossos corpos enquanto outras não passam de sussurros e apelos de socorro. Na encenação de Lacoste, um tapete sonoro se estabelece, entrecruzando os sentidos e os absurdos que habitam o campo da palavra. A palavra surge como corpo que age, determina, presentifica, rotula e evoca até mesmo o que se encontra inaudível. Existem palavras de fato escutadas como declarações importantes e outras que são desprezadas ou não passíveis de consideração. Muitos falam, poucos são escutados. Muito se diz, quase nada se escuta. O que ainda pode a palavra hoje?
A palavra como depoimento, testemunho e documento está presente em Campo Minado. Palavra como mediação para a experiência traumática da guerra. Palavra como tentativa de reconciliação com a história. A palavra falada como também a palavra escrita aparecem ainda em cartas resgatadas pelos ex-combatentes argentinos e ingleses, que os auxiliam para a saída de um campo minado para um campo narrado. A palavra liberta? A palavra é posicionada em cena entre o passado e o presente. As palavras possíveis e as não alcançáveis pelo horror do real.
Ao retomara imagem da cadeira vazia sobre o mar, é como se os artistas nela se sentassem para pescar e fisgar as palavras-sensações-memórias a serem utilizadas em seu teatro documental.As palavras como relato não somente dos fatos ocorridos, mas também do processo de criação do espetáculo, numa operação metateatral. No debate realizado após uma das apresentações de Campo Minado, pude escutar as palavras não pronunciadas e interrompidas. Uma outra cena ali se materializava: a palavra não dita, as sensações não elaboradas, a tensão ainda viva e recalcada no exercício cênico. Mas talvez as palavras tenham seus limites. Na minha visão (ou será escuta?), ao acompanhar o debate, as palavras ali excederam o campo poético, revelaram um pouco do que sobrou e do que foi necessário deixar partir nas águas revoltas do esquecimento.
Em Hamlet e sal., as palavras suscitam políticas da solidariedade. Se em sal. Selina Thompson, por meio de sua palavra revoltada, cria um ritual de cura pessoal e coletiva ao compartilhar sua busca de identidade e pertencimento histórico pelos oceanos migratórios de uma memória negra diaspórica, Julian Meding se alia a Boris Nikitin para, juntos, roubarem as palavras estilhaçadas e dolorosas de Hamlet em seu drama de “ser e não ser” alguém bem ajustado às normas de uma sociedade que a todo custo tenta anular as diferenças, desvios e subjetividades fora dos padrões estabelecidos.
A grande pedra clara que Selina,com seu corpo negro, vigorosamente destrói em nossa presença, pode ser lida como o histórico e solidificado discurso colonial que se perpetua secularmente por meio de palavras de ódio, racismo e exclusão geopolítica que assolam as vidas dos sujeitos afrodiaspóricos. A palavra, nesses dois trabalhos, é corpo vivo e pulsante. Como poéticas cênicas da perturbação, tais performances se utilizam da palavra como golpe certeiro sobre as práticas naturalizadas de violência social e econômica sobre os corpos marginalizados. Não por acaso, em Hamlet, as imagens de pessoas adoecidas e asiladas nos confrontam com a finitude e vulnerabilidade a que todos nós estamos expostos, mas insistimos em negar. Nesse ponto, a palavra cantada de Meding experimenta um momento de pausa para nos oferecer um silêncio constrangedor.
Bertrand Lesca e Nasi Voutsas colocam a palavra como negociação em Palmira. Importante destacar que o trabalho apresenta pouca dramaturgia textual, já que as palavras aqui funcionam como armadilhas e são propositalmente escolhidas para justificar violências, além de demarcar territorialidades e muros. A palavra não ultrapassa a possibilidade de se constituir como matéria capaz de criar entendimento entre mundos diferentes. Pelo contrário, a palavra nesse espetáculo-assembleia busca determinar quem é o civilizado e quem seria o bárbaro. As palavras se impõem pela força agressiva dos corpos. Percebo, em Palmira, a palavra como metáfora e alegoria para se tratar das dificuldades de relação, seja entre pessoas e/ou países. A palavra como tradução e em seu bojo a necessidade perversa de se efetuar discursos opressores. Ou você fala minha língua ou então não há possibilidade de acordo e convívio humano. Nas entrelinhas da palavra, surgem hiatos entre o que se fala e o que faz.Da violência praticada à violência discursiva. O que mais fere e ameaça, o martelo real ou o martelo discursivo? Em Palmira o perigoso poder da palavra é o que justifica a destruição, pela lógica do ‘nós contra eles’.Se em sal., a palavra colonizadora é de alguma forma denunciada e triturada, em Palmira os restos das vidas e memórias quebradas atuam e servem para a solidificação de um discurso-pedra fundamentalista. Como se os outros, os estrangeiros (feito os restos de pratos) fossem expulsos e varridos da minha área conquistada.
O excesso de palavras também extenua nossos sentidos. Em Árvores Abatidas, do encenador polonês Krystian Lupa, palavra, imagem, ação e atmosfera entram em combate. Palavras que nos abatem em sua áspera e irônica revelação de um processo de decadência e degradação de uma determinada classe artística que se encontra em intensa luta para não se deixar cair e ser devastada pelo mundo do consumo. Espetáculo de longa duração no qual as palavras seriam espécies de labirintos a nos confundir, nos desafiar, nos provocar. Quando já me encontrava rendido ao fúnebre jantar servido com palavras vazias e desesperadas, era como se, pelo excesso das horas vivenciadas naquele teatro, eu já pudesse escutar não mais uma dramaturgia textual apenas, mas realizava a leitura sinestésica da obra literária de Thomas Bernhard. Em Árvores Abatidas a palavra experimenta travessias poéticas diferenciadas, ora como linguagem naturalista e em outros momentos como um espetáculo expressionista.
E quando as palavras não ancoram em porto algum? Em País Clandestino,fiquei com a sensação de que as palavras se perdem e se estrangulam no necessário equilíbrio entre memória coletiva e memória pessoal. As palavras não se afundam no mar da história, permanecem na superfície das experiências juvenis. Elas voam e se tornam discursos frágeis que não me possibilitam habitar uma certa clandestinidade, mas pelo contrário, são reveladoras das histórias privadas dos artistas envolvidos. Ainda que “caminhando contra o vento”, tornam-se mais “lenço do que documento”. É como se as camadas mais profundas não conseguissem ganhar espaço, volume e densidade.
