Por Ruy Filho – Antro Positivo (*)
Muito se fala de uma cena contemporânea cujo teor dramatúrgico se confirma autorreferente. Ora como o contar biográfico, ora no uso simbólico da experiência real, a aproximação entre o vivido e o encenado explicita também a necessidade de tornar espetaculares ocorrido e sentido, produzindo uma espécie de materialidade assertiva, pela qual o artista deixa de ser meramente instrumento para se exibir estrutura de atenção. Ocorre não ser tão simples o uso do próprio, visto o processo exigir consistência em seu argumento. Então são poucos os trabalhos que, verdadeiramente, superam a narrativa ilustrativa. É possível dividir em duas as disposições: a que confirma o uso do particular como meio de resolvê-lo, e a que aceita e reaviva sua condição. A diferença fundamental está na perspectiva da culpa igualmente autorreferente e daquela transferida ao outro. E ambas, até certo ponto, se confundem demasiadamente com mecanismos terapêuticos sobre o próprio dizer.
Foto de Lígia Jardim |
Precisa mais, então. Oferecer ao dizer um processo pelo qual refazer a ação, recuperar o vivido, insistir em sua encenação, revelam a linguagem por sua instabilidade, na qual o corpo necessita entregar ao movimento não mais da culpa e sua resposta, mas ao trauma e seu estigma simbólico. Dá-se pelo trauma a recuperação sensível de manutenção de uma realidade a qual não se busca negar. Ao contrário, quer-se conviver em estado pleno, transformando o corpo no mecanismo mais próximo ao pessoal, enquanto é mobilizado o insuportável a uma longevidade exponencial.
Angélica Liddell pertence aos artistas que não buscam o perdão nem para si nem o oferece ao espectador. Aceita sua condição pela presença da manutenção da dor particular, colocando-se frágil e solitária, em uma espécie de inércia irresolvível do viver.
Há, evidentemente, o feminino como consequência a seu estado imposto ao existir. Sua condição de mulher sugere a confirmação de seu discurso. Todavia, Angélica afirma ser radicalmente contra o entendimento ideológico do feminino que, por questões socioculturais, antecipam a classificação ao reconhecimento da individualidade. Ser mulher é parte do trauma que não se quer solucionar, ainda que provoque a encenação também na caricatura de punição ao gênero. Essa dicotomia se resolve pela perspectiva de estar mulher, ou seja, na maneira estereotipada pela qual apresenta sua condição feminina, enquanto protege do outro sua própria individualidade. Assim, o corpo se mostra feminino, tal qual se espera, como pele nua, enquanto a individualidade é escondida pela pele encenada tornada narrativa autorreferencial.
Nada ali é real, apenas a potência do trauma que se insiste recuperar. O processo performativo sobre a construção da dor física, a construção erótica da dor, a submissão da memória ao erótico, a teatralização da necessidade da memória, o teatro como artificialidade de uma unidade possível de sentido apenas se colocado em cena o próprio artista como signo. O percurso em si revela a artimanha necessária para tornar a exposição do processo o discurso ao outro. É quando o espectador é revelado a ele mesmo igualmente autorreferente. Agora é o próprio sujeito quem assiste e não mais a construção ficcional de um observador anônimo e coletivo. Ao encarar a pele encenada como única tradução plausível, aquele que observa, a toca como invasor de sua intimidade, pois acessa os meios para assistir o indivíduo e não apenas a mulher. Então divide o trauma. Torna-o espelhamento de seus próprios, assumindo a culpa da necessidade de sua repetição ao desejar o espetacular do outro.
Ao assistir Eu não sou bonita o espectador faz-se responsável pela manutenção da dor da artista. Mas não desista. O encontro é radicalmente importante aos dois lados. Permita-se o exercício de oferecer sua responsabilidade. Pois à artista, o doer reflete mais do que um estado de internação na memória, mas, pelo não esquecimento, o gerar procedimentos de reconhecimento de alguém ainda capaz de lidar com o sentir e assim permanecer vivo, mesmo que seja mediante a teatralidade das reaproximações com os sentidos mais cruéis daquilo que lhe apresentem sua condição humana.
(*) Este texto faz parte das ações do Coletivo de Críticos na MITsp2014.