– por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras – UFMG/CNPq
Aradim me surpreendeu com a seguinte afirmativa: “Mamãe, o pior bicho é o bicho homem”. Imaginei o porquê da afirmativa: “Porque como os outros bichos, ataca e mata”. Ponderei que os outros animais também atacam os homens, ao que retrucou. “É, mas só quando o homem vai na casa deles. Então eles se defendem; eu não gosto de ser homem. Refleti sobre o diálogo de uma criança de sete anos que já se apercebe da ferocidade da pessoa humana. (Mércia Albuquerque, 2023. p. 24)
Nós não podemos ser todos iguais perante o futuro quando nós percebemos que não sabemos de nossa história. Nós não podemos ser todos iguais perante o futuro quando estamos ainda pedindo por segurança pública. […] Nós não podemos ser todos iguais perante o futuro quando a educação surge no país excluindo parte da população. […] Nós não podemos ser todos iguais perante o futuro quanto no teatro, que tem cerca de 7 mil anos, ainda assusta quando negro encontra sua expressão na arte. (Clayton Nascimento, 2022, p. 54)
No último final de semana de janeiro, fui ao Rio de Janeiro para assistir a duas peças que convocaram meus interesses de uma forma avassaladora devido aos temas que são discutidos por meio delas e que me tocam profundamente. A primeira, Lady Tempestade, envolve-me por causa das reflexões que são suscitadas em relação às agruras vivenciadas por milhares de sujeitos que sofreram o jugo da ditatura brasileira e isso me levou a retomar minha pesquisa de doutorado defendida em 2004 e que versava sobre o teatro de Plínio Marcos e Juan Radrigán[1]. Por outro lado, também sou enredado por esse trabalho pela questão afetiva, por se tratar de uma peça dirigida pela querida Yara de Novaes, a quem tanto admiro e de quem sou fã, e também por contar com dramaturgia da talentosa Silvia Gomez. A outra peça, Macacos, aciona meus interesses no que concerne às poéticas pretas, tema que impulsiona minhas pesquisas, e, principalmente, por se tratar de uma proposta que ansiei tanto assisti-la desde o momento em que tive conhecimento de sua existência, de forma tardia, em 2021; quando tive notícias das apresentações do solo de Clayton Nascimento, trabalho que já vinha sendo apresentado desde 2015-2016 e cujo texto tem sido atualizado ano após ano.
Assistir a Lady Tempestade com Andrea Beltrão é uma experiência intensa e inesquecível. Em cena, a atriz divide o palco com seu filho Chico BF e juntos dividem com o público a história de Mércia Albuquerque Ferreira (1934-2003), advogada nascida em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, e reconhecida nacionalmente como a “maior defensora de presos políticos do Nordeste”. A peça nos apresenta Mércia como mulher forte, aguerrida e que dedicou grande parte de sua vida à militância política, lutando em prol de salvar vidas e defender pessoas que foram detidas arbitrariamente por prisões injustiças cometidas pelas mãos da ditadura brasileira.
O espetáculo Lady Tempestade pode ser lido como uma ação performativa extremamente bem lograda, cujos resultados extrapolam o palco fazendo que a peça cumpra com a função de não permitir que a memória caia no esquecimento. Recordando o fato consolidado de que a opção do Brasil tem sido, através dos tempos, pelo apagamento das memórias relacionadas aos períodos de exceção pelos quais o país passou e cujas ações vis e insanas foram responsáveis pela vitimização de milhares de pessoas, com sua peça, Andrea Beltrão diz um potente NÃO ao silenciamento que tende ser imposto às pessoas que desafiam os sistemas políticos nefastos. Há que se destacar o fato de que os verdadeiros números de mortos e desaparecidos nunca foram devidamente esclarecidos pelas Comissões da Verdade e o assunto “ditadura” ainda é pouco discutido com profundidade, principalmente, entre os jovens e nas instituições de ensino.