Por fim, me sentei na cadeira para vivenciar o trabalho A Gente Se Vê Por Aqui, de Nuno Ramos. Minha avaliação desse espetáculo está incompleta e comprometida, pois só pude acompanhar as primeiras horas iniciais, e o trabalho teve duração de vinte e quatro horas ininterruptas. Os dois performers, ao reproduzirem na íntegra a programação da Rede Globo, provocaram deslocamentos e estranhamentos em nossa maneira de escutar os noticiários jornalísticos, além de revelar como verdades são construídas pela força dos discursos. Para mim, era como retornar ao espetáculo de estreia da MITsp: uma nova suíte ou sinfonia midiática criada para se tensionar discursos políticos, palavras de ordem, manipulações de todo tipo, para mostrar como uma notícia, com sua trilha sonora escolhida, nos aliena e nos condena a uma posição passiva, asséptica e desencarnada diante dos fatos da vida real. A partir dessa performance, é possível pensar a tela da televisão como uma caixa de ressonância e máquina ideológica que edita e determina o que vamos ouvir, do que seremos informados e quais assuntos teremos para discutir no dia seguinte. No espaço cênico, contudo, surge a possibilidade de uma possível subversão e confrontação, pela ironia e pelos recursos dramáticos, dessas pretensas imagens e palavras com as quais somos diariamente colonizados.
No trabalho dos performers predominava a chave do humor, o que gerava o consequente riso da plateia. A meu ver, em algumas cenas, o risco da banalização ameaçou a potência crítica da intervenção. Até que, num certo momento,tal dinâmica foi quebrada, pela mudança enfática dos artistas ao relatarem um caso de violência infantil, substituindo a paródia pela indignação, num corte incisivo sobre a regularidade cênica que se acumulava. Até porque deve haver diferenças entre uma poltrona de casa direcionada frente à tv e uma cadeira no teatro diante da presença humana.
Na MITsp 2018, a palavra foi motor para atravessamentos tanto estéticos como políticos, além de servir como material problematizador das narrativas que tentam imperar no mundo. Vale ainda destacar as ações dos Olhares Críticos nas quais a palavra irrompeu, em sua dimensão pública, contra todo tipo de interdição, censura e silenciamento, e o que foi ausência nos palcos dos teatros se configurou como presença insurgente nos debates e conversas. Palavras que nos conclamaram mais à escuta do que à fala. Mais à reflexão do que a reação defensiva. Palavras que apontaram e feriram nossos lugares e assentos de privilégio. Agora posso finalmente me levantar da cadeira e abandoná-la, para que possa ter um tempo suficiente de autocrítica e coragem de renovação.E, assim, vislumbrar futuramente as novas palavras e cenas a surgir e ocupar o horizonte que está por vir.
(Texto escrito no âmbito da 5ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo pela Prática de Crítica dentro do Eixo Olhares Críticos, iniciativa que envolveu os espaços digitais Horizonte da Cena, Questão de Crítica, Farofa Crítica, Revista Cinética, Plataforma Araká e Agora Crítica Teatral).
– Por Victor Guimarães –
Crítica a partir do espetáculo “Mi Hijo Sólo Camina un Poco Más Lento”, do Colectivo de Investigación Apacheta (Argentina)
Logo à chegada do público, os atores nos oferecem mate e o diretor nos convida para a peça. Aos poucos, com as luzes acesas, dez atores de três gerações diferentes, vestidos com trajes de corrida Adidas, começam a se movimentar pelo cenário minimalista, delimitado por uma fita branca e consistindo apenas em um conjunto de cadeiras, que ora preenchem o espaço marcado, ora permanecem nas adjacências da cena. A iluminação permanecerá inalterada por todo o espetáculo, índice do despojamento cênico que atravessa a poética do Colectivo de Investigación Apacheta, dirigido por Guillermo Cacace, e que se materializa também na frugalidade dos figurinos, na permanência dos atores nas bordas do palco durante toda a peça e na figura discreta de um narrador que se veste como o restante do elenco e é também responsável por operar a trilha sonora.
Fotos de Nora Lezano.
O movimento inicial logo se detém, e o que vemos a seguir é o cotidiano de uma família – e de alguns agregados – durante o dia do aniversário do filho mais novo, Branko (Juan Tupac Soler), que sofre de uma doença motora inominada e ocupa uma cadeira de rodas. O texto – do jovem dramaturgo croata Ivor Martinic – se centra no presente das relações familiares, mas não deixa de se contaminar a todo o tempo pelo passado, sobretudo na figura da avó, acometida pela desmemória e instigada a lembrar precariamente – ou a inventar – nomes, histórias, amores desaparecidos. A franca convivialidade instigada pela sobriedade da encenação é a mesma que permeia o texto, centrado nas relações íntimas entre os personagens.
Mas se a proximidade é o ponto de partida, logo percebemos que a peça trabalhará fundamentalmente sobre a densidade das distâncias, a precariedade do convívio, a dificuldade da expressão do afeto no interior de uma casa em decadência. Fala-se muito, o tempo todo (no limite, a própria legenda é incapaz de traduzir o fluxo verbal intenso e é obrigada a estampar a palavra “caos” na tela), mas quase nunca a conversa se dá entre dois atores que se olham de frente. Durante todo o espetáculo, há um desencaixe entre a economia gestual e o regime da conversação: enquanto o tom da fala é majoritariamente coloquial, a gestualidade é declaratória e se volta conscientemente para a plateia. Incapazes de sustentar o olhar diante do outro, os personagens se põem a falar exasperadamente para nós.
Diante desse estado de coisas, a figura que mais se destaca entre as invenções da encenação é justamente a do narrador, responsável por uma gestão muito peculiar do drama: quase sempre, é a narração que preenche a escassez do gesto e descreve uma ação dramática que não encontra correspondência na performance dos atores. “Mia entregou a sopa para a mãe”, diz o rapaz, enquanto vemos as duas mulheres imóveis em cena. Numa das encarnações mais belas dessa interação entre narração e performance – o momento em que Branko tem o primeiro contato físico com Sara (vivida por Pilar Boyle) –, o narrador descreve a trajetória da mão do rapaz em direção à vagina da moça, mas o que vemos em cena é a mão imóvel na cadeira de rodas e o quase-orgasmo solitário e comedido da atriz. É nesse hiato entre a palavra e o gesto que se dá, muito fortemente, a experiência do espectador.
