– por Soraya Martins-
As teatralidades negras, nas duas primeiras décadas do século XXI, emergem nos palcos brasileiros como forças explosivas, que redefinem a criação, o pensamento e a estrutura organizacional dos modos de fazer teatros negros, e não só. Essas teatralidades, além de pensarem, concomitantemente, as contradições sociorraciais e a própria prática teatral, criaram uma ficção conceitual em que quilombo é uma das formas de dizer fabulação, força produtiva que retorna ao passado, restaura o porvir e se abre para a construção de vários mundos possíveis.
O surgimento de grupos e coletivos – como a Cia dos Comuns (RJ), Os Crespos (SP), Coletivo Negro (SP), Clarianas (SP), Coletivo Tropeço (BH), Teatro Negro e Atitude (BH), NATA (BA) – e de festivais e projetos de teatros negros – como segundaPRETA (BH), Polifônica Negra (BH), Dona Ruth Festival de Teatro Negro de São Paulo (SP), Segunda Black (RJ) –, mais especificamente a partir dos anos 2000, que pensam linguagens e articulam formações teóricas e práticas sobre saberes também fora de cena, deu a ver formas novas de territorilização de sujeitos que vivem e estão em processos perenes de reconceitualização das estéticas da negrura e das identidades. Nesse sentido, argumentamos, aqui, que tais instâncias de contato e troca apontam para o surgimento de aquilombamentos éticos e estéticos, instaurando maneiras de relacionalidade inéditas no âmbito das teatralidadedes brasileiras.
Pensar em aquilombamentos, aqui, é pensar em uma noção conceitual que engloba, movimenta e fabula o significado mesmo da palavra quilombo, termo-conceito que habita o imaginário coletivo e designa uma forma de resistência e organização das pessoas negras. O ato de aquilombar, no contexto ético e estético proposto, explode a ideia de território fixo e se liga a “experiências marcadas por interações, modificações e transcendências”. (PATROCÍNIO, 2021, p. 46) Ou seja, liga-se a processos constantes de relacionalidade, contato, contaminação e tensão entre pessoas e culturas diversas.
No artigo “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”, a pesquisadora, historiadora e ativista dos direitos humanos de pessoas negras Beatriz Nascimento contextualiza historicamente o conceito de quilombo, desde África até o Brasil. (NASCIMENTO, 2006) Em Angola, kilombo era um modo de resistência para garantir a identidade pessoal e significava “instituição em si”. Na verdade, conforme aponta a pesquisadora, designava os indivíduos que, juntos com os Jangas, nômades que matavam seus próprios filhos, adotavam os adolescentes das tribos adversárias que conseguiam derrotar. Esses indivíduos eram vistos como uma ameaça significativa aos portugueses que estavam em Angola, por desfazerem os laços de linhagem e instaurarem uma forma de poder diverso diante das instituições. “Casa sagrada”, de acordo com Nascimento, também era outro possível significado para kilombo, lugar onde eram preparados os rituais de iniciação dos Jangas.
No Brasil, no final do século XVIII, os portugueses estabeleceram um significado para a palavra: “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. (NASCIMENTO, 2006, p. 119) A definição do termo no sentido de expressar instrumento ideológico contrário aos processos de subjugação se deu somente no final do século XIX e, tão logo, abarcou a ideia de símbolo de resistência. Assim, já no começo do século XX, a noção de quilombo passou a ser percebida da seguinte maneira:
Tendo findado o antigo regime, com ele foi-se embora o estabelecimento como resistência à escravidão. Mas justamente por ter sido durante três séculos concretamente uma instituição livre, paralela ao sistema dominante, sua mística vai alimentar os anseios de liberdade da consciência nacional. (NASCIMENTO, 2006, p. 123)
A década de 1970 foi marcada por uma crescente busca e entendimento dos processos de resistência ocorridos no período colonial. Em 1974, por exemplo, o grupo Palmares, uma associação cultural para promover estudos de história e arte sobre o papel dos negros e metisços no Brasil, composto pelos intelectuais Oliveira Silveira, Vilmar Nunes, Ilmo da Silva e Antônio Carlos Côrtes, publicou um artigo no Jornal do Brasil, no qual sugeriu o dia 20 de novembro como uma data verdadeiramente digna para se comemorar a resistência negra, em contraponto ao 13 de maio: a primeira data marca a queda do Quilombo de Palmares e o assassinato de Zumbi, um dos mais importantes líderes quilombolas brasileiros; já a segunda, indica o fim da abolição da escravidão, decretada pela Princesa Isabel, que, supostamente, por sua bondade, concedeu a liberdade aos escravizados. A História oficial, aqui, neglicencia as demandas políticas, sociais e, sobretudo, econômicas por trás desse gesto “humanístico”. E é no desejo de recontar a contrapelo a História que, progressivamente, as buscas por entendimento conquistaram as salas de aulas, as pesquisas, os encontros e os debates públicos, cujo objetivo era engendrar a liberdade dos afrodescendentes.