O êxito da montagem é consolidado a partir do encontro e do envolvimento das três mulheres responsáveis pela criação do espetáculo: Andrea Beltrão, Sílvia Gomez e Yara de Novaes. Ainda que a interpretação de Beltrão se sobressaia no palco, não há como passar desapercebidas as presenças de Silvinha e Yara. Chama-me atenção, a sensibilidade de Silvia Gomez na (re)construção dramatúrgica da peça. Como espectador inquieto e interessado em ler e fazer fluir as peças para além da dramaturgia e das cenas, eu me fiz alguns autoquestionamentos: como “transformar” as memórias de Mércia Albuquerque em cenas performativas? Que momentos da vida da autora foram eleitos para serem incluídos na dramaturgia? Quais limiares da vida e da arte, da personagem e das artistas são envolvidos e mesclados no processo espetacular? Como friccionar história e memória com o contemporâneo que nos habita?. Nas palavras da dramaturga, “[e]sta é uma peça sobre ela, mas não se trata de sua biografia ou da reprodução literal de sua vida, e sim de uma invenção, uma ficção tendo como material principal o diálogo livre com os diários produzidos por ela sobretudo nos anos de 1973 e 1974…” (Programa, 2024). A perspicácia do olhar dramatúrgico de Silvia Gomez estabelece uma comunhão precisa com a mirada estética de Yara e Beltrão. Coube a Silvinha, encontrar as “melhores” palavras do diário de Mércia Albuquerque para serem vertidas em ações e momentos dramáticos a fim de serem incorporados ao corpo, à voz e à sensibilidade afetiva e intuitiva de Andrea Beltrão. O que é visto no palco do teatro Poeira são palavras que tomam forma, potência e sentido e são convertidas em cena; são palavras, inclusive as rasuradas e riscadas do diário, que, como a memória que também se constitui de forma rasurada e fragmentada, são compartilhadas com o público, evocando emoções distintas, destacando os momentos de embates, frustrações, dúvidas, ou melhor, os fluxos das sensações vivenciadas no cotidiano da advogada/personagem; são palavras que se convertem em pulsões políticas acima de tudo.
A direção de Yara é impecável e de uma sutileza sui generis. Como uma encenadora devidamente antenada a seu tempo, Yara retoma o conhecimento que possui sobre Mércia Albuquerque, aproveitando-se de outras experiências que ela vivenciou como atriz de quando integrou o elenco do filme Zé, de Rafael Conde[2], e, também, de pesquisas realizadas que a levaram ao conhecimento dos diários da advogada, que se convertem no processo de experimentação espetacular e dramatúrgica que é levado para as cenas, dando um viés histórico e sociopolítico para a peça, mas sem deixar de explorar as nuances afetivas e críticas que eram peculiares à cidadã, Mércia Albuquerque Ferreira.
Foto: Felipe Ovelha
Andréa Beltrão está plena em cena. Com uma interpretação envolvente e sensível, a atriz conduz o espectador para ir tomando ciência dos fatos que integraram a vida e o diário de Mércia Albuquerque. O texto, na voz e na partitura física da atriz, ganha nuances que afetam o espectador em vários lugares, proporcionando uma incursão no tempo e espaço, acessando as memórias da advogada, seus feitos, mas também suas angústias, momentos de revolta, tudo isso mediado por um veio crítico e uma ironia perspicaz que dá, inclusive, alguns momentos de humor e leveza à montagem, quando, por exemplo, a atriz dirige nomes não convencionais aos seus opositores – gafanhotos, ignorantes, sujos –, com o propósito de “insultar” aqueles contra os quais lutava cotidianamente. É interessante observar a cumplicidade da atriz com o seu filho Chico durante a apresentação. A troca que acontece no palco é maior que uma simples estratégia de direção que priorizou esteticamente por realizar a execução e operação da trilha sonora diante da presença do público. Há uma relação de sintonia entre a atriz e ator – Beltrão/Chico, mãe/filho, Mércia/Aradin –, muito rica de ser presenciada, criando uma linha muito tênue em que as palavras, ações e partituras físicas dizem para além do palco.
