Nos últimos meses, a discussão sobre a presença e a representação do negro no teatro de Belo Horizonte conquistou maior visibilidade a partir de duas ações realizadas por diversos artistas como parte do projeto “Rolezinho – Nome Provisório”, dirigido por Alexandre de Sena. Em agosto, durante o debate sobre Dramaturgia e Alteridade, na abertura do Janela de Dramaturgia, vários artistas negros e negras ocuparam o CentoeQuatro e, enquanto De Sena lia um manifesto poético pelo aquilombar-se, subiram ao palco e se posicionaram diante dos debatedores, numa atitude de afirmação da própria existência, contra o silenciamento e a invisibilidade. Em setembro, na última noite do Festival de Cenas Curtas, outro rolezinho colocou no palco do Galpão Cine Horto um grupo de quarenta artistas negros e negras para a leitura de um novo manifesto poético e culminou em um grito coletivo que ainda ressoa.
A convite do Horizonte da Cena, o professor e pesquisador Marcos Alexandre conversa com o ator e diretor Alexandre de Sena e a produtora Aline Vila Real, sobre suas visões do teatro negro na cidade.
— por Marcos Alexandre –
Falar sobre o negro, a cultura negra ou o teatro negro é sem dúvida uma possibilidade de dar visibilidade a uma estética artística que foi sendo construída e delineada a custas de muita história, negociação, ressignificação de memórias e identidades. No contexto teatral, nomes importantes marcaram a trajetória do negro na cena artística e na sua construção, tais como os de Abdias Nascimento (1914-2011), um dos fundadores do TEN – Teatro Experimental do Negro em 1944; do pernambucano Solano Trindade (1908-1974); das cariocas Léa Garcia (1933) e Ruth de Souza (1921); de Zezé Motta (Campos dos Goytacazes, 1944); do maranhense Ubirajara Fidalgo (1949-1986), ator, dramaturgo, diretor e criador do TEPRON – Teatro Profissional do Negro. E, na nossa contemporaneidade, grupos como Bando de Teatro Olodum (Salvador), Cia dos Comuns (Rio de Janeiro), Grupo Nata – Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas (Bahia), Os Crespos (São Paulo), Grupo Caixa Preta (Rio Grande do Sul), Teatro Negro e Atitude e Grupo dos Dez (Belo Horizonte), entre outros, dão sequência ao trabalho iniciado pelo TEN e que prima por fazer reverberar, sob distintos pontos de vista, o lugar do negro e de suas identidades no teatro brasileiro.
Ter tido a oportunidade de conversar com Alexandre de Sena e Aline Vila Real foi um privilégio, pois pude observar o comprometimento de ambos os artistas com as causas e lugares de fala dos negros e as distintas formas como nossos discursos vêm sendo reverberados em nosso cotidiano a partir de distintas perspectivas sociais e ideológicas. Não há como deixar de observar que novos discursos vêm sendo somados a outros e que, aos poucos, os olhares estão sendo voltados para as nossas histórias.
E quando ouço Aline citar as referências femininas que a influenciaram em sua trajetória como artista, não posso deixar de nomear uma das autoras negras de quem sou fã e que tem marcado a minha trajetória enquanto pesquisador, professor e, sobretudo, como negro, Conceição Evaristo – poeta, narradora, contista, terceira colocada no Prêmio Jabuti 2015, na categoria Contos e Crônicas com sua obra “Olhos D’água”[1]. Entre os diversos discursos de Conceição sempre vão me marcar as palavras que ela utiliza para concluir o seu texto/conto/ensaio “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita”, trabalho que tive a honra de publicar no livro Representações performáticas brasileiras: teoria, práticas e suas interfaces[2] (2007, p. 21): “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”.