É desse modo que, a partir das últimas décadas do século XX, o termo, como bem assinala Beatriz Nascimento, passou a ser definido como sinônimo de pessoas que fazem dos seus corpos negros o próprio quilombo.
Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro, sinônimo de comportamento do negro e esperança para uma melhor sociedade. Passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural. Tudo, de atitude à associação, seria quilombo, desde que buscasse maior valorização da herança negra. (NASCIMENTO, 2006, p.124)
A partir da linhagem, dos movimentos acerca dos significados da palavra quilombo e da compreensão de que um corpo da negrura pode ser também um corpo-quilombo, pretende-se refletir sobre o ato de aquilombar, do qual emergem identidades e poéticas afrografadas nas e pelas relações de contato, contaminação, transcendências e imaginação. A noção de Aquilombamento, nesse sentido, diz respeito a processos de relacionalidade com/entre/a partir dos corpos negros e de modos de privilegiar a extensão simbólica e subjetiva das práticas negras, que obliteram “os registros e os regimes de representação” (MOMBAÇA, 2020, p. 10) nos palcos e fora deles. Além de ser pensada no sentido revolucionário e político de agrupamento de pessoas negras, essa noção, como estamos propondo, se projeta como movimento: juntar-imaginar-criar-transcriar-reimaginar para, além de movimentar sentidos outros, descortinar o próprio sentido múltiplo das experiências pretas. Logo, refletir sobre o processo de aquilombamento, na contemporaneidade, é apontar práticas éticas e estéticas comprometidas em fundar novas possibilidades de existir, criar e se relacionar.
E é nesse sentido que [quilombo] se liga aos vários significados da palavra Calunga, que no Kimbundu […] língua falada no noroeste de Angola, incluindo a província de Luanda, pode significar: mar, ação de ser, alguém que se faz presente e água que possibilita o mergulho em outros mundos possíveis. Se os corpos fazem e refazem a si próprios como quilombo, tornando-se aquilombamentos, eles, corpos-aquilombamentos, encerram, em si mesmos, a ação de ser- quilombo, a manifestação de ser que transborda os vazios, ocupa os espaços físicos e simbólicos, faz-se presente, no presente, e navega em águas que possibilitam criar e recriar modos de habitar, ser, estar negras/os no mundo. (PATROCÍNIO, 2021, p. 42-43, grifo da autora)
Criar e recriar modos de experienciar, presentar e viver a negrura no mundo e/ou no teatro está intimamente ligado a uma ideia de ética e dignidade. Segundo Muniz Sodré (2017), a filosofia Nagô não compreende o sentido da palavra ética como um modo de sistematização moral do comportamento humano, pensa-a como um conceito implicado a um destino comum, isto é, um entendimento que prima pela dignidade de conviver e de habitar de toda comunidade. A dignidade, assim, é um valor absoluto, farol da ética, uma exigência radical da própria vida. Por isso a denominação aquilombamentos éticos e estéticos, pois a imanência dinâmica do ato de juntar-imaginar-criar-transcriar-reimaginar é também est(ética), um movimento de clareza e luminosidade da humana existência.
Como uma tecnologia preta que funciona por analogia e não por contradição, aquilombamento:
liga os mundos, […] um exercício mental de troca e criação de saberes e estratégias, uma possibilidade de existência em meio aos açoites […] e uma condição de diálogo sofisticado que se abre e semeia o antes- o-agora-o-depois-e-o-depois-ainda. (PATROCÍNIO, 2021, p. 170)
Projeta-se, ao mesmo tempo, tanto no âmbito da ética, como entendida pela filosofia Nagô, quanto da estética, uma estética preta diaspórica, que diz de processos dinâmicos de interação, transformação e reatualização de falas, gestos e memórias em novas formas de linguagem e expressão. É “um ato de existir ligado à presença/ausência de Calunga, o performar de partida e de chegada das negras e negros em diáspora. (PATROCÍNIO, 2021, p. 43) É nessa perspectiva que, pensada a partir de existências que se conectam à ideia da presença e ausência de Calunga, que performa a performance mesma da diáspora negra nas Américas, a noção conceitual de aquilombamento se entrelaça ao conceito de diáspora, o qual, conforme Paul Gilroy (2012), “perturba a mecânica cultural e histórica do pertencimento” (p.18) ao dissolver a ideia essencialista de que os negros são um contingente similar.