No diário de Mércia Albuquerque Ferreira, numa ocorrência do dia 31 de dezembro de 1973, ela descreve:
O ano terminou, o tempo passou, e eu, como Carolina de Chico Buarque, não vi o tempo passar. Eu não vi o tempo passar, empenhada na luta pela liberdade, pela paz dos que me confiaram uma tarefa. Muita coisa deixou de ser feita, ou melhor, muitos objetivos não foram alcançados, mas continuarei tentando em 1974. (Ferreira, 2023, p. 69-70)
É singular pensar em como memórias emergem do tempo e, por sua vez, em como o tempo aflora outras e novas memórias. As palavras de Mércia denotam o seu afã no ato contínuo de mudança e ensejo de dar continuidade à missão de dar prosseguimento à defesa de pessoas que necessitavam de seus quefazeres jurídicos. Por outro lado, em suas considerações sobre a peça e sua construção espetacular, Yara comenta que “Não foi premeditado, mas simbólico como este espetáculo encontrou seu tempo para estrear neste ano, 2024, marca de 60 anos do golpe de 1964.” (Programa, 2024). Nada na montagem, sob a batuta de Yara, é aleatório. O diário de Mércia Albuquerque é trazido para as cenas do espetáculo de forma concreta e, ao mesmo tempo, extremamente simbólica levando a plateia a seguir cada ação que é performatizada por Andrea Beltrão, ora se envolvendo com as cenas, ora se distanciando das mesmas a partir do que elas provocam em cada pessoa presente.
A cena final surpreende. A atriz, num ato de rompante, começa a levantar os tapetes que cobrem o palco (o chão da casa, do apartamento): uma alusão à abertura do diário de Márcia Albuquerque? Das memórias da advogada? Do chão, vão surgindo dezenas de folhas – páginas do diário, fragmentos de textos, imagens de pessoas, rostos de pessoas desaparecidas – que vão sendo lançadas ao vento, como se as palavras/pensamentos/ações de Mércia Albuquerque tivessem que, ou melhor, exigissem, sair daquele espaço para ganhar outros espaços. Assim como o livro que é lido e pode ser repassado para outros leitores, aquelas folhas não podem findar ali, no palco do Teatro Poeira; elas, como a história de Mércia Albuquerque Ferreira urgem extrapolar a cena.
Lady Tempestade, de fato, provoca uma tormenta de emoções no espectador e foi essa sensação que pude vivenciar no dia 26 de fevereiro ao assistir à apresentação que, ao final, contou com a presença de filhos e netos de pessoas desaparecidas pelo sistema ditatorial brasileiro. Eu, assim como todos os presentes, acredito, nos sentimos completamente arrebatados por termos tido a possibilidade de presenciar esse momento histórico na trajetória da encenação, que espero que tenha uma larga e intensa estrada a ser percorrida e que, principalmente, possa continuar tocando milhares de espectadores, levando a história de vida de Mércia Albuquerque Ferreira para inúmeros espaços.
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No final de 2021, eu tive acesso, pelas redes sociais, ao trabalho de Clayton Nascimento, Macacos, e fiquei extremamente curioso e desejoso de ter a oportunidade de assistir ao espetáculo. Em princípio, o anseio de saber mais sobre a peça se deu pelo nome que acionou em mim vários gatilhos relacionados às memórias traumáticas vivenciadas na infância e juventude. Eu me pergunto se será que existiu alguma criança negra de minha geração (anos de 1960 e 70) que não tenha sentido algum tipo de sofrimento por ter sido chamado[a] de macaco[a]? Nesses momentos, o nome de um dos seres mais inteligentes o reino animal se transforma em motivo de insulto, quase sempre, objetivando diminuir a autoestima de homens e mulheres pretos e pretas. Em 2022, a dramaturgia do espetáculo é publicada pela Editora Cobogó e somente no início de 2023 eu tive acesso à publicação com o texto integral do espetáculo.