É curioso que um texto croata ganhe, em cena, uma dicção tão porteña. A verborragia estridente que acomete as personagens de “Mi Hijo Sólo Camina un Poco Más Lento” reenvia inevitavelmente a diversas expressões da ficção argentina – especialmente bonaerense –, da literatura de Cortázar ao cinema de Alejandro Agresti. Embora notável, no entanto, essa argentinidade por vezes ganha o aspecto de um costumbrismo desgastado, que circunscreve a histeria ao feminino – cuja expressão mais clara é a tia Rita (Clarisa Korovsky) – e esbarra em alguns clichês cômicos, como a figura da velha esclerosada que desata a disparar palavrões a torto e a direito (Elsa Bloise).
A divisão rígida entre homens impotentes e mulheres histéricas é também índice de certo maniqueísmo da dramaturgia, mas felizmente tem como contraponto a potência de um elenco capaz de combinar um carisma evidente e uma destreza inequívoca para encarnar uma variadíssima gama de sentimentos. Numa peça que tem na palavra uma ancoragem fundante, salta aos olhos o trabalho corporal extraordinário da jovem Pilar Boyle, que faz conviver uma precisão gestual impressionante (cada centímetro de seu corpo parece eletrizado, mesmo na mais banal das ações) e uma partitura própria, calcada na conjunção entre fragilidade e estranheza.
Se o final catártico e apaziguador (a dança redentora, velha conhecida dos espectadores do teatro mineiro contemporâneo, parece não ser um problema só nosso) revela o desenho de um arco dramático algo previsível, que parte da decadência para formular uma possibilidade de reconstrução da ternura no núcleo familiar, é salutar que os personagens e o elenco tracem voos singulares ao longo do espetáculo, e que a feição de mosaico consiga se sobrepujar à linha narrativa. Se “Mi Hijo Sólo Camina un Poco Más Lento” vacila enquanto fábula moral, sua vibração é notoriamente potente quando se dedica a fazer variar a densidade dos afetos em um aglomerado provisório de relações.
— por Luciana Romagnolli —
Entrevista originalmente publicada na revista Urdimento, v. 2, n. 23, dez. 2014.
Em seu empenho por traçar uma filosofia do teatro, o ensaísta, crítico e teórico argentino Jorge Dubatti reconhece que, assim como a arte em geral, o teatro passa por um processo de “desdefinição” com a emergência de acontecimentos artísticos fronteiriços desde o início do século XX; contudo, apesar dessa desdelimitação com outras artes e com a vida, Dubatti identifica ainda “uma singularidade na teatralidade que é sua estrutura matriz” (2007, p. 14) e que o diferencia de outras manifestações culturais também fundadas na representação, como o cinema, a televisão e o jornalismo. Essa singularidade é “o resgate do convívio”, ou seja, “a reunião sem intermediação tecnológica – o encontro de pessoa a pessoa em escala humana” (Dubatti, 2007, p. 20) em uma “encruzilhada espaço-temporal cotidiana” (2007, p. 43).
(…) Na entrevista abaixo, realizada em fevereiro de 2014, no Centro Cultural de la Cooperación, localizado no centro da cidade de Buenos Aires, o teórico argentino relaciona sua ontologia teatral às possibilidades de dramaturgias conviviais, à crítica de teatro e à necessidade de uma mudança de paradigma na pesquisa sobre teatro cartografada que o entenda não como linguagem tão-somente, mas também como acontecimento
Luciana Romagnolli e Mariana Muniz – Se pensarmos a dramaturgia fora do logocentrismo como um conceito expandido que inclui a articulação de sentidos e efeitos num espetáculo, é possível pensar o convívio como elemento que pode ser trabalhado pelo dramaturgo e pelo diretor, de modo que se possa evidenciar a relação de convívio no espetáculo?
Jorge Dubatti – Como você disse, o conceito de dramaturgia se ampliou enormemente, do ponto de vista do sujeito produtor, do sistema de referência, da edição etc. Acaba de sair no Chile um trabalho meu sobre esse tema. Dentro dessa ampliação, entraria o que podemos chamar de dramaturgias conviviais. São aquelas dramaturgias que, seja pela liberdade que tem o ator para interagir com os espectadores ou pela imposição do convívio sobre o material da cena, produziriam um caso particular. Digamos que o ator deixa de ser uma simples tecnologia do diretor para transformar-se em um gerador de acontecimento convivial, que implica produção de dramaturgia. Nesse sentido, creio que a dramaturgia convivial é vivida todo o tempo, inclusive nos espetáculos em que o ator está determinado a cumprir com um determinado protocolo de representação do texto ou a cumprir com as instruções de um diretor, porque o convívio produz modificações. Se alguém medir a duração de uma obra em cada sessão, verá que nunca é a mesma. Por outro lado, há mudanças na ordem dramatúrgica não só pela dinâmica de convívio, mas também pela dinâmica de produção de poiésis – a poiésis produtiva, segundo a terminologia da Filosofia do Teatro. Nesse sentido, há de se distinguir dois tipos de dramaturgias conviviais. Um tipo seria aquela que é natural do acontecimento convivial e vai acontecer sempre, mesmo que o ator trabalhe com quarta parede e se isole do mundo, essa dramaturgia vai estar em funcionamento. Outro tipo são casos muito particulares de distintas poéticas que trabalham com o que podemos chamar de uma “dramaturgia do ator em convívio”, no qual o ator interage permanentemente ou aproveita os estímulos. É como na Commedia dell’Arte ou no teatro de rua ou em algumas poéticas particulares. Na Argentina, temos a poética do clown, da improvisação e da comicidade, que são muito abertas à dramaturgia da produção de convívio a cada noite. Há vários grupos que têm essa poética instaurada. Um caso que eu nomearia como exemplar é do La Banda de la Risa, que trabalha com uma margem muito forte de dramaturgia convivial, modificando permanentemente as apresentações com estratégias que são muito parecidas com as da Commedia dell’Arte, como o canovaccio e a construção de lugares inesperados dentro dessa dramaturgia.
Luciana e Mariana – O segundo tipo de dramaturgia convivial, você relaciona ao ator. Com outros elementos, como luz e cenário, também seria possível criar esse tipo de poética da dramaturgia convivial?