Para além de significar apenas movimento, a ideia-chave da diáspora, segundo Gilroy (2012), diz de “formas geopolíticas e geoculturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e transcendem” (p. 25). É desse modo que as identidades, no líquido processo de contaminação e de transcriação do Atlântico negro, envolvem-se tanto em misturas quanto em movimentos, dando a ver culturas marcadas pela mediação, conflitos e transmutações:
As culturas do Atlântico negro criaram veículos de consolação através da mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contra-estéticas e uma distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente separam a genealogia da geografia, e o ato de lidar com o de pertencer. Tais culturas da consolação são significativas em si mesmas, mas também estão carregadas e contrapostas a uma sombra: a consciência oculta e dissidente de um mundo transfigurado que tem sido ritual e sistematicamente conjurado por pessoas que agem em conjunto e se abastecem com a energia fornecida por uma comunidade mais substancialmente democrática do que a raça jamais permitirá existir. (GILROY, 2012, p. 13)
Paul Gilroy, portanto, compreende a diáspora como um sistema de reconceitualização da cultura que se forja continuamente através de vivências baseadas na desterritorialização e em processos radicais de relacionalidade. É nesse ponto de compreensão que o conceito de diáspora e a noção de aquilombamento se entrecruzam e nos possibilitam pensar em uma poética da relação (GLISSANT, 2005), “em que está em jogo a capacidade de se relacionar com a própria negrura, com as diferenças entre negras e negros e com a branquitude”. (PATROCÍNIO, 2021, p. 44) O mesmo que pensar em formas mais opacas de ser e estar negra e negro no mundo e em cena. “Como ser si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro, sem perder-se a si mesmo?”. (GLISSANT, 2005, p. 28) A tessitura das poéticas de relacionalidade, o aquilombamento, antes de ser um ato que clama pelo direito à diferença, prima pela opacidade, o direito mais pulsante que, longe de tramar fronteiras, cria e recria liberdades. Formas mais opacas de habitar o mundo são a possibilidade de diluir as verdades absolutas e trançar relações. É nesse viés que a opacidade, o direito a ela, afirma “uma poética-política que evidencia o surgimento de desejos, relações sociais e culturais e modos associativos novos que apontam para o performativo”. (PATROCÍNIO, 2021, p. 45)
Se, em opacidade, a diferença não pode ser consumida ou extraída,
talvez possamos criar uma ficção conceitual em que “opaco” é uma das formas de dizer “quilombo”,
e assumir, assim, que a encruzilhada
da vida negra está situada
sobre
um labirinto de túneis que conduzem da plantação cognitiva
à floresta e da floresta ao
assentamento fugitivo. (MOMBAÇA, 2020, p. 11)
Essa poética-política performaticamente afrografada desde a“diáspora ziguezagueada no Atlântico negro” (PATROCÍNIO, 2021, p. 46) se apresenta, por meio dos aquilombamentos, como uma espécie de “assentamento fugitivo” – que não diz respeito a morada no sentido fixo do termo, mas a trânsitos e travessias e opacidades – em que os desejos líquidos utópicos são corporificados, (re)encenados, decantados e celebrados. Nessa perspectiva, a noção conceitual de aquilombamento “tenta reconstruir sua própria genealogia crítica e ética [e] evidenciar uma geografia política- cultural […]”. (PATROCÍNIO, 2021, p. 46) E, como ideia-chave para ler as po[éticas] pretas, na atualidade, realiza-se, mas não só, nos gestos de movimento, fissura e fabulação.
O gesto de movimento, conforme estamos propondo neste estudo, reflete e questiona os conceitos rígidos de uma falsa concepção do que é e do que não é arte negra e direciona para a produção da diferença e da criatividade. Ele somente pode ser pensado quando associado a outros dois gestos que se retroalimentam: fissura e fabulação.
O gesto de fissura diz sobre o ato de rachar, fender as determinações representativas calcadas na rigidez das homogeneidades sobre as formas de ser e estar negras e negros. Fissurar aqui é fender intentando maneiras novas de encenar velhos dramas negros e novas maneiras de fazê-los sentidos. É elaborar as subjetividades recalcadas, as fúrias, as melancolias, os ressentimentos, os prazeres e as alegrias criativa e esteticamente, apontando para novas práticas de dramatização do real. É uma forma de lançar mão do corpo da negrura como imagem- texto, inventariar outras imagens possíveis, criar imagens que faltam, já que atrás de uma imagem do Teatro Negro existem outras imagens dos Teatros Negros.