Suas palavras – tessituras de memórias e de identidades – cortam, reverberam e, mais de tudo, ressignificam o nosso olhar diante do mundo…
Aline – Teve um momento em que a gente teve vontade de se encontrar para estudar junto, e nem era sobre a história do teatro negro, mas comentar fatos que estavam acontecendo. Inclusive, tem tudo a ver com o que a gente está fazendo no novo espetáculo do Espanca! agora (“Real – Uma Revista Política”). A gente começou a se encontrar na casa do Alexandre (de Sena), que morava com o Matéria Prima, um MC aqui de Belo Horizonte e um artista super interessante com quem a gente sempre estava pensando algo, e com a Luana Gonçalves, que também é parceira nossa, trabalha com produção e documentário e é muito ligada à arte negra. A gente começou a assistir a coisas para poder pensar junto. E isso foi ativando uma vontade de conversar sobre essas questões pessoais e da negritude. É impressionante, conversando com pessoas de outras gerações, como isso é recorrente: uma hora você se junta para entender o que está sentindo, e tem variáveis imensas: a cor da pele que é diferente, por exemplo, o que me difere do Alexandre nesse lugar?, a questão de gênero. E, nesse meio tempo, teve um convite super inusitado de um festival lá em Caruaru, Pernambuco, para eu e a Dani Scopin, do Lume, fazermos um trabalho juntas. O festival era focado no tema das mulheres. A gente custou a entender e acabou topando. E a gente ficou falando desse lugar da mulher negra. Falei para ela que estava encontrando muito com Alexandre e com a Luana, ela veio e acabamos pensando um trabalho juntos, que se chamou “Guandu”. O Alexandre dirigiu e eu, Luana e Dani, fizemos esse… como a gente pode chamar?
Alexandre – Uma convivência, uma performance.
Marcos – E o que aconteceu com essa performance da qual eu nunca ouvi falar?
Aline – A gente nunca mais fez. A Dani mora em Campinas, ela recentemente teve filho, mas, em tudo que a gente posta no Facebook, a gente se marca e fala que tem que se encontrar.
Marcos – De que se tratava?
Alexandre – A gente foi compartilhando vivências. E fomos vendo como foi a construção social de cada uma dessas mulheres, das mulheres da minha família e das famílias delas. Fomos levantando elementos para ver o que a gente poderia oferecer enquanto experiência artística para as pessoas que estavam conosco. E fomos no guandu, que é uma semente selvagem, um tipo de feijão que tem um significado muito bonito, é usado para oxigenar a terra e tem uma raiz forte. Como a gente sempre que se encontrava fazia algum tipo de comida, a ideia era fazer uma comida com o guandu, e as meninas tinham tarefas para executar e um assunto que perpassava.
Aline – A gente chegou à conclusão de que nós três, produtoras, temos inserções em nossos coletivos que vão além da função burocrática e que participamos da criação artística. E entendeu que era esse lugar de “meio”, mesmo, e que essa analogia com o guandu tinha a ver com a gente, porque é pouco usado como alimentação, mais no Nordeste.
Alexandre – Em lugares de resistência, onde falta muito alimento.
Aline – Exatamente. Mas ele é muito utilizado para poder enriquecer o solo para outros plantios. Planta-se guandu porque tem uma raiz forte que descompacta o solo, e isso o oxigena, o torna mais fértil para se plantar outras coisas. E entendemos que a gente queria, lá em Caruaru, encontrar uma mulher importante na comunidade para poder participar dessa performance. A gente foi para um lugar meio rural, aberto, que tinha uma cozinha debaixo de uma árvore linda, e cozinhou uma farofa de feijão guandu. E fomos entender o que significava o processo dessa comida ficar pronta. Se a água estava fervendo, a gente falava desse processo de espera. Depois, dos temperos, dos cheiros. A gente foi usando essas analogias para falar das nossas questões.
Alexandre – E as pessoas cozinhavam.
Aline – Homens e mulheres. A gente chegou a pensar em ser só para mulheres, mas entendeu que não tem muito a ver com a nossa vivência, que a gente está mais misturada mesmo. E foi super interessante dentro do contexto de um festival de teatro. Deu uma descompactada nesse lugar.
