Crítica de “Quarto 19”, de Amanda Lyra e Leonardo Moreira (SP)
— por Luciana Romagnolli —
“Essa é uma história, eu suponho, sobre um fracasso da inteligência: o casamento deles era baseado em inteligência.” Com essas palavras, a atriz Amanda Lyra inicia o solo “Quarto 19”, projeto seu de adaptação do conto homônimo de Dóris Lessing (1919-2013), vencedora do Nobel de Literatura em 2007, sob a direção de Leonardo Moreira (Cia. Hiato). No espetáculo que estreou em março no Sesc Pinheiros, em São Paulo, a mulher que fala diretamente ao público, embora tenha sido imaginada pela autora britânica décadas atrás (a publicação data de 1978) no curso ainda do que se convencionou chamar de segunda onda do feminismo, expõe feridas muito íntimas que fazem parte, ainda, da experiência de ser mulher heterossexual neste 2017, com o feminismo já em sua quarta vaga.
Num palco quase vazio, ocupado não mais do que por uma poltrona, uma mulher e suas palavras, o que é dito tem espaço para se dilatar, chegando aos ouvidos da plateia com muita concretude, e o modo como se diz é que desenha as nuances e seduz a escuta. Sob a narrativa forjada por Dóris Lessing e abocanhada por Amanda, de algum modo Madame Bovary (1857) faz-se presente, amadrinhando a história de desabamento emocional da personagem que a atriz assume ora em primeira, ora em terceira pessoa. Emma Bovary c’est moi? É aqui? Ainda, agora? Sim e não, talvez possa-se responder, considerando que algo da condição da mulher na sociedade permanece, mas o tempo passou e, diferente da personagem criada por Gustave Flaubert (1821-1880), essa mulher de 1978 e de 2017 já não busca em outro homem um ideal de romance extraconjugal que lhe acene com a promessa da felicidade.
Sua crise é contemporânea: a dessa mulher inteligente, informada, emancipada e crítica que crê provisoriamente que tais qualidades lhe permitirão desenvolver uma relação amorosa saudável com um homem igualmente inteligente e de mente aberta. Dois progressistas, dispostos a serem companheiros sem se sufocar com os padrões nocivos de comportamento vigentes numa sociedade ainda tão patriarcal, mas na qual existem mulheres e homens em busca de relações mais igualitárias. Dispostos a viver seus desejos e a não perder a sanidade diante de atos não monogâmicos. Dispostos a compreender e a respeitar o espaço do outro, a diferença do outro. Como se pudessem estabelecer, entre um homem e uma mulher, uma relação de forças equilibrada.
Dóris Lessing arma essa situação protegendo seus personagens das ingenuidades correntes (ou dos machismos mais toscos), para confrontá-los com os conflitos ainda mais insolúveis de um encontro amoroso heterossexual, especialmente um em que as diferenças sexuais ainda nos colocam diante do fato biológico de que só a mulher é capaz de parir e amamentar. E caso escolha esse destino – a maternidade – enfrentará o nosso despreparo cultural e social para viver essa experiência a dois sem a sobrecarga de um(a).
Ao eleger essa narrativa para seu solo, Amanda Lyra direciona nossa atenção sobre uma das principais nódoas persistentes no projeto feminista contemporâneo. Este, ao priorizar a crítica à maternidade compulsória, por vezes desguarnece a necessidade de se inventar modos de maternidade e paternidade menos sufocantes para as mulheres, que superem a narrativa da “superfêmea” que se contorce para “dar conta de tudo”.
Sim, é preciso que haja a opção de não ter filhos, e com ela, apesar das perdas ou cobranças sociais, vem uma maior autonomia da mulher sobre o seu tempo e destino. Quantas da geração em idade fértil no fim dos 1970 (como a personagem) não escolheram esse caminho para não se perderem de si? Porém, a maternidade precisa permanecer também uma escolha para que a mulher seja livre. Mas uma sociedade que não valoriza a forma como cada ser humano vem à vida, e na qual a paternidade é a mais oca das instituições, não é um lugar seguro para uma mulher ser mãe. Eis o papel a ser reinventado.
Das sutilezas
Escrito antes da publicação de “Problemas de Gênero” (1990) por Judith Butler, o “Quarto 19” sobrevive contundente porque desenha uma situação nada maniqueísta da inadequação de uma mulher (cisgênero e heterossexual) às expectativas construídas socialmente, inclusive por ela mesma. A simplicidade formal com que isso se apresenta deixa vibrar a complexidade gerada por o embate se dar com a figura de um marido distante da representação estereotipada do machista, cujas falhas são mais sutis. E os problemas que surgem, aparentemente menores, menos melodramáticos, são da ordem do desencontro entre diferenças não só individuais, mas de papéis sociais.
Todas essas questões subjazem o conto adaptado e performado por Amanda Lyra, valorizando o ato de narrar uma história em sua forma oral. Atriz e diretor, que já trabalharam juntos em “O Jardim”, empregam sua experiência de pesquisa das relações entre real e ficção para construir uma forma simples, na justa medida. Constrita a um depoimento direto endereçado aos espectadores presentes, redesenhando os contornos literários da matriz com a matéria orgânica da situação de encontro teatral e sua intimidade coloquial. E justamente porque está constrita, lateja.
É incomum, no teatro, ouvir as palavras tão vivas e encarnadas como se tornam quando ditas por Amanda. O trabalho de atriz é sobretudo este: tornar aquele depoimento algo que escutamos em cada nuance de movimento. Isso se efetiva tanto pela qualidade de uma oralidade poética adquirida pelo texto no tratamento para a peça quanto pela linguagem cênica adotada. Nesse sentido, “Quarto 19” parece herdeiro direto da experiência de Leonardo Moreira na direção de espetáculos como “Ficção” (solos mais ou menos autobiográficos feitos pelos atores da Cia. Hiato), com seu foco nos atores e na narração em primeira pessoa, nos espaços construídos pelos corpos, na relação de cumplicidade com a plateia, nas palavras com efeito de verdade.
Vazio
O palco quase vazio, então, é ao mesmo tempo espaço para que as palavras reverberem sem barreiras e metáfora do sentimento que invade aquela mulher. É imagem de seu refúgio externo e interno. A poltrona, única presença a concorrer com o corpo dela, indicia a concretude dessa narrativa e, como oásis em cena, será cenário do auge e do desfecho do desejo da personagem.
As questões de gênero que acompanham as expectativas e os papéis sociais assumidos paulatinamente afastam aquela mulher de seu desejo no que ele guarda de desconhecido e indomável, contribuindo para a ruína de uma identidade social que ela não pode mais sustentar. Debaixo dos destroços do ideal de vida conjugal, do ideal de mãe e do ideal de eu, o que se encontra é a perda de sentido mais absoluta, aquela que já não responde por gênero ou identidade e já não obedece nossa lógica social, por mais “esclarecida” que esta seja.
Amanda conduz essa descida com atenção a cada passo, numa economia de gestos que potencializa o valor de cada um. A cena mais bonita é justamente aquela em que toda contenção convulsiona em satisfação do desejo. Este que tão parcamente aquela mulher acessa e que poderia prover o ar que lhe falta se vivido com mais liberdade. A poesia da carne se instaura brevemente sobre aquela poltrona rasgando o modelo bem-comportado e racional que dominava a consciência da personagem e da narradora. A mesma racionalidade sobre a qual se erige toda a encenação, mas para expor sua espiral de desmoronamento e sua insuficiência.