Jorge Dubatti – Sim. O que creio é que o específico do teatro, seu núcleo central, é o ator. Há cenas neotecnológicas em que se produzem combinatórias, mas o que não se pode subtrair é o ator. Ele verdadeiramente é o gerador da ação, da poética e do acontecimento. Isso seria a refutação da teoria de Josette Féral. Féral diz que a dramaturgia é o olhar do espectador. Então eu poderia, neste momento, estar olhando para você e pensando nesta entrevista como uma obra de teatro. Não. A poiésis teatral diz que se trata de uma ética dialógica, uma política dialógica. Quando alguém vai ao teatro, vai compartilhar com outro. Não está fechado em seu próprio crânio. Uma ética dialógica seria entrarmos em acordo de que eles (os atores) vão produzir poiésis e nós vamos observar e nos integrar numa poiésis convivial. Essa é a grande diferença entre uma definição geral de poiésis e uma definição específica do teatral. Caso contrário, o teatro perde sua singularidade. É claro que existem zonas de liminaridades, cruzamento e perda de limites. Mas a singularidade (do teatro) é haver uma “figura de ação” que comece a produzir poiésis e, a partir daí, detonar todo o mecanismo. Essa figura é o ator.
Luciana e Mariana – Faz sentido dizer que, quando o teatro evidencia a poiésis convivial, reitera sua importância na atualidade?
Jorge Dubatti – Absolutamente. É claro que há uma grande variedade de poéticas e, dentro de uma ética do científico (estou trabalhando muito esse tema), tenho que valorar e respeitar todas as poéticas.
Luciana e Mariana – Ou seja, ser um espectador “politeísta”, como você diz em “Filosofia do Teatro I”.
Jorge Dubatti – Exatamente. Chamo de cânone da multiplicidade. Um artista pode dizer o contrário: só é arte o que eu faço. Mas um cientista não pode fazer isso. Se sou investigador, tenho que reconhecer tudo que está acontecendo e aceitar que há muitas formas de fazer teatro. Mas há algo interessante que é um núcleo de teatro, com estabilidade, que provém da Antiguidade e segue vigente. O acontecimento é efêmero, mas a memória não. Há uma memória do teatro que segue funcionando e teria a ver com esse núcleo central. O núcleo fundamental, como disse Grotowski e também Peter Brook, estaria dado no sistema de convenção do século V a.C, com a tragédia e a comédia gregas e os mimos romanos. Nesse sentido, gosto muito de usar a palavra teatro. Muitos perguntam por que não falar em “artes cênicas”. O problema com as artes cênicas é que todo mundo se apropriou da palavra cena: a sociologia, a literatura, as artes digitais. Eu teria que separar artes cênicas conviviais e não conviviais. A palavra teatro, usada no sentido de origem, não o moderno, implica todos os elementos dessa estabilização da linguagem teatral que continua vigente até hoje. Teatro significa lugar, um mirante, onde alguém vai ver algo que aparece. Por outro lado, há a atividade de olhar. Portanto, na palavra teatro estão inscritos o território, o objeto observado e o observador. Voltando ao núcleo, as combinatórias são infinitas, especialmente depois do choque das vanguardas, muito estimulante para se ler a História [do teatro]. Por que não sustentamos que o primeiro ator foi Homero? Ali havia convívio, poiésis e expectação. Se fizermos todo esse protocolo de regresso à História e voltarmos a pensar nos processos, além da multiplicidade aparece um elemento irrenunciável, que é o ator. Há um grande dramaturgo argentino, Mauricio Kartun, que diz: o teatro é um corpo. O que está dizendo é: o teatro é um corpo de um ator que produz acontecimento e estabelece uma ética dialógica com o espectador. Nesse sentido, creio que as luzes, a cenografia, a música, são todos elementos muito importantes, mas são acessórios porque, como diz Grotowski, poderíamos tirá-los e o acontecimento se produziria. Então, eu instalaria dois corredores teóricos. Um seria de quantas possíveis combinatórias há dentro das linguagens teatrais: infinitas. E outro corredor teórico seria o que não pode faltar no acontecimento teatral: a reunião dos corpos viventes produzindo poiésis em convívio, onde haja geração corporal de poiésis e expectação. Seriam duas pertinências diferentes, como dizem os estruturalistas. Por isso, no fundo, a dramaturgia convivial é constitutiva do teatro. Em alguns casos pode ser sistêmica, porque se busca estimular esse convívio, em outros casos não, mas ainda assim está presente.
Luciana e Mariana – Falta se pensar mais sobre o espectador e a experiência de expectação na teoria de teatro?
Jorge Dubatti – Você está tocando em um tema que, para mim, é um tema-chave. Nós temos armado uma epistemologia do teatro baseada na ideia do teatro como linguagem. Uma ideia da linguagem como um corpo que produz signos e que são expectados por outro corpo que produz sentidos através desses signos. Toda a teoria básica é a da comunicação. Mas há outra coisa que é importante e é justamente a convivialidade. O grande problema em que nos encontramos é que há de se armar uma epistemologia da convivialidade, não da linguagem, porque a linguagem não necessariamente é o que ocorre no acontecimento. Se estou observando um corpo que produz acontecimento, de golpe me abstraio porque o relaciono com alguma coisa e deixo de perceber os signos. Onde fica a teoria de que houve comunicação ou que esse signo produziu recepção em mim? Nesse sentido, temos que reinstalar um campo epistemológico, que muitas vezes foi tapado pela vontade de certeza da semiótica. Por exemplo, leio um texto, analiso os signos desse texto e os projetos ao funcionamento do espetáculo, pensando que foi isso que se passou. A epistemologia do convivial implicaria ver como fracassa a linguagem. Beckett disse: tenta de novo, fracassa de novo, fracassa melhor. Tenho que ver onde fracassa a teoria semiótica porque é aí que estou entendendo a singularidade do teatro.
Luciana e Mariana – O que não é texto, mas é acontecimento.