Marcos – Foi pensado para mulheres negras?
Aline – Como proponentes. Mas a gente abriu para todo mundo.
Marcos – E entra com questões da memória e identidade?
Aline – Entra com questão de memória e identidade, espiritualidade e da maternidade inclusive, porque a Dani estava grávida. Ela veio com a memória de que ela queria ser bailarina, mas vários professores falaram que ela não tinha corpo de bailarina por ser mulher negra, não tinha estrutura de bailarina. Eu e Luana também elegemos algumas coisas de nossa vida para falar dentro desse processo. Mas, na verdade, a gente estava convidando as pessoas para uma convivência, para poder passar duas horas e, no fim, a gente almoçar juntos a comida que fez. A gente convidou uma mulher, uma poeta da cidade que não tinha trabalho reconhecido profissionalmente, mas a gente queria descompactar aquilo também para ela surgir: levantar uma artista daquela região, uma mulher. Muita gente ficou impressionada de ser uma mulher daquela região que eles não conheciam. E era uma mulher incrível. A gente até pensou que, se fizesse em outros lugares, sempre buscar uma mulher da região. Depois que fizemos no festival, a gente continuou conversando várias coisas. Este ano tem sido interessante porque a gente está saindo desse lugar de ficar pensando e pensando, e estamos fazendo mais coisas em formatos menores. Aí o “Rolezinho”, uma proposta que o Alexandre teve com os meninos. E a gente está sempre de olho: o Pedro Amparo, com grupo, fazendo “Primeira Mente Negra”, no Espanca!. Eu não tinha visto isso ainda, um coletivo com tantos jovens negros fazendo com vontade, propondo. Vamos nos aproximar desses meninos também. Aí chega Felipe Soares, encontrei com ele em vários lugares do Brasil este ano, foi para Salvador, quando todo mundo está indo para Rio e São Paulo, trabalhar com o Bando Teatro Olodum. Fui lá e ele conhecia todo mundo. Conhecia (a escritora) Ana Maria Gonçalves (autora do romance Um defeito de cor [2006], Prêmio Casa das Américas na categoria “Literatura Brasileira”), era amigo dela já.
Alexandre – Já leu Um Defeito de Cor?.
Aline – Sim, agora, porque encontrei com ela. E ele (Felipe) começou a fazer todos os núcleos de criação do Espanca!. Eu também comecei a achar que tem um lugar do Espanca!, que não é o “estamos fazendo teatro negro”, mas, muito pela presença da Grace (Passô) e da minha, a gente está pensando isso em cena. Tem uma coisa que o Adyr (Assumpção) fala a que passei a dar atenção: no “Por Elise” entra aquela dona de casa, mulher, negra, e começa a fazer aquele prólogo, tem um lugar presentificado ali do teatro negro. A gente está falando de pessoas comuns, da nossa vivência. No “Amores Surdos”, a gente está falando de uma família em que o pai está ausente e a mãe é essa pessoa enraizada, ela gira o corpo 360º e sabe tudo o que está acontecendo, essas mães que são arrimo de família. O doutor José do “Congresso Internacional do Medo” é o poeta do espetáculo. Com o tempo, sinto que os trabalhos que a gente já tinha há muito tempo, com essa consciência que a gente foi ganhando, vão ganhando outras dimensões.
Marcos – Você não acha que é você que está ressignificando o olhar diante do trabalho que foi realizado?