Fernanda Montenegro, depois de assistir ao espetáculo em uma das apresentações realizadas em 2023, emocionada, diante do público presente, dirigiu-se ao ator, exclamando: “Um fenômeno. Você é um fenômeno. Espero que você faça essa peça para sempre. Até ficar bem velhinho!” (Montenegro in Nascimento, 2023, instagram). A declaração da atriz aguçou ainda mais o meu desejo de ver a montagem, pois, depois de ter lido o texto, continuei acessando a repercussão positiva que o trabalho recebeu não só por parte da grande dama do teatro brasileiro, mas também de dezenas de outros/outras artistas que, de igual maneira, com entusiasmo, se manifestaram pelas redes sociais sobre a qualidade do trabalho, do ator e sobre o impacto do texto em suas vidas. Na noite em que assistiu à peça, Dona Fernanda faz referência à atuação de Clayton Nascimento, elogiando também a sua performance: “Que qualidade de corpo. Que voz. Que fôlego. Honestamente, é preciso entender quando o sacerdócio se une a uma vocação. Uma alegria você ser filho dos seus pais. É uma alegria você ser brasileiro.” (Montenegro in Nascimento, 2023, instagram)
Somente no dia 27 de fevereiro de 2024, eu concretizei o meu anelo de assistir Macacos no Teatro dos Correios Léa Garcia e, sem dúvida, foi uma experiência inesquecível e que me afetou profundamente, pois, em vários momentos, eu me visualizei na “pele” do ator/personagem. Em seu monólogo, Clayton Nascimento, num palco desprovido de cenário e de adereços, com um figurino simples, um short preto (o ator usa somente um baton, que vai compor uma cena específica do espetáculo), durante duas horas e quarenta minutos, fala sobre o racismo estrutural que segue vigente no Brasil e, com um texto extremamente articulado, didático e militante (típico de grande parte das dramaturgias negras), escancara uma discussão sobre as relações de poder pelas quais as pessoas pobres e pretas continuam sendo submetidas.
MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! MACACOS! GHEGA!
MACACOS: Substantivo masculino no plural.
MACACOS: Palavra de origem africana utilizada para designar os símios ou primatas.
Se sabemos como tem acabado a vida do negro no Brasil nos último anos, nós já sabemos como acabará esta peça. Então, avise a todos: o macaco chegou. (Nascimento, 2022, p. 19-20)
Clayton escreve sua peça tendo como mote a situação vivenciada pelo goleiro Aranha, que, em 2014, recebeu a ofensa por parte da torcida tricolor gaúcha. O xingamento, ação que, desafortunadamente, insiste em se fazer presente no universo esportivo como a situação vivenciada por Vinícius Júnior na Espanha em vários momentos no ano de 2023, se transforma em mote para a escrita performática que aborda várias situações vividas por pessoas negras em nossa contemporaneidade. Em sua dramaturgia, Nascimento dialoga com nomes como Elza Soares, Bessie Smith, Machado de Assis, Dona Maria do Carmo (sua mãe), Therezinha Maria de Jesus (mãe do menino Eduardo, morto na porta de casa no Complexo do Alemão, com um tiro de fuzil disparado por um policial).
O texto é interpretado com excelência por Nascimento e, por meio dele, o ator imprime um discurso forte e incisivo, propondo um debate atualizado sobre as contradições de nosso tempo e realizando um chamado para uma reflexão constante sobre os lugares sociais nos quais o racismo atua. É muito bom poder observar como Clayton é um artista atento a tudo que passa em seu entorno e, em janeiro de 2024, dando continuidade à atualização de sua dramaturgia, ele integra novos fatos e aspectos sociais para a sua peça que continua em processo de reescrita desde 2015. As pessoas negras da plateia, por meio dos fatos que são trazidos para as cenas, têm a possibilidade de acionar memórias traumáticas, dolorosas e negativas, vivenciadas e relacionadas às questões de discriminação racial e social. Por outro lado, os brancos e as brancas são convidados a observar as diferentes facetas que a branquitude veste ao exercer posicionamentos sociais discriminatórios e misóginos.