Jorge Dubatti – Sim. Tenho que poder pensar o acontecimento pelo que ele é, não pelo que deveria ser enquanto linguagem semiótica. Não digo que não há linguagem, mas que, no acontecimento, há muito mais que linguagem. E o acontecimento, como pertence à cultura vivente, implica categorias epistemológicas muito importantes, como a categoria do perdido, da ignorância – porque há coisas que vou ignorar. Trabalho com espectadores todas as segundas, na Escola de Espectadores, de março a novembro, e estou disposto a não saber o que se passou porque o acontecimento é muito mais intenso do que os relatos posteriores ou uma estatística. Uma coisa que me parece muito importante – e estamos tratando de aprofundá-la – é aceitar que o acontecimento teatral nos enfrenta com um limite. E que esse limite não se pode negar nem se pode tapar. O que a semiótica fez foi negar e tapar os limites, pensando que se estudamos as cadeias de signos, estudamos o acontecimento. Estamos nas portas de uma nova maneira de entender as coisas, onde nos colocamos num lugar de reconhecimento e de fracasso.
Luciana e Mariana – Essa é uma tarefa para o pesquisador e uma tarefa para o crítico?
Jorge Dubatti – Totalmente.
Luciana e Mariana – Como fazer isso? Como falar do acontecimento?
Jorge Dubatti – Uma coisa importantíssima é começar a ter categorias que reconheçam a realidade do acontecimento, como a categoria do “teatro perdido”. Quando vou falar do teatro como crítico, eu falo no passado, não no presente. Estamos falando do perdido, mesmo que o tenhamos visto há dez minutos. Isso implica em primeiro lugar que, a partir dessas categorizações, formulemos do que podemos falar e do que não podemos falar. Quando reconhecemos aquilo do que podemos falar, aparece um monte de questões que se instalam em certos parâmetros. Eu tenho, como crítico, dez grandes parâmetros que têm a ver com um trabalho sobre auto-observação e observação do acontecimento. Trabalho muito com a ideia de auto-observação, o relato do que passou comigo. O acontecimento em princípio é um laboratório de auto-observação tanto para o artista quanto para o espectador e para os técnicos. Há de se habilitar o lugar do técnico. Na Argentina, agora chamamse técnicos-artistas, porque se reconhece que estão fazendo algo muito importante para a poiésis. A técnica é tão protagonista quanto o trabalho do ator e do espectador. Então, auto-observação e construção de discursos sobre essa auto-observação, tanto pelo espectador, quanto pelo técnico e pelo artista. Começam a aparecer categorias, observações históricas, regularidades, reflexões de todo o tipo sobre as conexões com a história e o comportamento. Mas tudo isso baseado no reconhecimento de uma ignorância. A ignorância qual seria? O objeto se perde. Estudar um vídeo não é estudar um acontecimento. Tem-se que estar dentro do acontecimento. E outro tema muito importante é a excepcionalidade do acontecimento. Posso entrar no teatro drogado, feliz no meu mundo, e o espetáculo me parecer maravilhoso porque estou disposto a que seja maravilhoso. Ou o contrário: entro após uma má notícia, de que estou doente, não sei, estou desesperado e odeio o espetáculo porque o relaciono a isso. São muito importantes as categorias da auto-observação, da autodisciplina, da autoconfiança. E algo tão importante quanto é alcançar um lugar trans-subjetivação como espectador, não apenas o subjetivo. Está muito relacionado à ideia da morte: se eu não estivesse hoje aqui, a apresentação igualmente estaria acontecendo. Posso abstrair a minha própria presença e pôr em jogo a observação, não como um sujeito afetado por ela, mas como algo que está acontecendo na minha ausência. Isso implica um exercício epistemológico. No teatro nem tudo é subjetivo. Se estou sentado e a meu lado uma senhora está morrendo de rir, posso observar isso como uma instância objetiva do acontecimento. Simultaneamente, na ordem subjetiva, posso dizer que não me interessa, me incomoda, posso valorar o que está acontecendo. São muitas estratégias distintas — passei o verão escrevendo sobre isso. Outra estratégia é uma espécie de diálogo com pessoas ausentes no acontecimento. Sabe quando Eugênio Barba diz que pensa o espetáculo para seis espectadores – uma criança, Borges, um músico, um cego etc.? Essas pessoas não vão ao acontecimento, mas Barba o está construindo a partir de um lugar de pergunta, tirando-o da instância estritamente subjetiva dele. Eu sempre fantasio que vou ao teatro com dois amigos – que obviamente não vão -, o Martin Esslin, crítico criador do conceito de teatro do absurdo, e Susan Sontag, a intelectual americana. Sempre me pergunto o que estariam vendo eles que eu não estou vendo. Trata-se de pensar não só o que estou vendo, mas o que poderia estar vendo e o que deveria estar vendo. Então, abre-se um monte de possibilidades à pergunta sobre os convívios, relacionadas à auto-observação, à observação do outro e a instâncias imaginárias que permitam fazer ao acontecimento perguntas que não se faria por sua própria subjetividade.
Luciana e Mariana – Se pensarmos na processualização de espetáculos, característica do pensamento de vanguarda nas artes, pela qual se traz elementos do processo criativo para a obra, há uma relação entre essa prática e o convívio?
Jorge Dubatti – A grande pergunta que se deve fazer é o que eu posso conhecer de um convívio. O convívio é um objeto de estudo evanescente, absolutamente imprevisível. Muitas vezes é difícil predicar algo sobre esse objeto. Então aparece uma pergunta epistemológica interessante: quais são os limites de conhecimento do convívio enquanto objeto? Dentro dessa grande pergunta há uma em particular que seriam os estudos dos processos de convívio. Podemos dizer que cada convívio é absolutamente diferente de outro. Posso encontrar regras de regularidade, mas talvez o mais interessante não seja a regularidade, mas aquilo que o convívio muda. Espetáculos que me interessam muito, vejo-os mais de uma vez. É impressionante não só como eu mudo na relação com o acontecimento já tendo visto o espetáculo uma vez, mas também como muda o acontecimento pela nova composição do público e pelo estado dos atores. Isso já foi muito dito: a apresentação nunca é a mesma. Mas há de se produzir categorias. Temos que partir da ideia de que estudar os convívios implica estudá-los micropoeticamente. Não vou estudar todos os convívios porque não poderei estar lá. Se, dentro de todos esses convívios, seleciono um, aí estarei estudando uma micropoética em particular. Questiono muito as observações dos críticos – e me incluo – valorando um espetáculo pelo que se passou numa apresentação com outros críticos [na plateia]. Há que se poder nomear certos critérios. Tenho pelo menos dez grandes critérios: efetividade, historicidade, poeticidade etc. Mas o mais importante é o micropoético: reconhecer cada convívio e cada acontecimento como único e singular e não necessariamente representativo dos outros. Há algo que contradiz a investigação: tratamos de generalizar algo que não se pode generalizar. A relação está dada por uma circunstância, um momento, uma tensão de relações absolutamente micro, não esse modelo abstrato. Por isso sempre que estudamos o convívio peço aos espectadores que digam que dia foi, em qual apresentação, se esteve presente ou não, sobre qual vídeo está trabalhando e que esclareça que está trabalhando sobre um vídeo porque é uma observação extremamente relativa. Sinto que, de tudo que se escreveu sobre teatro, trabalhou-se sobre generalidades, sobre sistemas. E a sensação é que nos acontecimentos essas generalidades não necessariamente estão presentes. Por exemplo, fui a uma apresentação em que espectadores aplaudiram de pé e depois ouvi de outra em que os espectadores dormiram, saíram na metade. Estamos falando do mesmo objeto? São dois objetos diferentes: um convívio e outro convívio.
