Crítica a partir do espetáculo “A Festa do Pijama”, do Grupo Oriundo de Teatro
– por Diogo Horta –
Formar público para o teatro infantil é um dos grandes desafios atuais. Se a ausência de público é sentida no teatro adulto, no infantil parece ser ainda maior. Some-se a isso o fato de o teatro infantil sofrer com menos interesse da classe artística e ter menos projetos, festivais e, inclusive, críticas que o valorizem. O horizonte deste texto e de outros que virão sobre espetáculos infantis é justamente promover reflexões que nos permitam reencontrar o teatro para a infância em sua potencialidade, tanto para os artistas quanto para o público.
Neste sentido, pretendo refletir neste texto sobre o espetáculo “A Festa do Pijama”, mais recente trabalho do Grupo Oriundo de Teatro. Desde 2007 o grupo desenvolve suas atividades com espetáculos voltados para o público adulto e também para o infantil. Dentre os seus espetáculos, é importante destacar dois dedicados às crianças: “Quem Pergunta, Quer Resposta” e “O Mistério da Bomba H_______”, tendo este último circulado por todo o Brasil dentro do projeto Palco Giratório do Sesc em 2014.
A nova montagem do Grupo Oriundo tem como base a música. O espetáculo gira em torno das canções compostas por Tatá Santana e oferece ao público letras, melodias e ritmos variados com elementos importantes para divertir e suscitar reflexões em pais e filhos.
Em busca de entendimento sobre a ideia de diversão
As investigações de Stephen Nachmanovitch (1993) no livro “Ser Criativo” trazem a ideia de diversão como intrínseca aos processos artísticos e como função vital do homem no contato com sua criatividade.
A improvisação, a composição, a literatura, a pintura, o teatro, a invenção, todos os atos criativos são formas de divertimento, o ponto de partida da criatividade no ciclo de desenvolvimento humano e uma das funções vitais básicas. Sem divertimento, o aprendizado e a evolução são impossíveis. O divertimento é a raiz de onde brota a arte original; é o material bruto que o artista canaliza e organiza com as ferramentas do conhecimento e da técnica (NACHMANOVITCH, 1993, p. 49).
À luz desta breve reflexão, buscamos compreender a diversão no teatro infantil e mais especificamente no espetáculo “A Festa do Pijama”. Me parece, primeiramente, que no teatro infantil o divertimento ocupa lugar preponderante já que a infância é momento de excelência desta função vital básica do homem. O teatro na infância, portanto, assim como outras práticas sociais infantis, está sustentado em uma experiência de diversão na qual a criança partilha elementos sensíveis em comunidade. E se a diversão é fundamental para o aprendizado e para a evolução, como acredita Nachmanovicth (1993), ela deveria ser elemento central das obras que serão as primeiras experiências do indivíduo no contato com a linguagem teatral.
Mas como identificar os elementos que promovem diversão?
A experiência como público, tanto no teatro adulto como no infantil, aponta diversos caminhos para responder a essa pergunta, mas, sobretudo, que a diversão vai ser diferente para cada espectador e que um mesmo espetáculo poderá promover graus muito diferentes de diversão no público (ou até nem promover nenhum). Se estamos de acordo com Nachmanovitch (1993) de que todos os atos criativos são geradores de divertimento, cabe entender esses graus de diversão de uma obra e se os elementos que o promovem fortalecem ou reduzem a experiência artística como um todo.
Partimos então para uma segunda questão: quais elementos conduziriam o espectador mirim a um maior grau de diversão?
No senso comum, considera-se que um bom espetáculo infantil deve “chamar e prender” a atenção das crianças. Por esse motivo, grande parte dos trabalhos voltados para a infância possuem cenários, figurinos e iluminação com muitas cores, bem como músicas com andamentos rápidos e interpretações muito expressivas em ritmo acelerado. Além disso, a maior parte das peças infantis se constrói a partir de uma narrativa que possui personagens infantis, heróis/heroínas e vilões, com uma estrutura simples de começo, meio e final, geralmente feliz.
Permito-me supor que o objetivo desses espetáculos serem construídos dessa forma diz respeito a uma possível facilidade e familiaridade que a criança teria para receber o espetáculo e, com isso, ter uma experiência mais divertida no teatro. Talvez seja por esse motivo também que algumas produções infantis apostem em personagens do cinema como Elsa, Ana, minions[1], entre outros (para ficar com referências mais atuais), por serem de amplo conhecimento das crianças e, portanto, supostamente de mais fácil acesso e apreensão. Será? Estamos fazendo apenas reflexões sobre esse aspecto.
