Crítica do espetáculo “Os indicados”, com dramaturgia e direção de Vinícius Souza
– por Victor Guimarães –
Épocas de profunda convulsão social costumam ver nascer obras exasperadas, que abrigam no cerne de suas operações formais o desespero de seu tempo. Bastaria retornar à pintura do começo do século XX, ao cinema europeu do pós-guerra ou à arte latino-americana dos anos 1960 para encontrar empreitadas que buscaram lidar com os impasses de seu momento histórico na matéria plástica, dramática, sonora de suas escolhas. Nesse repertório, há dois extremos: as obras que, carregadas com a energia acumulada do tempo, oferecem respostas eloquentes ao imbróglio histórico; e as que, por convicção ou modéstia, decidem mergulhar na espessura da interrogação. Os Indicados pertence ao segundo conjunto. Enquanto boa parte do teatro mineiro hoje se esforça em oferecer frestas para o beco sem saída em que nos encontramos – basta atentar para a recorrência de momentos de catarse ao final das peças –, o espetáculo escrito e dirigido por Vinícius Souza, que atua em companhia de João Marcelo Emediato, decide se instalar em estado de dúvida.
Foto: Athos Souza
Com a desculpa de ensaiar um discurso para receber um prêmio para um trabalho que realizaram juntos, dois amigos de infância se reencontram depois de muito tempo. De início, sem medo da caricatura, os dois atores encarnam uma cisão bem típica de nosso tempo: de um lado, o rapaz de óculos e cabelo desgrenhado, irreconciliado com a família e com o mundo, que se esforça por se engajar na luta contra tudo que está aí (Vinícius); do outro, o jovem bem vestido, bem-comportado, inglês perfeito, que enxerga no prêmio um reconhecimento justo por seu trabalho (João). No fundo do palco, uma parede semiaberta instala uma relação constante com um “lá fora”, que volta e meia vem perturbar a fala dos personagens.
O ótimo tato para a comédia do texto e o evidente carisma dos atores conduzem um diálogo fluido, porém cada vez mais truncado, em que as feridas do passado e as do presente se revelam aos poucos. Fala-se muito, o tempo todo, essa fala atropelada que é tão nossa, essas subjetividades infladas que parecem não se conter nos limites do corpo. Mas o momento de maior concentração dramática é justamente um instante de silêncio, esse que se instala no teatro quando o personagem de Vinícius vem nos provocar, perguntando o que nós, espectadores, temos a dizer. A provocação é enfática e autoritária, e é importante que seja assim. O silêncio denso que precede a primeira intervenção do público – ou que permanece por alguns segundos que parecem horas – é ao mesmo tempo um índice da pasmaceira reinante “lá fora” (afinal de contas, ninguém sabe dizer como é que este país ainda segue amanhecendo todos os dias) e um trunfo do espetáculo, cuja verborragia existe para que, de tempos em tempos, um intervalo se instale: a cada vez que os personagens olham para trás ou nesse instante preciso em que nós nos entreolhamos cá dentro, uma inércia primordial nos inunda e não temos outra escolha senão o pensamento.
Uma decisão de iluminação é fundamental: os atores recebem os espectadores com as luzes acesas, e é assim que permaneceremos até o fim da peça. O que poderia ser um cacoete pós-dramático adquire um sentido muito preciso: a disponibilidade mútua ao olhar – dos atores e do público – nos engaja a todos em um convívio franco e direto, em um embate às claras que perpassará o texto, as relações entre os atores e destes com a plateia. À medida em que as contradições dos personagens começam a estalar no palco, as luzes acesas são a garantia de que não há uma separação estrita entre “eles” e “nós”. As carapuças ideológicas imaginárias saltam em voos rasantes, prêtes-à-porter.
Foto: Athos Souza
Uma mesma questão me persegue há algum tempo: como não fazer do teatro (ou da sala de cinema) um lugar de exposição de uma luta já travada em outro lugar, diante da qual não temos outra opção senão consentir (e, vez ou outra, engrossar o coro de “Fora, Temer!”)? Como não apaziguar a relação entre “eles”, os inimigos, esses que a peça ou o filme vêm combater, e “nós”, que viemos nos juntar à luta? Ou entre “eles”, as subjetividades marginais – mas soberanas – que se afirmam no palco ou na tela, e “nós”, que não temos outra opção senão nos identificar? Como não fazer da hora do aplauso o momento de conciliação entre a plateia e o palco, mas, principalmente, de reconciliação entre nós e nós mesmos?
Um momento crucial de Os Indicados encontra um outro caminho. No ápice das contradições mútuas, os atores literalmente trocam de roupa: o moço franzino tenta vestir o terno que lhe sobra por todos os lados, enquanto o rapaz mais corpulento tenta a todo custo se enfiar na calça apertada. A força da imagem produzida pela incongruência entre os corpos e os figurinos não é uma metáfora simples ou uma carta de intenções, mas uma maneira de multiplicar as contradições que os atravessam. Ao tornar literal uma das maiores obsessões políticas de hoje – colocar-se no lugar do outro –, o que Os Indicados encontra não é a confirmação de uma tese, mas um acontecimento corporal que só é possível naquele palco, na incoerência entre aquelas duas anatomias: há sempre algo que sobra, um pedaço estranho de corpo ou de roupa, e não há voluntarismo ou dieta que ajeite.
Quando os dois finalmente se engajam numa luta corporal tão intensa quanto ridícula, o emaranhado de carne e tecido que se forma no centro do palco nos mostra que já não é possível saber exatamente de que lado estamos nesse estica e puxa entre a revolta e a conciliação, a luta e o conformismo, o bom-mocismo e a rebeldia. Sem alarde, em meio à delícia de uma comédia engraçadíssima, Os Indicados trabalha vertiginosamente os dilemas do tempo no presente do palco, sem ceder aos programas dramatúrgicos do agora e com a consciência aguda de que é preciso, a todo custo, evitar “matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem”, como berrou Caetano naquele famoso discurso que, volta e meia, retorna para nos assombrar (como se fosse impossível escapar de suas altercações). Não porque o velhote já esteja enterrado de uma vez por todas, mas porque vê-lo ressurgir dentro de nós é sempre mais difícil.
FICHA TÉCNICA
Texto e direção: Vinícius Souza
Assistência de direção: Marcelo Castro
Elenco: João Marcelo Emediato e Vinícius Souza
Colaboração artística: Felipe Rocha
Figurino: Paulo André
Trilha sonora: Barulhista
Iluminação: Rodrigo Marçal
Operação de luz: Allan Calisto
Assessoria de imprensa: A Dupla Informação
Projeto gráfico: Letícia Naves e Vitor Carvalho
Fotos: Alexandre Hugo e Athos Souza
Vídeo: Pedro Estrada
Produção e realização: Planos Incríveis
Duração: 60 minutos
Classificação: 12 anos