Luciana e Mariana – Na Escola de Espectadores, são quantos anos de trabalho?
Jorge Dubatti – Quatorze anos.
Luciana e Mariana – E, nesses anos, o que você pôde sentir de como os encontros semanais podem mudar a relação desses espectadores com o teatro e a sua com esses espectadores?
Jorge Dubatti – É um fenômeno muito complexo. Comecei com oito pessoas na escola e há seis que continuam vindo em 14 anos. Neste momento, a escola tem 340 frequentadores. Encontram-se pessoas com respostas muito distintas, histórias diferentes de relação com teatro. Gente que vem com estrutura muito armada, vai ver teatro comercial e nega, vai ver teatro independente e mesmo que seja uma porcaria encanta-se. São cabeças muito diferentes, 340 tipos distintos. Mas o que eu vejo como função da escola é que possa construir o que gosto de chamar de espectador companheiro. É um ponto contrário ao espectador emancipado de (Jacques) Rancière. O espectador companheiro está disposto a dialogar com o que acontece, tomando a instância objetiva do espetáculo, de reconhecimento do que está acontecendo ao redor, e estabelecendo um diálogo entre o que se passa com ele, com os outros e com o artista, nessa instância trans-subjetivada de colocar-se em outro lugar. A escola multiplica a vontade de escuta, de atenção a outras pessoas do convívio e aos artistas. A escola gera conhecimento, o frequentador que vem há dois ou três anos está muito preparado para ler linguagens diferentes. Gera uma mudança muito forte no boca a boca. Se gostam do espetáculo, os 340 se multiplicam por dez rapidamente, há uma rede de oralidade. Gera um movimento de público para o espetáculo.
Luciana e Mariana – Como você desenvolve a pedagogia teatral na Escola?
Jorge Dubatti – O que eu sempre digo: é uma escola, não é um clube. Não é um lugar de debate aonde cada qual vem dizer o que lhe ocorre. Há uma franja educativa. Eu dou aulas com um critério construtivista, não condutivo. Não lhes digo o que têm que pensar ou fazer. Eu lhes dou ferramentas. Por exemplo, suponhamos que vejamos um “Hamlet” dirigido por Daniel Veronese. Na primeira hora da Escola, vou dar ferramentas para compreender o texto de Hamlet, compreender a tradução sobre a qual se está trabalhando, ver uma tecnologia da reescritura (o que chamaríamos adaptação), conectar com o pensamento e a poética de Veronese e do que seria um Shakespeare em sua historicidade. Em nenhum momento digo se devem ou não gostar. Eles brigam muito comigo. Digo para verem algo e voltam dizendo que é uma porcaria. Peço que se deem tempo. Já aconteceu de me dizerem que um espetáculo é um desastre e, sete anos depois, o mesmo espectador me dizer que agora entende porque foi ver tal coisa. Isso é uma aprendizagem e uma abertura que tem muito a ver com a vontade de abrir a cabeça. Gosto muito de falar em amigabilidade, disponibilidade espiritual com os acontecimentos. Na segunda hora, vêm os artistas, o diretor, o dramaturgo, o produtor, os técnicos, e o que fazemos é escutá-los muito atentamente. Não dizer-lhes o que nós pensamos mas escutar o que eles pensam. E fundamentalmente as perguntas são: como trabalharam, como veem o mundo, por que fizeram isso, quais os principais procedimentos e perguntar muitos detalhes. “Na cena do monólogo tal, você faz de costas. Por quê?”. Sempre aparece a ideia do diálogo com o artista. Uma ideia de companheiro – que vem do latim, compartilhar o pão. O convívio é justamente a mesa, uma reunião para beber e comer. Tenho uma espécie de classificação dos contramodelos de espectador, os que eu não recomendo, e dentro deles está justamente o não-companheiro, o espectador assessor, credor, carrasco. São distintos tipos de espectadores que reconheci e, quando aparecem, trato de lhes trazer consciência. Já se passaram na Escola casos incríveis, como trazer um mestre de trajetória impressionante, que se digna a vir conversar conosco, e nem começou a falar quando uma senhora levantou a mão e disse que o espetáculo não lhe interessou porque é uma merda. Isso seria o espectador carrasco, combativo, que não vai disposto ao diálogo, mas para violentar. Isso é muito midiático, está na televisão, muita gente pensa que isso é o protagonismo. Alguns espectadores da Escola me disseram que vão lá questionar e criticar os artistas. Não se trata disso, se quiserem, que abram um blog e escrevam o que queiram. A Escola é um espaço de diálogo em termos de companheirismo. Às vezes, isso me custa muito. As pessoas têm uma tendência à violência e não sabem dialogar, mas quando isso acontece, eu o freio, porque não é a função da Escola. Não é ensinar o que se tem que pensar ou as conclusões, mas exige da pessoa a disponibilidade de receber ferramentas. Uma dessas ferramentas é tratar de entender a cabeça do artista, o que ele quis e propôs. Depois, considere se conseguiu ou não.
Luciana e Mariana – No Brasil, há uma escola em Porto Alegre. É possível se pensar em escolas em outras cidades?