Aline – Acho, mas acho que muito mais potentemente do que o meu olhar, tem o do Alexandre e o da Grace, que foram mudando. Eles ressignificaram. Com esse olhar do ator em cena, esses espetáculos foram se modificando. No início do “Amores Surdos”, a família tinha o cabelo alisado, depois de um tempo não existia mais isso de fazer escova. A Grace hoje faz com o cabelo solto. E é lindo ver espetáculo de dez anos que tem transformações nesse nível, que para mim são enormes. Tem o meu olhar e o de muita gente. Em São Paulo tem muitos grupos de teatro negro que vão assistir ao Espanca! e a gente troca ideia depois. Os Crespos, o Coletivo Negro. Eles acompanharam agora toda nossa temporada de dez anos e a gente saiu depois e conversou no bar. Tem uma potência que é essa das pessoas que estão fazendo, a consciência do ator em cena.
Alexandre – Pensando no que a Aline falou, de como a gente vai tomando consciência de algumas coisas nos espetáculos que a gente faz com o Espanca!, fui pensando numa certa trajetória dos espetáculos que eu fiz e como isso tem se direcionado agora. Aí eu fiquei achando que o “Rolezinho” é quase um cavalo de Troia. Precisou-se de muito contato com o espaço que é a casa teatral, conhecer pessoas e passar por outras experiências. O “Rolezinho” surgiu de uma vontade do ano passado, depois que a gente montou o “Não Conte Comigo para Proliferar Mentiras”. Eu comecei a pensar na minha trajetória com relação ao Cenas Curtas. Eu acompanho o Cine Horto desde que ele abriu, eu estava no primeiro ano do Palácio e, pensando nas cenas que vi lá que tinham temática negra ou negros em cena, eram poucas tendo em vista a sociedade que a gente vive. Pelo resultado do Censo, 52% da população se identifica como afrodescendente ou negro. E me deu vontade de ver aquilo ali povoado. Aí os meninos do Palácio das Artes, o Felipe, a Michele (Bernardino), a Efigênia (Marya) e o Renato Gualberto me chamaram para ver uma cena deles, “Moderna Arte Negra”. No período, eu não podia me envolver tanto porque estava fazendo outras coisas. E eles falaram de pensarmos algo para o Cenas Curtas. Eu já estava pensando nisso há algum tempo, quando a gente acabou de fazer o “Guandu”, as meninas voltaram e a gente marcou de tomar uma cerveja na rua da Bahia, e elas contaram que foi ótimo lá. Falei: “tô com uma piração aqui, queria fazer uma cena curta para o ano que vem, queria colocar um monte de negro lá pelado, só de tênis” (ri). Só tinha essa imagem, que nem existe mais, e foi se solidificando em alguns conceitos. Os meninos me chamaram e eu falei dessa outra ideia, que eu queria fazer um rolé lá. E fui pensando em 2012 e 2013 quando os rolezinhos começaram em São Paulo, se espalharam pelo Rio e teve muito em Belo Horizonte. Por coincidência, domingo, no Minas Shopping, fui entrar com minha esposa e o segurança veio para mim e depois voltou. Olhei para trás e ele estava pedindo a identidade de um jovem negro que estava entrando no shopping, na porta do estacionamento, chegando a pé. Fui conversar com o segurança e ele falou que uma semana atrás teve um rolezinho e o dono falou que agora só se entrava com identidade. Falei que era contra a lei e que existe uma legislação para isso e, se a gente acionasse o Ministério Público, seria um problema. A gente começou a estudar sobre os rolezinhos de 2012-2013 e a fazer paralelos com outros rolezinhos que acontecem contemporaneamente. Citando alguns: o Presença Negra de São Paulo, das artes visuais, o Paulo Nazaré faz parte desse coletivo, e eles fazem convocatórias na internet e convidam negros para visitarem galerias de arte, é uma forma de reivindicar a presença de negros dentro da galeria. Não que seja o lugar mais importante para as obras, mas um lugar onde a gente possa existir e expressar nossa arte. Tem o Encrespa Geral, que junta vários negros para falar de ativismo capilar. Há vários desses que são nossos contemporâneos. E a gente começou a fazer paralelos com outras coisas. Me dei conta de que eu, meu irmão e algumas pessoas do bairro Goiânia, a gente é de uma primeira geração daquela região que nasceu em Belo Horizonte. Comecei a pensar que meus pais fizeram um primeiro rolezinho aqui. A gente começa a pensar o rolezinho como visibilidade e sobrevivência. Eles vieram do interior para trabalhar em Belo Horizonte para sustentar uma família e para existir, para serem visíveis numa estrutura em que estão inseridos. E comecei a me encontrar com imigrantes africanos que vieram de Mali, do Congo, de países da África, que estão indo para São Paulo para tentar sobreviver e mandar dinheiro para suas famílias em seus países.