É desse ato de fissurar que pode emergir aquilo que queremos significar por Fabulação, ou seja, a ficção como possibilidade de construção de um espaço onde negras e negros possam existir sem amarras, recriar memórias e temporalidades. Recontar a história. Dedicar-se a um desejo. Fabular é produzir imagens e olhares fabulares e identidades em devir a partir da releitura crítica da história: do passado, operando no presente e no futuro, através de uma leitura poética do mundo. Fabular é especular para se produzir rotas de fugas existenciais e estéticas. (PATROCÍNIO, 2021, p. 83, grifo da autora)
Tais gestos se instauram nos processos de criação de linguagens artísticas, produzindo teatralidades que só são possíveis de serem elaborada s e realizadas porque os gestos de movimento, fissura e fabulação também se dão fora de cena e se inscrevem como práticas amplas de novas configurações sócio-político-culturais. Criadas como reação a um sistema de colonialismo cultural, essas práticas invocam meios mais ostensivamente opacos para alimentar os desejos utópicos individuais e coletivos. Nos últimos cinco anos, Belo Horizonte foi berço de várias práticas de reconfiguração cultural dentro e fora de cena: Rolezinhos, segundaPRETA, Polifônica Negra, Fórum Permanente das Artes Negras-Aquilombô, Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas de Belo Horizonte, assim como algumas produções que passaram por esses quilombos. Todas essas práticas são projetos-aquilombamentos tecidos como uma espécie de reconstituição imaginária de um mundo antirracista, uma forma de liberdade que não se submete à dominação:
Esses aquilombamentos […] criam espaços para a experimentação de novas éticas em arte, para se produzir conhecimento sobre teatros, performances, dramaturgias e subjetividades negras. São lugares de experimentação artística, de trocas e tensões, de debates acerca das questões estéticas e da multiplicidade do fazer criativo. Além disso, apresentam-se como possibilidades de convívio, afeto, fortalecimento, sentido de pertencimento e amor, que cada vez mais tem que ser pensado na sua dimensão política, ou seja, naquela perspectiva de politização do amor, como coloca bell hooks (2019), numa discussão crítica na qual considera que o amor precisa ser compreendido radicalmente como uma força poderosa que desafia, resiste e inventa caminhos de fuga à dominação. (PATROCÍNIO, 2021, p. 39)
Nessa perspectiva, destacam-se, aqui, duas práticas de aquilombamento, dentro-fora-dentro dos palcos, que, simultaneamente, no rastro uma da outra, resultam da “cruza e encruza de estados transversos, perversos, reversos e por versos” (BRITO, 2019, p.14), na busca pelo sublime das existências: o projeto Polifônica negra e a performance Sobre o que ainda não sabemos, da atriz-performer Grace Passô (2017), realizada no contexto de tal projeto.
Onde estão nossos quilombos? Essa foi a pergunta feita pelos curadores da Polifônica Negra, Aline Vila Real e Anderson Feliciano, quando pensaram na tessitura do projeto-aquilombamento, em maio de 2017. Tendo como ponto de partida os quilombos formados ao longo do período colonial e seus modos de resistência e criação, os curadores fizeram da Polifônica um território afetivo a partir da ideia de “afetos em deslocamento” (BRITO, 2019, p. 13), ao realizarem a mostra em quatro espaços diferentes da capital mineira.
Deslocando a noção de centralidade e criando espaços que são “da ordem da desobediência a um sistema imperativo e da ocupação de lugares físicos e simbólicos na construção de novas humanidades através dos teatros” (PATROCÍNIO, 2021, p. 81), a Polifônica negra ocupou o Teatro Espanca, no baixo centro de Belo Horizonte; o Centro de Referência da Cultura Afro-mineira, Tambor Mineiro; o Laboratório Interartes Ricardo Aleixo (Lira) e Kombo Roda Afrotópica (Kora); e o quintal da família Silva, em São Salvador, um dos bairros redutos das tradições negras na cidade. E fomentou uma discussão importante acerca das teatralidades pretas: como movimentar, fissurar e fabular os velhos dramas pretos nos palcos, ou seja, como encenar de maneira outra esses dramas?
Essa discussão permeou todo o projeto, marcado por criatividade, trocas, diálogos, processos investigativos sobre a multiplicidade das teatralidades e alegria de vivenciar encontros cósmicos (cantar, dançar, batucar, comer, re-viver), que trabalham na reconstrução de um passado imaginário como um presente e um porvir de felicidade, celebração, transfigurações e transcendências. Nesse sentido, a mostra estava imersa no comprometimento e no desafio de amar, visto que, como coloca bell hooks (2019), o amor é uma poderosa fonte que desafia e resiste diante dos processos de dominação.