Jorge Dubatti – Um grupo me chamou para abrir em São Paulo. Creio que sim. Vivendo em Buenos Aires, que é uma grande capital teatral, comecei com oito pessoas e com muita resistência. Ninguém entendia que teria que estudar para ser espectador – eu dizia, claro que tem de estudar, eu vivo estudando para ser um bom espectador. Não entendiam do que teriam aulas. Sinto que isso já se instalou aqui. No Brasil, a Escola de Porto Alegre começou com 150 pessoas. Já está criada a expectativa. Fez-se uma reunião no Festival Santiago a Mil e se falou da Escola de Espectadores de Buenos Aires. Mas creio que em São Paulo já há um rapaz, o Flávio Desgranges, que está fazendo escola de espectadores, mas nas escolas de educação básica. São duas coisas distintas. Não trabalho com escolas, trabalho com espectadores. Estamos armando um módulo para trabalhar com as escolas, mas sou muito crítico da forma que se está trabalhando neste momento porque não creio que se deva transformar o espetáculo e o acontecimento em um espaço pedagógico. Tem que ser puro espaço de gozo. Levar as crianças para que se divertir, desfrutar, como uma excursão. E que não se transforme em uma aula, como de literatura.
Luciana e Mariana – Seu livro será publicado no Brasil?
Jorge Dubatti – Aparentemente, sairia uma introdução à Filosofia do Teatro, publicada em São Paulo pelo Sesc. Estou terminando a versão e vou mandá-la, terá de ser revisada, aprovada, traduzida. Tomara! Me encantaria porque estou viajando muito ao Brasil, tenho conexões com universidades de distintos lugares e vejo que estamos na mesma coordenada. Estamos em uma etapa de abertura epistemológica a uma consideração do teatro a partir de um outro lugar. Gosto muito do pensamento cartografado. Não se trata de impor um novo paradigma universal, como a semiótica pretendeu ser. O que se trata é de, problematizando as questões, estudar os contextos locais. Eu estudo Buenos Aires e a partir daqui produzo um pensamento teórico. Me parece que o mesmo têm de fazer Brasil, Uruguai, Córdoba. E isso está acontecendo. É uma ideia de uma cartografia radicante. No Rio se estuda uma coisa, em Buenos Aires outra, em Córdoba outra, em estreita relação com o teatro que vemos. Senão, gera-se essa coisa espantosa é termos de falar sobre o que está se passando na Alemanha, quando não é o teatro que vemos. Isso nos obriga a não termos objeto de estudo, a repetir a bibliografia e a desconhecer nosso próprio objeto de estudo. Uma cartografia radicante diria: tenho que pensar o teatro a partir do que eu sei. Tive uma entrevista com um grande pesquisador francês que levei à Universidade de Buenos Aires, e ele disse aos alunos: “Porque vocês viram Planchont…”. Não. Ninguém viu. Ele me olhou: “não conhecem Planchont?” Chegou um momento em que me disse que não poderia prosseguir. Eu lhe disse para falar de teatro, não das obras que ele viu, porque eles falariam das obras que eles viram. Uma cartografia radicante implica conhecer a própria territorialidade e estabelecer diálogos de conexão com França, Alemanha, com todo lado, mas a partir do que se conhece, dos acontecimentos. Não tenho porque estar falando de Bob Wilson, vou falar do que vejo esta noite e daí vou produzir pensamento e me conectar com toda a bibliografia mundial. Essa é uma mudança muito importante porque começamos a reconhecer que temos que falar do que se passa e não do que deveria estar passando. Falei disso com o Lehmann em Porto Alegre, num encontro sobre Bertolt Brecht, conversamos nos almoços, caminhando pela rua. Disse-lhe: “o conceito que você trabalha de pós-dramaticidade não me serve para pensar o teatro de Buenos Aires, o teatro que eu vejo não é o que você diz”. E ele me respondeu uma coisa muito sensata: “Eu nunca falei do teatro de vocês, estou falando do que eu vejo lá”. Isso me parece muito importante, devemos começar a falar de coisas concretas, e claro, depois ouvir atentamente ao Lehmann para ver se o que ele diz tem a ver com o que vivemos. Nos congressos, muitas vezes, sinto que estamos vendo uma coisa e falamos de outra. Acabamos de ver uma obra de teatro em que há personagem, história, dramaticidade e, depois, analisamos esse espetáculo falando de pós-dramaticidade e morte do personagem. Não tem nada a ver com o que vemos. A América Latina tem uma missão agora: começar a falar do que se passa nos teatros locais. Tenho que falar de Buenos Aires. E você tem que falar do teatro do seu lugar. E, claro, conhecer toda a bibliografia mundial.
por Soraya Belusi ::
Cristina Banegas e María Onetto vivem mãe e filha em “Sonata de Otoño” (Fotos de Humberto Araujo- Clix Divulgação) |
A comparação não nasce à priori. É a relação que a própria obra, ao se colocar diante dos olhos do espectador, estabelece com sua fonte original que nos remete àquela experiência inaugural, criando parâmetros comparativos para o bem ou para o mal, considerando que uma outra “versão” ou “visão” pode sempre nascer quando um mesmo material cai em novas mãos. Não digo aqui de atender ou não a expectativas, embora estas me pareçam até certo ponto inevitáveis. O que pretendo é admitir, desde esse ponto, que as percepções a serem escritas estão sim impregnadas da primeira sensação que tive, como espectadora, da experiência de fruição dos filmes “Sonata de Outono”, de Ingmar Bergman, e “Bug”, de William Friedkin, que ganharam materialização nos palcos assinadas, respectivamente, por Daniel Veronese e Zé Henrique de Paula, apresentadas no Festival de Curitiba.
Não se trata aqui de comparar os filmes e as peças apenas como uma transposição de uma linguagem para a outra. Seria minimizar todas as implicações de criação que se instauram nesse procedimento. Mas, sim, de tentar perceber, através das escolhas artísticas dos espetáculos, de que maneira se aproximam ou se afastam do fator mobilizador de suas fontes originais, se ampliam suas leituras ou minimizam seu poder de impacto. A versão de Daniel Veronese para o reencontro entre mãe e filha, em que os rancores e amores se escancaram, parece não perder de vista, em momento algum, os elementos construídos pelo cineasta sueco. Ainda assim, o encenador e dramaturgo argentino consegue impregnar de incerteza as convicções daquelas personagens.