Marcos – E querem sobreviver em São Paulo.
Alexandre – E, como nós em nossos rolezinhos, seja o do shopping ou o da família, são recebidos de uma forma muito hostil onde estão. Tive a oportunidade de conviver com eles por 20 dias e conversamos muito. Com a cabeça cheia dessas coisas, a gente partiu para convocar as pessoas para construir essa cena. E não dá para falar disso fazendo ensaios formais, indo para uma sala de ensaio. A gente tem que se colocar de encontro com a cidade, fazer uns rolezinhos para experimentar algumas ações. Fizemos uma convocatória no Facebook e criamos um grupo fechado – acho que hoje isso até aconteceria de uma forma diferente – onde a gente compartilhava materiais, vídeos, músicas, dissertação de mestrado, e sempre alguns textos eram colocados de forma estratégica para enriquecer um discurso e aumentar as referências para a gente chegar ao espaço físico e conversar sobre o que cada um estava vivendo. E era proposta uma ação performática de construção de paisagem no lugar onde a gente estava. E também tinha uma vontade de compartilhar essa experiência com outras pessoas. Aí vem o Pedro Amparo, os meninos do Palácio, o Jé Oliveira, do Coletivo Negro, para colocar todo mundo em contato. Aos poucos, fui tentando fazer que as pessoas puxassem os seus rolezinhos, escolhessem um lugar estratégico de acordo com o que estavam pensando em falar ou se tivessem passado por alguma experiência nesse espaço. E acabou saindo um pouco de mim, o que gostei muito. Fizemos dez rolezinhos e queria fazer mais. Temas recorrentes: sempre acho muito necessário falarmos muito da situação da mulher negra na sociedade e como a gente se coloca frente a isso. Educação, como a gente conversa ou aprende com essas crianças que estão vindo e como vê essas crianças negras como protagonistas de uma mudança que a gente deseja na sociedade em que a gente vive. E queria fazer um rolezinho dentro de uma escola, que não deu para fazer.
Aline – Mas, de alguma forma, o que você pensou para a cena toca nesse lugar. A menina mais jovem de todo o rolezinho é protagonista da cena, vestida com uniforme de escola.
Alexandre – Mas eu queria que a gente fosse para a escola conversar com todas essas crianças.