A interpretação de Clayton Nascimento faz de Macacos uma grande aula-espetáculo. Nos primeiros 60 minutos da apresentação, aproximadamente, o ator, a partir de um trabalho físico intenso e a partir de uma corporeidade extremamente expressiva, apresenta ao público uma reflexão sobre o que representa ser negro (ser acusado de – e/ou ser induzido a sentir-se como – macaco) na sociedade brasileira. Nesse primeiro momento, o público é tocado pelo viés da afetividade. O ator retoma situações em que sujeitos e sujeitas negros e negras sofreram algum tipo de preconceito, revisitando casos de pessoas que foram assassinadas pelas mãos do poder público brasileiro, aquele que deveria proteger, mas, por um grande despreparo dos policiais, mata violenta e discriminadamente as pessoas, principalmente as pretas e inocentes. Num segundo momento, a interpretação de Clayton se torna “mais leve” e o ator joga com o público, como se esse estivesse numa escola do ensino fundamental (5ª série F, brinca o ator) dando uma aula, e, nesse momento, sua performance assume um caráter didático, “uma aula que você não teve” como é descrito em um dos Episódios do livro[3]. É nesse momento em que personagens negras são relembradas e o ator discorre sobre sua real importância dentro da história brasileira. São lembrados nomes importantes como o de Francisco José do Nascimento, que se colocou contrário à corte portuguesa, 11 anos antes da assinatura da Lei Áurea, dizendo: “Não. Não vou fazer a travessia de escravizados na minha jangada.” Clayton ensina e discute sobre a questão da “liberdade”, sobre o papel que o nome desempenha na história oficial brasileira através dos séculos. Não posso deixar de exaltar o momento em que o ator ensina ao espectador sobre o quão é inapropriado o uso da terminologia “escravo”. Depois de discorrer e explicar os vários equívocos históricos relacionados às questões sobre a etnicidade no Brasil, chega o momento clave da representação, em minha leitura analítica, em que o ator, didaticamente, convoca o público presente a fazer um juramento para não mais pronunciar a palavra “escravo”:
Ninguém nasce escravo, eles são colocados na condição de escravos.
2. Prometo não mais acreditar no livro de história que diz que negros e indígenas eram preguiçosos.
Eles eram assassinados diante de qualquer um no meio da praça.
3. Prometo não sair da calçada quando um homem negro estiver a caminho.
Foi criado no nosso imaginário de que o cidadão preto é perigoso e ladrão.
4. Prometo sentar ao lado de um negro ou de uma negra dentro do ônibus.
5. Prometo saber que a escravidão brasileira não acabou por viés humanitário e sim econômico.
Afinal, se não fosse a resistência negra, as pressões internacionais de invasão e bloqueios econômicos, o Brasil não teria abandonado o tráfico negreiro.
Então eu tenho uma pergunta para vocês. Vocês acham que o Brasil é uma país genuinamente democrático.
Tempo de escuta. (Nascimento, 2022, p. 57)
Esse tempo de escuta inaugura um breve momento de silêncio, que, paradoxalmente, se apresenta, no teatro, cheio de ruídos no consciente de cada pessoa. Para mim, como espectador e homem preto, é vigoroso e fundamental ver o ator em cena conclamando as pessoas a realizarem o juramento e é mais instigante ainda observar a reação das pessoas brancas presentes, a grande maioria delas repete as palavras em coro. Não obstante, chama-me a atenção o tanto que alguns se sentem extremamente incomodados ao pronunciarem as frases do juramento.
Ao final do espetáculo, Clayton, depois de passar quase três horas interpretando fatos vivenciados por pessoas que perderam a vida em cidades brasileiras por balas que encontraram seus corpos pretos – Ágatha, Amarildo, Cláudia, Eduardo, Genivaldo –, dá voz à Therezinha, que, na noite do dia 27 de fevereiro de 2024, é trazida para o palco a partir de uma gravação em que ela relata e denuncia a sua história. O ator, surge enrolado por uma bandeira em que aparece o rosto de várias pessoas vítimas do sistema policial brasileiro, agradece ao público presente, apresenta o seu livro, e, logo, estende a bandeira no palco do Teatro Correios Léa Garcia, que recebe uma luz branca e, então, escutamos o depoimento de Therezinha em off:
[…] E a tropa de choque ainda teve coragem de colocar um fuzil na minha cabeça dizendo que tinha matado um filho de bandido e como tinha matado um filho de um bandido, podia muito bem me matar também. Eu, naquele momento, eu não tava ligando se eu ia morrer, naquele momento, eu só queria meu filho de volta. E desde lá eu venho lutando por justiça por meu filho, mas essa justiça brasileira é uma justiça de merda, é uma justiça que não funciona, que a gente não pode chamar de justiça. Eu chamo de injustiça porque o que ela fez comigo, eu acreditando que a justiça ia ser feita e ela não foi feita, ela foi injusta comigo quando arquivou o processo em 2016, no dia 29 de novembro de 2016 o processo foi arquivado. E de lá pra cá, nada foi feito. Então a partir desse dia, eu não acredito mais em JPP. JPP significa, para quem sabe significa, Justiça, Político e Polícia, são todos safados, eu não acredito. A justiça brasileira ela só funciona para quem tem dinheiro porque ela só funciona quando a pessoa desembolsa ela funciona, como eu não posso desembolsar, eu não tenho condição de desembolsar, ela não funcionou, mas agora eu estou lutando, mas é lutando pela justiça divina, a justiça de Deus […] Eu como mãe, eu não cruzei os braços, eu estou investigando a morte do meu filho, eu já descobri muitas coisas, mas como existe segredo de justiça, existe um segredo de mãe, e é segredo de mãe eu não posso revelar, mas quando eu tiver com tudo nas mãos pronto vai ser uma reviravolta muito grande, mas eu tenho certeza que Deus está do meu lado porque agora quem está com esse processo é um advogado que nunca perdeu uma causa, que é Jesus, que é o meu advogado fiel. É isso que eu tenho para falar para vocês…
“A carne mais barata do mercado é a carne negra…” (música continua em off e a luz vai diminuindo até o black out).