No espetáculo “A Festa do Pijama”, encontramos poucos dos elementos acima mencionados. O figurino da peça é simples já que quatro atores/músicos estão de pijama, com várias cores, mas todas com tons mais claros. O cenário também é composto por algumas almofadas e objetos infantis ao redor dos nichos principais dos quatro integrantes do elenco. Ao fundo está o principal elemento de composição visual do trabalho, um ciclorama branco que é ora iluminado com cores intensas e vivas e ora utilizado para as projeções que acompanham a montagem. As músicas não têm apenas andamento rápido, nem os atores estão interpretando de forma exagerada nem há uma narrativa a ser seguida. Portanto, o grau de divertimento neste espetáculo, que considero ser alto, é atingido por meio de outros elementos que fogem um pouco do que se vê habitualmente.
Um aspecto a se observar na montagem é que a diversão é atingida tanto nos adultos como nas crianças e que isso se dá na medida em que vários elementos da peça (a projeção, a luz, as letras das canções, as cenas entre os atores etc.) surpreendem o espectador em diferentes camadas e abordagens. Nesse sentido, a festa é elemento prometido já no título e surpreende para além das expectativas na montagem. Isso porque o espetáculo não representa nem narra a história de uma festa de pijama, e sim promove, de fato, uma espécie de festa no teatro na qual a participação do público é importante e feita com respeito em todos os momentos.
Como um exemplo desses recursos que surpreendem, podemos citar a canção “Fofinho #sqn”, construída apenas com palavras consideradas proibidas para as crianças, enquanto a projeção mostra figuras, desenhos e imagens dos elementos presentes na letra. Mas não fica apenas nisso, pois no decorrer das imagens surge de dentro de um desenho de cocô a imagem do Congresso Nacional em Brasília. Mesmo que não reconhecida por crianças menores, todos os adultos e uma parcela das crianças identifica o sentido dessa segunda imagem revelada. Decorre disso não apenas divertimento, evidente pelo riso da plateia, como também reflexão, ou pelo menos, recordação do atual cenário político brasileiro. Estamos diante de uma montagem infantil que, portanto, não cria um universo paralelo nem se furta da realidade.
A maior contribuição da montagem está, nesse sentido, não apenas em encontrar outros elementos para dialogar com o público infantil e produzir certo grau de divertimento, mas também em trazer provocações atuais e temas polêmicos no trato com as crianças de forma sutil.
Das doze canções do espetáculo, ao menos seis possuem provocações interessantes para o universo infantil, são elas:
- “Bom dia! Buongiorno! Bonjour”!: canção que retrata a dificuldade das crianças em saírem da cama pela manhã;
- “Lesse”: narra a história de uma cadela de estimação que termina por ser envenenada;
- “Receita paranoica de uma noite tranquila”: fala sobre os medos infantis e as superstições para vencê-los;
- “Pirraça’nroll”: tem como letra apenas frases como “papai eu quero um tablete! eu quero! (5x) Mamãe eu quero a monster high! eu quero! (5x)”;
- “Fofinho #sqn”: canção com palavras muitas vezes proibidas para o universo infantil como bunda, caganeira, arrotar, chulé, perebão, peidão, entre outras;
- “Adivinha das profissões”: canção que traz diversas profissões dentre elas a de político, com a seguinte provocação: “eu trabalho no Senado (…) enrolado com propinas, com processos, mas quem não? Insisto em dizer: sou contra a corrupção!”.
Além das letras, o espetáculo também conta com projeções e intervenções cênicas em várias dessas canções, momentos em que as críticas se fortalecem como na canção “Adivinha das Profissões”. Além da provocação citada acima sobre propinas e corrupção presentes na própria letra, a canção traz à tona o momento histórico de votação do processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef no Congresso Nacional. As manifestações de voto dos parlamentares são reproduzidas pelos atores em cena, posicionando para o público infantil um fato recente e polêmico da política nacional.
É possível que as crianças não compreendam toda a complexidade do fato, mas a possibilidade de sair dos reinos e contos de fada e trazer para a cena o Congresso Nacional em uma peça infantil já apresenta uma mudança considerável nas perspectivas do teatro para crianças. Além disso, este é um elemento que provoca os adultos e lhes instiga, querendo ou não, a uma escolha sobre comentar e explicar a cena para os filhos ou não. O que, talvez, não deixe de ser uma convocação para certo posicionamento político dos pais na relação com seus filhos.