O aquilombamento Polifônica negra foi a possibilidade de os artistas se juntarem para refletir, identificar e enfrentar as diferenças próprias da negrura, que “não é apreendida, afinal, como uma essência, mas, antes, como um conceito semiótico, definido por uma rede de relações”. (MARTINS, 1995, p. 26) É no ato de juntar para enfrentar as diferenças e os modos coloniais de exercer controle sobre os corpos negros que se produz ações e maneiras de existir pautadas sobretudo em forças de mediação, ou seja, concentradas na politização do amor (HOOKS, 2019). Logo, conforme hooks (2019), trabalhar para ser amado e para criar uma cultura de celebração da vida, que torna o amor possível, é a possibilidade de se mover contra a desumanização e a dominação.
Como um ato político de amor, a Polifônica redesenhou mapas existentes, forjou caminhos e espaços novos, teceu e reteceu a história recente das mostras e projetos de teatro em Belo Horizonte, e para além. Assim, firmou-se como uma forma geopolítica e geocultural de vidas em relação, ao se pensar como:
[…] espaço no qual se pode experimentar deslocamentos e imaginários, fissurar e desarticular visões simplistas e reducionistas sobre as cenas pretas e, igualmente importante, contribuir para a ampliação das experiências de criar-pensar nas artes contemporâneas negras. O projeto, desse modo, abre campo para problematizações sobre o que as negras/os querem contar, abordar, investir, atacar, valorizar, desmontar, elogiar, poetizar, memorizar e recusar. Distingue-se por seus movimentos de escolha por narrativas e linguagens. Logo, a […] Polifônica Negra firma-se como aquilombamento. Uma geografia cultural. Lugar de construção de conhecimento que aponta para outros paradigmas no fazer artístico e na análise cultural. (PATROCÍNIO, 2021, p. 96, grifo da autora)
E como uma performance-aquilombamento, o trabalho Sobre o que ainda não sabemos, de Grace Passô (2017), trouxe para a cena novas práticas de dramatização do real e modos novos de fazer sentir os dramas que assolam as pessoas negras. Indo na dor de ter a humanidade reduzida a um xingamento animalizador, “macaca”, a atriz o ressemantiza , atribuindo- lhe outra significação.
A performance se realiza na repetição da palavra “macaca”, falada e decantada de várias formas, jeitos, tons, volumes, intenções e ritmos:
macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca
macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca macaca.1 (PASSÔ, 2017)
A repetição da palavra “macaca”, aqui, é uma repetição performática, ou seja, dela surge o novo, algo que provoca tensões, deslocamentos e criticidade. Em cena, uma atriz que expurga um xingamento carregado de sentido aprisionante. Ao, radical e exaustivamente, enunicar tal palavra, Passô a transforma, diluindo seu sentido animalizador. E o novo se instaura à medida que a nova significação começa a ser operada, a partir do ritmo, da intenção, da ironia, do volume e, principalmente, do desejo da performer de expressar e traduzir modos de subjetividade negra.
Grace Passô, Polifônica Negra. Foto: Lucas de Bois
Como forma na performance, a repetição excede a prática do depoimento, procedimento muito utilizado nas teatralidades negras, e se estabelece por meio da relação entre o que é feito e os modos de ver fazer, produzindo uma forma de ver que emerge da potência dos conflitos e das inquietudes. O significante “macaca” ganha significados outros que inscrevem, devagar-devagarinho, a performance em uma dimensão fabular.