As palavras de Therezinha Maria de Jesus não cessam de ecoar em mim e, acredito que, em todos os espectadores que tiveram a oportunidade de ver Macacos de Clayton Nascimento.
Referências:
FERREIRA, Márcia Albuquerque. Diários 1973-1974. Natal: Editora Potiguariana, 2023.
LADY TEMPESTADE. Programa. 2024.
NASCIMENTO, Clayton. Macacos. Monólogo em 9 episódios e 1 ato. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022.
Ficha Técnicas:
Lady Tempestade
com Andréa Beltrão
Direção: Yara de Novaes
Dramaturgia: Silvia Gomez
Cenografia: Dina Salem Levy
Desenho de luz: Sarah Salgado e Ricardo Vívian
Figurinos: Marie Salles
Criação e operação de trilha sonora: Chico BF
Desenho de som: Arthur Ferreira
Assistente de direção: Murillo Basso
Assistente de cenografia: Alice Cruz
Assistente de som: Caniggia e João Mattos
Operador de luz: Walace Furtado
Contrarregra: Nivaldo Vieira
Cenotécnico: Riquinho
Produção de figurinos: Fernando Átila
Camareira: Conceição Telles
Costureiras: Marki Aragão e Felipe Ovelha
Vídeos: Gil Tuchtenhagen
Projeto gráfico: Fábio Arruda e Rodrigo Bleque – Cubículo
Assessoria de comunicação: Vanessa Cardoso – Factoria Comunicação
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Comunicação digital: Bruna Paulin – Assessoria de Flor em Flor
Administração do perfil @andreabeltrao.oficial: Rosa Beltrão
Produção: Quintal Produções
Diretora geral: Verônica Prates
Coordenadora de projetos: Valencia Losada
Produtora executiva: Camila Camuso
Realização: Boa Vida e Quintal Produções
Macacos
Clayton Nascimento: Ator, Diretor e Dramaturgo
Danielle Meireles: Direção Técnica/ Iluminadora
Ailton Graça: Provocador Cênico
Aninha Maria Miranda: Direção de Movimento
Ulisses Dias (Bará Produções): Produção Geral
[1] Juan Radrigán e Plínio Marcos: contextos e textos dramáticos/espetaculares. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/ALDR-5X8G25.
[2] Zé é um filme estreado em 2023, dirigido por Rafael Conde e do qual Yara de Novaes integrou o elenco, momento em que teve conhecimento da história de vida de Mércia Albuquerque e de outras pessoas que se envolveram e/ou sofreram consequências do Golpe de 1964. A película teve como inspiração o livro José Carlos Novais da Mata Machado, uma reportagem, do pernambucano Samarone Filho. José Carlos da Mata Machado, carioca nascido em 1946, estudou na Faculdade de Direito da UFMG em 1964. Em 1968, ele foi detido durante o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em São Paulo, e condenado a oito meses de prisão. Foi novamente preso, em 1972, acusado de subversão, e, no ano seguinte, depois de torturado, faleceu, aos 27 anos, no momento da instalação do regime no Recife.
[3] Na publicação de Nascimento, o texto é dividido em Episódios, lembrando que o título do livro é MACACOS. Monólogo em 9 Episódios e 1 Ato.