Aline – Essas coisas também são frutos de um movimento. Esse lugar de meio de que eu falei. Sou do grupo Espanca!, tem o Teatro Espanca!, o Janela de Dramaturgia aconteceu lá desde o início. E minha primeira produção em Belo Horizonte foi na companhia “Será que?”, então comecei a trabalhar com o Rui Moreira e desde sempre no lugar de trocar ideias artísticas com ele. Depois, fui fazer coordenação de produção do Festival de Arte Negra (FAN) em 2007, e foi um lugar de formação muito grande para mim e onde conheci a Grace, em 2007, e a gente fez um espetáculo durante o processo do festival. Já tinha esse lugar que me ativava e me conectava com vários artistas da cidade. E eu escutei por muito tempo muita gente falar que não tinha espaço para os dramaturgos negros no Janela de Dramaturgia. E comecei a perguntar: não tem espaço, mas esse espaço foi requisitado? Foi procurado? E comecei a conversar com os meninos sobre isso. Quando o Vinicius (Souza) falou: estamos querendo, o tema é esse, pensei em chamar alguém para fazer uma leitura e queria uma indicação, o que a gente fez? Convidou todo mundo com quem a gente já estava conversando há muito tempo: Soraya Martins, Alexandre, Anderson (Feliciano) que estava na Argentina…
Alexandre: Denílson…
Aline: Os meninos do TNA – Teatro Negro e Atitude… Houve esse convite. E que texto a gente leva? O que a gente tem para responder? A gente chegou juntos a esse lugar: levar o texto do Anderson, o “Antes que Aconteça”. E aí essa história de chamar o Adyr (Assumpção) é uma vontade de também dialogar com as pessoas que já estão trabalhando há mais tempo com esse assunto, mas que também estão atuando agora. É linkar esses universos. Naquele dia, eu me lembro de uma fala do Rodrigo (Jerônimo): “Nossa, um milagre esse tanto de preto aqui”. E não é um milagre, isso é articulação. A gente está nesse momento super interessante de articular e essa articulação tem um objetivo artístico, que é um lugar da nossa geração. Durante muito tempo, por resquício de outras gerações que abriram muito caminho para a gente, a gente se encontrou para discutir num lugar muito político diretamente. A gente está conseguindo se encontrar para ter um objetivo artístico, e trazer a política para dentro do olhar artístico.
Alexandre – É voltar lá no “Guandu”, nesse lugar de meio, de oxigenar e do aquilombar-se, de que a gente falou no Janela.
Aline – Não vamos reclamar que não tem espaço e não tem gente lá. Tem. Vamos fazer o contrário: vamos levar as pessoas e mostrar que elas estão fazendo, vamos mostrar o trabalho. A gente está nesse momento, eu sinto, querendo dar visibilidade ao trabalho, mostrar que tem muita coisa acontecendo.
Alexandre – Sempre aconteceu.
Aline – Sempre aconteceu.
Alexandre – Fazendo uma analogia idiota: é aumentar a passagem para a gente não ter acesso aos outros bairros, aos centros. Ou o ônibus que é cortado no fim de semana. Isso sempre aconteceu em outros lugares. O TNA existe há muitos anos, ele ocupou a Lagoa do Nado por muito tempo, mas por que não chega?
Marcos – Fica cada um no seu quadrado, na sua casinha, na sua ilha.
Alexandre – O Jessé (Duarte) falou da história da passagem (de ônibus, na abertura do Janela de Dramaturgia).
Marcos – Eu me lembro de um encontro do Teatro Negro e Atitude, da formação de um coletivo de artistas negros, que eu fui e me inscrevi. Teve um movimento lindo e morreu.
Aline – Lembro disso também, foi lá na sede deles.
Marcos – Vocês estavam?
Aline – Sim.
Alexandre – Eu recebi convite mas não pude.
Aline – Foi em 2007.
Marcos – A gente conversou o dia inteiro e, depois, infelizmente morreu. Acontecem essas ações. E agora está tudo eclodindo. Agora, não sei o que vocês acham, existe uma cena negra na cidade. Queria que vocês falassem um pouquinho sobre isso.
Aline – Eu acho também.
Alexandre – É muita responsabilidade falar que agora existe uma cena negra na cidade. Acho que ela já existe. A gente é resultado do que vem sendo construído com muito suor, muita gente faz muita coisa. Na época em que estava fazendo Palácio, uma negra foi trabalhar com Eugênio Barba e depois voltou, ela estudava no TU (Teatro Universitário). Muita coisa acontece. Agora, por causa de uma política de inclusão que sai dos meios das artes, a gente vê muito mais negro na faculdade e a gente tem uma luta de anos de ver muitos mais negros nos meios de comunicação, por mais que o recebido tenha uma linha mais ocidental ainda, do que uma negritude com traços mais firmes… A gente tem ocupado mais lugares. (silêncio). Velho, é consumo também. Infelizmente, tem que falar disso. Se as pessoas veem que isso é uma comunidade que consome e reivindica seu espaço… Os rolezinhos fizeram em primeira instância: mostrar “nós somos pobres fodidos, pretos, mas a gente está aqui no shopping com nossos tênis de tanto…”
Aline – É consumidor também.