A repetição do significante “macaca” […] estabelece fissuras na contínua história de animalização das pessoas negras. Dela se tecem e retecem as lembranças e rememorações traumáticas não como simplesmente a particularidade de um acontecimento, mas como aquilo que se torna criação, emergência do novo, ato subversivo de (re)lembrar criador e (transforma)dor. Denunciar, esvaziar a palavra “macaca” de seu sentido aprisionante e animalizador e transformá-la, nessa perspectiva, estabelece-se como possibilidade de expressão de desejo, portanto, ato libertador na medida em que, por meio de sua repetição, a palavra atravessa e modifica os corpos da atriz e do público e vai se despregando da couraça desumanizadora de que o xingamento a reveste. De sua repetição com contornos e camadas, quase num processo de hipnotismo, a palavra “macaca,” numa poética exorcista, passa a ser operada com uma significação singular: transformar o xingamento, aqui, implica não se identificar com quem xinga e esvaziar em ato, em cena social, o aniquilamento presente no gesto animalizador. (PATROCÍNIO, 2021, p. 88)
Grace Passô, desse modo, lida com o trauma, o sofrimento e a dor, ao mesmo tempo que faz desse trauma, desse sofrimento e dessa dor uma escolha estética que, mais do que ser uma resposta e/ou revide ao xingamento, é uma abertura para novas vias do discurso. O corpo em performance e que é performance de Passô, no exercício de ressemantização do xingamento, invoca silenciosamente a palavra “negra”, assim como o faz a artista afro-peruana Victoria Santa Cruz em seu poema-performance Me gritaram negra. É como se, depois da exaustão a que a própria atriz e o espectador foram levados, devido à repetição do vocábulo “macaca”, a performer de Sobre o que Ainda não sabemos dissesse, repetidamente, não “macaca”, mas “negra”. Assim, a performance se aproxima, a partir do jogo entre o dito e o não dito, do poema:
Tinha sete anos apenas, apenas sete anos,
Que sete anos!
Não chegava nem a cinco! De repente umas vozes na rua me gritaram Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
“Por acaso sou negra?” – me disse
Sim!
“Que coisa é ser negra?”
Negra!
E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia. Negra!
E me senti negra, Negra!
Como eles diziam Negra!
E retrocedi Negra!
Como eles queriam Negra!
E odiei meus cabelos e meus lábios grossos
e mirei apenas a minha carne tostada E retrocedi
Negra!
E retrocedi […]
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! E passava o tempo,
e sempre amargurada
Continuava levando nas minhas costas minha pesada carga
E como pesava!… Alisei o cabelo.
Passei pó na cara,
e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra!
Até que um dia que retrocedia, retrocedia e que ia cair Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
E daí? E daí? Negra! Sim Negra! Sou Negra! Negra! Negra!
Negra sou Negra!
Sim
Negra! Sou Negra! Negra! Negra! Negra! sou
De hoje em diante não quero alisar meu cabelo
Não quero
E vou rir daqueles,
que por evitar – segundo eles – que por evitar-nos algum dissabor
Chamam aos negros de gente de cor
E de que cor!
Negra
E como soa lindo! Negro
E que ritmo tem!
Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro.
Afinal
Afinal compreendi
Já não retrocedo
E avanço segura
Afinal
Avanço e espero
Afinal
E bendigo aos céus porque quis Deus que negro azeviche fosse minha cor E já compreendi
Afinal
Já tenho a chave!
Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro Negro.
Negra sou!
(SANTA CRUZ, 2015)
Invocar o poema-performance da poeta e ativista afro-peruana, dito no silêncio do intertexto e no jogo vocal e corporal da atriz-performer, é a possibilidade de presentar uma imagem outra refletida para além de um espelho já gasto, que oferece a quem ver a oportunidade de fissurar as aparências e engendrar novas significações e novos tipos de sujeitos. O poema se realiza “no jogo de dupla fala e sentido performado pela atriz, o que lhe permite agir nos interstícios da coerência ideológica e lançar-se, também, em perene processo de libertação”. (PATROCÍNIO, 2021, p. 91) Tal jogo, como aponta Leda Maria Martins (1995), caracteriza as culturas negras, logo, também, as teatralidades, uma vez que se manifesta com uma função ideológica, refletindo tanto na formação de sentido quanto na elaboração de formações discursivas e de modos de agir de dupla referência/dupla face. Assim elaborado, o jogo indica, em vários níveis, um diálogo pautado na interterxtualidade e na interculturalidade entre as formas de expressão ocidentais e africanas, anunciando a encruzilhada mesma que é a cultura afro-brasileira.
Nesse sentido, Passô institui um jogo jogado no entres da aparência e da representação, visando, assim, traduzir a diferença. Entre o que é explicitamente dito e o que é performando no silêncio dos gestos e das intenções, a atriz abre uma fresta que fende a representação essencialista sobre as pessoalidades negras e fabula subjetividades. É nesse espaço desejado e construído que ela elabora para si mesma uma identidade mais fugitiva e performática, além de um pensamento crítico sobre a História.