Outro momento provocador para pais e filhos é a canção “Pirraça’nroll”, na qual os atores convocam as melhores crianças em fazer pirraça para subirem ao palco de forma voluntária e terminam a cena provocando os pais se eles não gostariam também de fazer isso para conseguir o que querem. A canção também ressaltam uma crítica ao consumismo desenfreado, inclusive entre as crianças. Cita os desejos de posse de um tablet, de uma Monster High (marca de boneca), de uma viagem para Disney, entre outras coisas que, com quase toda certeza, as crianças do público já desejaram na vida.
A possibilidade de um teatro para a infância que promova esse tipo de reflexão e instigue a conversa entre pais e filhos fortalece o teatro como lugar não apenas de diversão, mas também de questionamento. O teatro infantil por muitas vezes se voltou para histórias que pudessem levar a criança a uma determinada conduta, como escutar a orientação da mãe sobre o caminho para tomar rumo à casa da vovó e não se desviar dele, por exemplo. Em “A Festa do Pijama”, não há a orientação sobre qual caminho tomar, mas há um conjunto de canções sobre as quais se pode dialogar, além de cantar e dançar obviamente.
As cenas se concentram nos atores Isabela Arvelos e Enedson Gomes, que apresentam grande força em intervenções simples e comunicação direta com o público. Muitos atores, sobretudo os mais jovens, lidam no teatro infantil com aquele desejo de divertir e chamar a atenção das crianças “a todo custo”, num excesso de energia, movimentos e variações vocais. Isabela e Enedson reforçam o lado oposto disso, capturando a atenção do público com simplicidade, delicadeza e precisão.
Por fim, me parece importante refletir sobre a dramaturgia e a direção do espetáculo, ambas assinadas por Antônio Hildebrando – a direção, em conjunto com Anna Campos. Como já salientamos anteriormente, o espetáculo não representa uma festa e, portanto, não apresenta uma história com início, meio e fim, nem personagens definidos, nem vilões e heróis como já citamos. O que se vê nesta montagem, ao contrário, é sobretudo um jogo ou a colocação em cena de elementos que se inter-relacionam e compõem um todo que dialoga com o público diretamente.
As reflexões de Denis Guénoun (2004) sobre o teatro parecem ecoar nesta montagem infantil que, ao se distanciar da representação e focar a música, sem perder os aspectos cênicos, valoriza o encontro e o jogo ao instaurar outra relação com o público.
Neste sentido, ir ver um espetáculo é bem diferente de ir ver uma peça: ver uma peça era seguir uma história, situações e personagens em conflito. Ver um espetáculo é ver a teatralidade em sua operação própria: a operacionalização, o verter (a versão) no teatro, o gesto de levar para a cena uma realidade não cênica, poema ou narrativa (GUÉNOUN, 2004, P. 140, grifo do autor).
Assim, “A Festa do Pijama” estaria mais próxima da ideia do espetáculo já que organiza em cena um conjunto de elementos que se colocam diante do público em interação e conexão. Há sem dúvida o gesto de levar canções para cena que são independentes e algumas criadas aleatoriamente sem que tivessem a intenção de compor a montagem, como pude saber pelo programa do espetáculo. Dessa forma, a direção e a dramaturgia parecem ter como norte a proposta de organizar o material musical e, a partir dele, construir o trabalho. Daí a construção inversa de muitos musicais infantis que possuem sua trilha sonora composta a partir da estrutura narrativa que se pretende contar.
A dimensão que se destaca no trabalho, por esse motivo, é o jogo na sua acepção mais simples: o brincar. E talvez por ser brincadeira para os artistas, também o é para as crianças. Sinto que o teatro infantil respira novos ares nesse trabalho e que a atmosfera construída por ele pode abrir caminho para propostas mais instigantes e conectadas com a infância para além dos padrões estabelecidos há anos para o teatro infantil. A infância no século XXI já é outra, e o teatro para crianças precisa acompanhar e se renovar para este público.
Ao invés de apostar em trazer ao teatro o que já foi sucesso no cinema infantil, que tal brincar de explorar novos caminhos? O Grupo Oriundo de Teatro assume mais uma vez esse novo caminho e cria um espetáculo rico no que melhor tem a linguagem teatral a oferecer atualmente: ser teatro, ou seja, ser presença e encontro acima de tudo. Dessa forma, a nova montagem do Grupo Oriundo de Teatro reforça o compromisso de seus integrantes com a investigação sobre o teatro infantil e espero que faça crescer nas crianças (e também nos adultos) o desejo de voltarem ao teatro outras vezes.
REFERÊNCIAS:
GUÉNOUN, Denis. O Teatro é necessário? São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser criativo – O poder da improvisação na vida e na arte. 5ª Ed. São Paulo: Summus, 1993.
[1]Personagens dos filmes “Frozen: uma aventura congelante” e “Meu malvado favorito”.