A frieza nórdica presente na obra cinematográfica transborda para a cena criada por Veronese seja pela palidez dos elementos que a compõem, com os móveis todos brancos, sem vida e diferenciação, seja pelo acúmulo de espaços em um mesmo plano, em que quarto, cozinha e sala estão todos lado a lado. Há algo de não-espetacular na opção de Veronese. O teatral, termo tão empregado no cinema de Bergman, não está em Veronese sobressaltado, a não ser nos corpos, nas falas e nos estados dos atores, característica que marca também a obra do sueco. A luz é estourada, branca, sem nuances, e as mudanças temporais e espaciais se dão pelos cortes no texto mais que pela ação dos personagens.
Esse procedimento teatral de Veronese parece sublinhar a construção psicológica do conflito entre mãe e filha, que não se viam há mais de 7 anos e cujo reencontro faz explodir uma série de questões reprimidas, silenciadas, amargadas. É como se neutralizasse o que é externo aos personagens-atores, opacizando o espaço, para lançar o foco sobre o que se passa no interior daquelas mentes e corpos. Nem mesmo a legenda em português, insistindo em adiantar os pensamentos e os diálogos, retira a força emocional que se estabelece das relações em cena.
Se associamos uma certa contenção aos comportamentos nórdicos e à direção de Bergman no que diz respeito à atuação, que mais esconde do que revela, é inegável que também remetemos à latinidade uma tendência ao extravaso, ao exagero e ao melodramático. Mas Veronese se afasta do sentimental ao optar pela carga emocional.
Os corpos de seus personagens revelam mais que escondem, parecem não ser mais capazes de se conter, como na obra cinematográfica. E as emoções surgem, assim, desmedidas, confusas, permeadas uma das outras, retirando as certezas que nós, espectadores, já tínhamos sobre a culpa e a absolvição daquelas personagens. Não é tão fácil mais distinguir quem é vítima ou quem é culpado. Instala-se a dúvida, a crise, a incerteza. “Sonata de Outono” nos apresenta, assim, novas camadas de percepção de algo que já conhecemos, sem com isso abandonar as potencialidades de sua referência anterior.
É de incerteza, inclusive, que se trata a obra cinematográfica de William Friedkin cuja matriz é a peça de Tracy Letts, “Bug”, que dá origem também à montagem do Núcleo Experimental, sob direção de Zé Henrique de Paula. Assim como Bergman não abandona seus protagonistas em sua Sonata, Friedkin leva às últimas consequências, com sua câmera, a construção artística da sensação de obsessão e paranoia que domina seus personagens. Uma espécie de fobia contagiosa, que passa através das telas para quem a compartilha, assim como contamina a mente de Agnes em sua convivência com Peter. Ambos encontram no outro a possibilidade de suprir suas demandas de medo. A relação amorosa aqui é que desencadeia essa aproximação paranoica, que se retroalimenta ao longo do tempo.
Cabe ao espectador duvidar do que vê, do que ouve, mas também do que entende como normal. Aos poucos, este é também desestabilizado de sua convicção sobre a paranoia alheia, é também ele “possuído” (tradução dada ao título do filme no Brasil) pela dúvida. Há algo realmente acontecendo ali? Sem esse questionamento interno, também paranoico, a potência da obra parece não se efetivar, como acontece na montagem teatral apresentada no festival.
Foto de Jorge Mariano – Clix divulgação |
E, numa primeira percepção, as escolhas de encenação parecem não favorecer o contágio que Tracy Letts permite com seu texto. O conflito psicológico cede lugar à comicidade daquela situação, que, absurda por princípio, resvala no risível quando se abre mão totalmente de torná-la crível. A paranoia ganha contornos (luzes, números musicais, registros de atuação excessivamente estranhados) de mera alucinação, o que a desqualifica à priori. Alguns efeitos visuais só reforçam essa percepção, como as marcas exageradas pelo corpo que parecem ser feitas de canetinha ou ainda as luzinhas que piscam na tentativa de demonstrar a infestação. Parece não haver aqui espaço para o questionamento da lucidez ou loucura dos personagens, nem mesmo do público, para o qual é negado o direito de duvidar, inclusive, de si mesmo.
O Horizonte da Cena viajou a convite do festival.
por Luciana Romagnolli ::
Rafael Spregelburd é ator, dramaturgo e diretor de Spam. |
O músico Zypce produz uma variedade de sons cambiantes. |
por Luciana Romagnolli ::
Spam. |
Ator, diretor e dramaturgo argentino de projeção internacional, Rafael Spregelburd traz ao Festival de Curitiba um ópera falada apocalíptica, Spam, sobre a virtualidade do mundo atual. Abaixo, ele fala criticamente da apatia social e dos efeitos da crise econômica e política sobre o teatro argentino.
Somos nostálgicos de uma ordem desinflada, que parece estar sendo abandonada, mas pessimistas sarcásticos de uma ordem por vir, prenha de ameaça e desumanização.
Em nossos dois últios trabalhos conjuntos (“Apátrida” y “Spam”), Zypce e eu temos tratado de construi sensivelmente um teatro que nos interesse. Não somos puristas das categorias de ópera nem de teatro puro. O importante é sempre gerar uma convivência interessante e dinâmica com o público real.
Quais aspectos do mundo contemporâneo são evidenciados no espetáculo?
Como a crise política e econômica da Argentina está afetando o teatro do país?
Não há crise econômica que pareça poder derrubar o teatro na Argentina. A maior de que me recordo (a de 2001) propulsionou um enorme movimento de criadores e público: salas, museus, centros culturais nunca estiveram tão cheios, tão ativos, tão povoados de espectadores necessitados de convivência dentro dos parâmetros da arte. Mas penso que às vezes acontece o contrário: as sociedade muito estáveis que conheci, muito assentadas sobre sua razoável estabilidade sociopolítica, às vezes carecem de teatro e isso não parece representar um problema para ninguém. Me impressiona muito o caso da Suécia – um país que me parece magnífico em muitíssimos sentidos, onde eu gostaria de viver minha velhice e criar meus netos, mas onde o teatro contemporâneo praticamente não é feito. O teatro das sociedades ordenadas vive de exprimir os eternos modelos de seus exíguos clássicos. O de países em crise ferve o tempo todo e trata de gerar respostas imediatas, torpes às vezes, balbuciantes, mas definitivamente muito coloridas.