— Luciana Romagnolli —
Crítica do espetáculo “Branco – o cheiro do lírio e do formol”, de Alexandre dal Farra e Janaina Leite (SP). Corrigida em 04/04/2017.
Antes, uma demarcação
Ouço às vezes alguns colegas de jornalismo, crítica, universidade e vida dizerem que está difícil para uma pessoa branca se posicionar em relação ao racismo. Nessa frase, quase sempre dita sem muito cálculo, reside a nódoa de que tentarei tratar neste texto. Difícil é para a pessoa negra. Pro branco, todas as forças convergem, e o desafio é se perceber nesse lugar de poder para além dos discursos decorados. Falo isso de uma perspectiva interseccional[1], que acesso pelo lugar de mulher, do qual também escuto (quantas vezes!) que está impossível para o homem falar qualquer coisa por causa do “patrulhamento”.
A questão que se põe neste momento do país – como adensamento e agravamento de movimentos históricos que o precederam – é que o debate racial e de gênero não pode mais ser mascarado no “quartinho dos fundos”, como tema marginal, cota, moda, “mimimi” e outras formas mais ou menos criativas de desqualificação. O racismo e o machismo estruturam o sistema capitalista, delimitam quem é sujeito da ação e da fala e quem não é, selecionam qual epistemologia e qual sistema de valoração nos sustenta e nenhum rumo que não seja o retrocesso poderá ser tomado pelo país sem que as esquerdas, direitas e não binários compreendam isso.
Esboçado o lugar de onde falo, cabe tratar da própria questão do lugar de fala. Me parece que o ponto fundamental, aqui, é o reconhecimento por parte do sujeito de que sua fala não é universal, mas vem de um lugar específico, de uma experiência de corpo e de mundo singulares, que é diferente para brancos e negros e negras e brancas numa sociedade em que essas identidades determinam acessos e exclusões cotidianamente. Daí que minha posição é que, sim, um homem pode escrever sobre uma mulher, um branco pode escrever sobre um negro, mas para isso é preciso reconhecer o seu lugar como não universal e fazer um movimento de escuta e abertura em direção ao outro – por mais que isso seja sempre insuficiente, por mais que nunca baste para ver e sentir como o outro. Sobretudo, sem querer que sua voz seja definitiva sobre aquilo que aflige o outro, não você.
Este texto só é possível como diálogo com vozes de artistas e pensadores negros e negras a quem ouvi na MITsp 2016 e 2017, e se já não sei discernir de quem vem cada ideia que atravessa minha escrita, cito-os aqui: Rosane Borges, Djamila Ribeiro, Giovana Xavier, José Fernando de Azevedo, Eugenio Lima, Leda Martins, Grada Quilomba e Patrícia Hill Colins.
Paroxismos da branquitude: “Black Off” e “Branco”
Criação de Alexandre dal Farra, como diretor e dramaturgo, à qual a atriz Janaina Leite se juntou como diretora também, “Branco – o cheiro do lírio de do formol” é um projeto tão necessário quanto prematuro. Para tratar do espetáculo, é importante considerar que se inscreve no contexto de uma sociedade branca que só muito tardiamente começa a debater o racismo brasileiro em sua amplitude. Na qual “ser negro” já não basta como demarcador de uma experiência de subjugação, cada vez mais descobrimos que o “ser branco” precisa ser demarcado para que não se confunda com o natural ou a norma. Esse processo, chamado de “racialização”, é fundamental para que emerjam dois sujeitos de voz e ação: o negro e o branco, e para que se possa tomar a ambos como objeto – sim, o “branco” tornar-se, também, objeto de análise e discussão por parte de negros e brancos. Assim como o negro e o branco concebem – a seus modos – a negritude, branco e negro conceberem a branquitude.
É o que faz em outro espetáculo visto na MITsp 2017, “Black Off” (Leia crítica de Daniel Toledo), a artista sul-africana Ntando Cele. Na primeira parte, no papel da “benfeitora” branca Bianca White, ela cria um pastiche de stand up para levar ao paroxismo o racismo naturalizado em sociedades como a sul-africana e a brasileira. Eis a visão de uma mulher negra sobre a branquitude construída revertendo o artifício mais escancaradamente racista da história do teatro, o blackface, transformado em uma máscara branca que dilata o racismo daquela personagem. Que não haja dúvida de que não se trata de uma inversão proporcional: se o blackface é recurso para ridicularizar as características físicas do fenótipo negro e produzir riso desqualificando o oprimido, a whiteface de Bianca é dispositivo crítico contra o racismo do branco. Não há simetria possível nisso.
