— por Soraya Martins —
Reflexões e expansões a partir de Violento., de Preto Amparo (MG).
Foto: Pablo Bernardo
Da primeira vez, era força extrema ou enorme intensidade.
Da segunda, grande poder de ataque.
Da terceira, é o ressignificar da violência a partir da violência sofrida pelo corpos negros. É a violência estética que, na encruzilhada da cultura negra, performatiza gestos e movimentos que vão além de uma representação: o Preto Amparo em movimento produz imagens que tecem sentidos, nos contam histórias que os textos e as narrativas tradicionais e oficiais tendem a camuflar. O Preto traz na pele que o habita um repertório de conhecimento incorporado, invocado pela dor, cheiro, música e lembranças traumáticas ou não. Ele liga o profundamente privado com as práticas sociorraciais de exclusão.
E, da terceira, é também força extrema. É grande poder de ataque, excessivamente enfático. É revide “doce como mel. Pôncio Pilates lavou as mãos”.
Assisti a Violento. três vezes. Melhor, duas vezes vi a cena curta, que originou o “espetáculo”, e uma vez “o espetáculo”. Tive três experiências, vou falar da última que contém todas as outras.
Dia primeiro de fevereiro de 2018. Galpão 2 da Funarte. O Preto vestido com calças jeans, blusa de manga longa com capuz e tênis pretos e o carrinho de polícia atrás. Ele olha, na verdade, encara o público, fala com o olho. Ele para na minha frente, não me encara, me olha com cumplicidade, como se naquela troca de olhar comigo passasse um segredo, um axé para além do que se pode ver, afrografasse memórias e dissesse: “a gente comunga do mesmo lugar social. Esse meu olhar/falar/performar aqui, Soraya, não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir”. E segue para o Galpão 3.
Violento. começou.
O palco de Violento é a própria encruzilhada da cultura negra, marcado pela sutileza da iluminação. Do lado direito, a pipoca; do esquerdo, o carrinho de polícia; na frente, as flores; no meio, o balde com água; no fundo, outros elementos usados em cena como saco com café, martelo e incenso. Nessa encruzilhada, o corpo negro é pensado como conceito semiótico, definido por uma rede de relações, sem delimitar fronteiras discursivas. Dele é possível tecer verdades, encantos e sedução, com também fendas, rasuras e incompletudes.
Violento. é silenciosamente sinestésico…
A gente sente fisicamente a presença daquele corpo negro nu. E aqui não estou falando desse olhar do fetiche, que só consegue ver e interpretar o corpo preto no lugar do desejo. Não estou falando do corpo masculino da negrura que só faz “oferecer” medo ou violência. Não. Pelo menos, não para mim. Estou falando de um corpo negro que refuta a história oficial e a hierarquização dos saberes, consequente da hierarquia social. De um corpo mapeado por práticas de identidade individual e coletiva racializadas e marcado pelo gênero. E, principalmente ali, de um corpo adornado, em performance e que é performance que resguarda, nutre e cria uma estética violenta e docemente contestatória.
Ah! O cheiro do café e o café cobrindo como manto o palco-encruzilhada trançou tempos. Dos ancestrais, no limpar o terreno, plantar, colher, colocar no sol, socar no pilão à terra preta, fértil, pronta para o plantio, em que Preto desenha o arco e a flecha. O Ofá de Oxóssi caçador, senhor da fartura e da prosperidade. Terra de recriação.
A violência estética de uma poética que vê como belo aquilo que não pode ser evitado…
O carrinho de polícia. De brinquedo? E o martelo. Ploft. A violência docemente explodindo entre os cacos e os estilhaços, entre o carrinho e o martelo. Ploft. Só sabemos reagir com violência? Reproduzimos somente imagens que dão a ver nossas fúrias e ressentimentos? Colocamos em cena só a nossa nervura do real sem mediação criativa? Tem poética o ato de estraçalhar o carrinho de brinquedo da polícia?
… a violência estética de uma poética que vê como belo aquilo que não pode ser evitado…
E me vem James Baldwin, lá do O estranho no vilarejo, dizendo que “a fúria do menosprezado é pessoalmente infrutífera, mas absolutamente inevitável; essa fúria, tão raramente levada em conta, tão pouco compreendida, mesmo entre os que se alimentam dela diariamente, é um dos ingredientes da história”[1].
E me afoguei junto com o Preto no balde com água. Bebi anseios, meus e dos outros. Ficamos sem ar. Cuspimos água com gosto de “liberdade requenguela, cagona e manca”[2]. Mas somos acostumados, como diz Conceição Evaristo, a falar a partir dos entres, dos estilhaços e fendas das máscaras de flandres. Bem Anastácia.
Foto: Pablo Bernardo
Nem tudo são flores, nem tudo são rosas… eu fui a primeira a receber uma rosa vermelha. A mesma cumplicidade no olhar, lá do início, foi restabelecida. Dessa vez, eu-mulher-negra, não fui preterida….
A pipoca fecha, ou melhor, abre os cruzamentos, os lugares de contato e contaminações, de encontro e desencontros…
O Pedro é Preto e não comete crime. Menino preto foi morto “por engano” comendo pipocas. Tente comer a sua em paz! Como me sopra Allan da Rosa, “o B.O se leva na pele e no CEP”. Mas ainda bem que o milho é duro, grosseiro, se transforma com o quente do fogo, como num passe de mágica, em alimento.
Banho de pipoca para nós que somos pipocas! Que cuidamos bem das nossas fúrias, fazemos carinho nelas e as transformamos – não num passe de mágica – em letra, em performance, em gestos, em estudos, em balanço…
Violento., do meu dicionário: violência, resistência, negociação de perdas e ganhos e elaboração poética de uma linguagem que não se fecha e coloca o público em suspensão. E é nessa suspensão que ele – o público – é instado a buscar sentido, ou seja, uma espécie de poética da relação em que está em jogo a capacidade de lidar com a opacidade do sentido e incorporar essa opacidade ao próprio sentido.
REFERÊNCIAS
[1] BALDWIN, James. O estranho no vilarejo. In: Revista Serrote: uma revista de ensaios, artes visuais, ideias e literatura. n. 26, 2017.
[2] Trecho do poema Costas Lanhadas. ROSA, Allan. Reza da mãe. São Paulo: Nóz, 2017. p. 31.