Alexandre – A gente é consumidor também, me respeita. Mas é uma luta contra a invisibilidade. As pessoas só leem ali na superfície. E, agora, talvez isso esteja mais claro porque a gente começou a se comunicar mais e chegar mais junto. E eles estão abrindo espaço porque a gente é consumidor também de alguma forma.
Aline – E eu acho que, também, estamos conquistando mais privilégios.
Alexandre – Educação…
Aline – Mas também concordo que é graças a um caminho anterior. Mas estamos gozando de mais privilégios do que gerações anteriores. E temos que usar isso para além, já que esses privilégios foram conquistados. Tem uma questão de política pública que mudou, tem mais negros na universidade. Não é que aí está o mérito, mas estamos podendo falar a mesma língua de muitos brancos que ocupam lugares, como um palco para dar uma palestra, para poder participar de uma discussão. Estamos ocupando esses espaços com mais visibilidade do que antes. A gente tem conseguido mais fazer uma arte e falar sobre a arte que a gente faz. Como é necessário isso! E tem uma importância muito grande saber falar sobre o que a gente faz, escrever e documentar o que a gente faz, que é o que a gente está fazendo aqui agora.
Marcos – Se não documenta…
Aline – Porque a cultura negra vem muito do lugar da oralidade…
Alexandre – O que é muito lindo e espero que permaneça para sempre. A gente respeitar todos os nossos contadores de histórias, os griôs. Tanto que a gente fala de griôs contemporâneos.
Marcos e Aline – Claro.
Aline – Lembro até de uma fala do Ailton Krenak, uma liderança indígena, falando que escrever, para ele, é uma ferramenta, uma coisa que ele aprendeu porque isso tinha uma importância social. Tem gente que dá uma importância muito grande para isso num lugar que desmerece o conhecimento. Um conhecimento não depende da escrita, só que a escrita vem trazer a visibilidade para esse conhecimento.
Marcos – Ela legitima.
Aline – Ela legitima. Isso tem lugar e está tendo uma visibilidade maior.
Alexandre – A gente teve, anos atrás, também, do Governo Federal, que aceitava projetos em aúdio, apresentados de outra forma, justamente para colocar em lugar de visibilidade quem não era ouvido: ciganos, quilombolas, índios. O Cultura Viva. Isso faz com que algo possa ser modificado lá atrás.
Aline – Agora, de fato, a produção artística da cultura negra em Belo Horizonte não está mais focada no Festival de Arte Negra (FAN). Antes chegava o festival e “de onde surgiu esse tanto de gente que eu não vejo durante o ano”?
Marcos – Só tinha o festival.
Aline – Hoje a gente tem o festival como uma plataforma, mas não como a única política cultural da cidade. A gente também tem esse lugar de ocupar outros espaços o ano inteiro. Teve uma discussão muito legal no Itaú Cultural no ano passado e, ao final da discussão, o Itaú falou que em novembro teria espaço para uma programação voltada para a cultura negra, e o Sidney Santiago, da Cia Os Crespos, falou que “a gente trabalha o ano inteiro, assim como qualquer outro grupo de teatro”. A gente não está aqui trabalhando para um feriado, que é o feriado da cultura negra. E sinto que em Belo Horizonte isso está se transformando, ainda que muitas instituições pensem assim: que o lugar de uma peça de teatro negro é no Festival de Arte Negra e não no Centro Cultural Banco do Brasil, no Galpão Cine Horto, no Teatro Espanca! e em muitos lugares da cidade.
Marcos – O que vocês acham da importância da tradição dentro desse teatro? Da incorporação das tradições, dos ritos?