Esse jogo diz sobre os processos de resistência, preservação e transcriação das culturas negras, que, desde a travessia atlântica, foram obrigadas a driblar os processos de submissão e de poder instituídos. A singularidade das culturas de matriz africana, ressignificada em terra brasilis, é diretamente ligada ao fato de ter “vivido uma estrutura dupla, em ter jogado com as ambiguidades do poder e, assim, podido implantar instituições paralelas”. (SODRÉ, 2005, p. 99) É a partir dessa estrutura que a ordem simbólica negra brasileira se desenvolveu de forma descontinua e assimétrica:
Um desenvolvimento simétrico teria feito desse continuum [africano] apenas uma religião, uma formação mística, entre outras. Sua originalidade está em sua pletora de diferença em relação à totalidade ensejada pela ordem africana (desde o sistema das relações de parentesco até particularidades míticas) e, ao mesmo tempo, em relação ao movimento histórico-culturalista das classes dirigentes brasileiras. No interior da formação social brasileira, o continuum africano gerou uma descontinuidade cultural em face da ideologia do Ocidente, uma heterogeneidade atuante. (SODRÉ, 2005, p.100, grifos do autor)
A ideologia ocidental pensa e concebe o real através de uma projeção fundada numa suposta verdade absoluta e universal, ao contrário das culturas negras que se fazem e refazem, fora-dentro-fora da cena, no jogo das aparências e da ironia. Sobre o que ainda não sabemos (PASSÔ, 2017) se forja nos interstícios da linguagem, do jogo e do corpo da negrura sendo texto e discurso produtor de epistemologias do desejo.
É nesse ponto do jogo que a ironia se concretiza como figura retórica, indicando, na ambiguidade entre o dito e o encenado, a impossibilidade de estabelecer sentidos definitivos para as coisas no mundo. Situada entre o verso e o reverso, por versos, da situação, a ironia como forma de saber funda um espaço inteligente para enfrentar a dor e os traumas causados pelo racismo. E, para além disso, talvez o mais importante quando se pensa em processos criativos, transforma a dor e o trauma esteticamente ao contestar as premissas do racismo estrutural e liquidar suas convicções, abrindo caminhos para que o desejo se anuncie.
A ironia se instaura na performance quando Passô, a partir da repetição da palavra “macaca”, opera uma mudança no modo de dizê- la: passa do tom afirmativo para o interrogativo, criando uma espécie de subversão da situação:
Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? Macaca? (PASSÔ, 2017)
À pergunta “macaca?”, a atriz-performer tece uma resposta elaborada por meio do seu corpo-texto-discurso: lançando mão de gestos e movimentos que se ligam indubitavelmente ao seu valor como individuo, Passô evidencia para quem tenha dúvida toda sua profunda humanidade de mulher negra. Ao transformar a suposta ausência em presença e integrar ao saber perspectivas outras, a performance destrói todos os preceitos e preconceitos dados. E a refinada ironia instaurada aqui constrói imagens-textos que cumprem uma função emancipatória. Assim, a performance fissura as imagens desumanizadoras criadas sobre os corpos da negrura, ao mesmo tempo que projeta o corpo da atriz Grace Passô como um corpo que performa um saber hieroglífico, típico das identidades subjugadas e animalizadas. Entender o corpo da atriz dessa maneira é admiti-lo na sua habilidade de sobrevivência e na sua potência de criação, que afirma a imaginação, no sentido atribuído por Didi-Huberman (2011), de produção de imagens como modo de fazer política e elaborar pensamento.
Grace Passô, Polifônica Negra. Foto: Lucas de Bois
É nessa perspectiva que as teatralidades negras usaram e usam o palco cênico como dispositivo de uma poética-política, em que as questões estéticas e éticas se fundem, fazendo emergir poéticas e modos de organização que tentam, contínua e obstinadamente, suturar, com o mínimo possível de dor, as cindidas humanidades. Buscando e criando a própria linguagem est(ética), artistas, coletivos, projetos e/ou festivais constroem mecanismos que fissuram tanto os modos essencialistas de representação quanto os de conceber e fazer política.
Nas últimas décadas, o surgimento dos aquilombamentos éticos e estéticos e suas novas formas de territorialização fez sobrevir sujeitos que “produzem falas e existências outras, reconhecem outras tradições, criam novas formas de sociabilidade em cena e, consequentemente, dão nova dimensão pública ao fazer teatral”. (PATROCÍNIO, 2021, p.186) Artistas inseridos nesses aquilombamentos, que fazem de seus corpos o quilombo em si mesmos, tecem cenas, no teatro e fora dele, cujo objetivo é fabular e produzir diferentes realidades a partir do entendimento crítico e criativo das estruturas sociais, políticas e culturais brasileiras.