Alexandre – É uma coisa que está na gente, não tem como negar. Existe uma formação dita “oficial” de atores, das escolas, que pensam que isso não existe. A gente é formado de forma colonizadora para esquecer isso. Mas não tem jeito. A gente vê um corpo negro em cena e vê ali que é uma corporeidade distinta, e a tradição está ali. Faz parte da nossa história, da nossa pele, da nossa forma de pensar, da nossa forma de concatenar ideias e passar para o outro. Talvez, quem lute contra isso, esteja remando contra a maré. É só olhar a história do Brasil a história do negro que vem da África. É impossível. Particularmente, falando de mim, retomar a tradição e ver os elementos dela que estão inseridos no cotidiano e às vezes não percebo é tão bonito e enriquecedor.
Aline – E, ao mesmo tempo, gosto de pensar que somos diversos entre nós. Não existe uma máxima de que todo indivíduo negro vai ter uma religião do candomblé ou da umbanda, óbvio que não. Também acho que essas máximas, como quem fala “teatro negro é muito folclórico”, acho que a imaginação que se tem sobre o negro é folclorizada. E esse nome folclore nem sei se é o melhor. Mas é uma tentativa de colocar num lugar específico, mas somos cultura brasileira. E acho muito interessante reconhecer essa tradição na nossa cultura brasileira, muito forte. E é natural que isso seja realçado num trabalho feito por um coletivo de artistas negros. Mas estamos aí e somos contemporâneos.
Alexandre – A gente faz parte da construção da tradição. A gente é tradição. O que a gente aprende e apreende hoje é tradição do que virá. Pensar que a tradição é só aquela desenhadinha, folclórica… sei lá. A segunda mesa (do Janela de Dramaturgia) é (sobre) alteridade. O sincretismo religioso. Várias coisas da tradição de outros lugares vêm do sincretismo religioso, que é uma tradição com outra tradição e, para sobreviver, misturou. A gente vai fazendo essa mistura todo dia, toda hora. Pensar o teatro nessa alquimia me agrada bastante. A gente fala para pessoas que são mais velhas e mais jovens. Quem são as pessoas que virão depois da gente? Como a gente vai construir nosso discurso e nossa estética para que ela seja absorvida para frente e para trás, e que ela ainda possa existir, além disso. É repensar o que é tradição e fazer parte dela.
Marcos – Vocês têm referências que os tocam?
Aline – A gente fez um exercício muito interessante no rolezinho que parte desse lugar. Eu e a Soraya (Martins) propusemos, muito a partir do Janela de Dramaturgia, porque a gente saiu refletindo sobre a memória e nossas referências artísticas. A nossa proposta foi que cada uma estudasse um artista atuante nesse momento ou que já morreu, e que a gente apresentasse esse artista sem falar o nome dele de cara, mas em primeira pessoa. Eu apresentei a Clementina de Jesus. Ela é de uma geração em que as mulheres, para se entenderem enquanto artistas profissionais, demoraram mais, porque era um lugar muito ocupado pelos homens, ainda mais esse universo do samba. Ela foi trabalhar profissionalmente com o samba aos 63 anos, antes ela era uma pessoa que cantava em casa enquanto lavava roupa e durante muitos anos foi empregada doméstica. Precisou alguém falar a ela que o que ela fazia tinha uma potência que poderia ser profissionalizada, e que ela poderia viver disso. Para mim é referência de uma mulher que ajudou a formar mesmo a cultura brasileira. Tenho pensado muito no samba como uma raiz muito potente da nossa cultura e eu às vezes pouco volto para esse lugar para poder investigar melhor. Igual a ela, inclusive, a Dona Jandira aqui de Belo Horizonte. E, nesse mesmo dia, o Alexandre trouxe o Gil Amâncio, uma referência que está muito mais próxima.
[1] Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2014.
[2] Belo Horizonte: Maza Edições, 2007.