Nesse sentido, esses artistas fazem três importantes movimentos ao criticar as contradições sociais, repensar outros modos de organização social e elaborar suas práticas e experiências artísticas pautadas no interesse em evidenciar o plural das existências e das estéticas negras. Tal elaboração, como vista na poética de Grace Passô, aponta para:
[…] uma mirada estética cada vez mais interessada em não se limitar e reproduzir acriticamente as imagens redutoras de existências negras, os pensamentos dualistas acerca do bem e do mal e os discursos sobre a negrura como um conceito de sentido único e absoluto. Esses teatros nos dizem também, e sobretudo, de um fazer estético ligado diretamente a várias temporalidades: uma elaboração da experiência do tempo na busca por superar e reelaborar o racismo – passado que não passa –, não para seguir em frente, numa perspectiva de progresso, mas para implodir essa noção de tempo linear e cronológico e reelaborar a experiência negra de tempo, os modos como as pessoas negras vivem e são resultados dessas experiências temporais, além de colocá-las em perspectiva. (PATROCÍNIO, 2021, p. 186)
Sobre o que ainda não sabemos (PASSÔ, 2017) não finda ou delimita sua potencialidade, antes, diz de modos de produção da diferença e da criatividade, no exercício de traçar e trançar caminhos que levem a existências mais especulativas. Não se esgota em si mesma, indica a liberdade como condutora do processo criativo, num movimento radical de pensar a negrura como conceito semiótico, forjado no âmbito das relações. Pois aquilo que funda os sujeitos negros não é apenas o tom da pele. As experiências negras são multirrelacionais, habitam e experienciam as temporalidades e a subjetividade, que se perfaz na cor, mas também a excede. O que se tem nessa abertura para a liberdade é a emergência e a afirmação de sujeitos que enunciam sua própria história e identidade. É dessa enunciação que é possível cocriar, fora dos palcos, formas de afeto e de criações epistêmicas tecidas nas poéticas de relacionalidade, ou seja, os aquilombamentos. Como propõe Leda Maria Martins (2002), no artigo “Performance do tempo espiralar”, no jogo espiralar do tempo, “no qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação […] tudo vai e tudo volta” (MARTINS, 2002, p.84), entre o passado e o futuro, esses aquilombamentos, no presente, afirmam uma poética-política contrária a todas as formas de subjugação e comprometida com os modos associativos e performativos, que clamam pelo direito à opacidade. (GLISSANT, 2008) Formam, assim, um quilombo do “[…] desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos, a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca”. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 154-155, grifo do autor)
Logo, na contemporaneidade, esses quilombos do desejo, redes de afeto e convivência ética e estética, nas suas relações de encantos, contato, contaminações e transcendências, são fundamentais para a múltipla experiência de ser negra e negro de muitos artistas e para a tessitura, igualmente múltipla, das teatralidades. Buscando a própria ressurgência, os aquilombamentos afirmam seus quereres e irradiam seus lampejos.
Referências
BRITO, Deise Santos de. Casamento de preto: um estudo a respeito do corpo negro a partir de Josephine Baker e Grande Otelo. 2019. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2019.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. 2.ed. São Paulo: 34; Rio de Janeiro: Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Ucam, 2012.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
GLISSANT, Édouard. Pela opacidade. Tradução de Henrique de Toledo Groke e Keila Prado Costa. Revista de Criação e Crítica, São Paulo, n.1, p.53-55. 2008.
hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra.
Tradução de Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.
MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995. MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI,
G.; ARBEX, M. (Org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p.69-92.
MOMBAÇA, Jota. A plantação cognitiva. São Paulo: Masp Afterall, 2020. Disponível em: http://masp.org.br/uploads/temp/temp- QYyC0FPJZWoJ7Xs8Dgp6.pdf. Acesso em: 23 jul. 2021.
NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, A. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza: Imprensa Oficial, 2006. p.117- 125.
PASSÔ, Grace. Sobre o que ainda não sabemos. Belo Horizonte: [s.n.], 2017.
PATROCÍNIO, Soraya Martins. Dramaturgias contemporâneas negras: um estudo sobre as várias possibilidades de pensar-ser-estar em cena. 2021. Tese (Doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021.
SANTA CRUZ, Victoria. Me gritaram negra. Universidade Livre Feminista, Brasília, DF, 21 mar. 2015. Disponível em: https://feminismo.org.br/me- gritaram-negra-poema-de-victoria-santa-cruz/18468/. Acesso em: 28 jul. 2021.
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito da cultura no Brasil. São Bernardo do Campo: Lamparina, 2005.
SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.
1 A performance compôs a programação do projeto/mostra Polifônica negra, realizada em Belo Horizonte, entre os dias 3 e 7 de maio de 2017. O texto da performance não está publicado.