Na segunda parte, Ntando Cele ocupa o palco com seu corpo, sua música e seu discurso, contrapondo o pastiche anterior com a afirmação da potência de sua negritude. E mais: “Estou aqui, e sou negra. Mas não estou aqui para ser negra”, diz entre acordes de jazz e de rock, estabelecendo que a identidade de raça não deve ser um limite. Um vídeo debocha de que toda arte feita por uma mulher é arte feminina, toda arte feita por um negro é arte negra e toda arte feita por um homem branco é arte. Ntando nos mostra em cena que para superar as categorias identitárias que restringem nossas possibilidades de ação no mundo, antes é preciso reconhecer que essas identidades nos determinam socialmente e desnaturalizar a distribuição desigual de poder entre elas. Não há liberdade quando se sustenta sobre opressões naturalizadas.
Nesse mesmo sentido, “Branco” segue via muito diversa. Dal Farra e Janaina Leite tomam para si a empreitada de realizar um espetáculo que seja a crítica da própria branquitude, amparados pela compreensão de que o combate ao racismo não pode ser fardo somente da população negra. Racializar-se é preciso, e refletir sobre a branquitude é um caminho. O problema é que esse percurso invariavelmente vai revelar os racismos naturalizados que nós, brancos, perpetuamos ciente ou inconscientemente. Dividido em três frentes – uma fábula, a explicitação do processo criativo e os resquícios de versões anteriores da peça -, o próprio espetáculo revela o quanto o processo de criação foi conturbado e obrigou os artistas envolvidos a reverem como poderiam construir um trabalho cuja efetividade sobre o mundo não fosse a de mais um gesto racista.
A fábula disforme traz uma família representante maior da estupidez branca, portando signos visuais que remetem ao meio-oeste americano e seu conservadorismo racista e xenófobo. Ali está o paroxismo da branquitude mostrando seu lado abjeto. Não em chave cômica, como faz Ntando Cele. Mas confiando à ironia a função de expressar o absurdo da metáfora contida em pessoas brancas ignorantes e desprovidas de afetos não egocêntricos (expressos nos diálogos) mergulharem no banho leitoso de sua própria branquitude e espumarem essa mesma brancura como raiva canina (a melhor imagem do espetáculo).
O risco da ironia, contudo, é que não seja percebida enquanto tal, especialmente quando opera sobre um discurso naturalizado. Ou sobre personagens com quem o espectador não se identifica facilmente: o sujeito branco da fábula é o racista mais obtuso, aquele que a maioria de nós julga não ser – ao contrário da Bianca White, cujo discurso, embora tingido de exagero, encosta no que se diz e ouve todos os dias ao nosso redor. A apresentação de “Branco” do dia 17 de março no CCSP, dentro da programação da MITsp 2017, sofreu com questões típicas de dia de estreia, um desajuste de ritmo e a dificuldade em se ouvir alguns dos diálogos da fábula. Essas circunstâncias afetaram a experiência estética e indicam ruídos na fruição que certamente também contribuem para que a potência crítica da ironia e da metáfora não se efetive.
Mais determinante do que isso parece ser o modo como essa fábula se insere na totalidade esburacada da dramaturgia, em segmentos interpostos por outras narrativas diversas, como resíduo de um projeto de espetáculo que não vingou porque os criadores se depararam com suas próprias limitações – as quais passam pelo lugar de fala. Nesse sentido, é possível ler aquela família disfuncional (tema-mor do teatro dramático branco ao qual chamamos costumeiramente apenas de teatro) como “white trash” (lixo branco), expressão pejorativa usada para se referir à população branca pobre do sul rural dos EUA. A branquitude seria então esse lixo convulsionado. No entanto, a estruturação dramatúrgica deixa essa camada debilitada no conjunto dos discursos concorrentes, como se não acreditasse muito mais na potência simbólica dessa sequência do que das cenas-vestígios das peças abandonadas.
O que resta para aquele que não está?
A outra dimensão dramatúrgica crucial em “Branco” são os relatos sobre o processo criativo, alinhavados na fronteira indiscernível da ficção com o depoimento. Conforme nos contam os atores em cena, duas outras versões da peça foram abandonadas porque se revelaram, ainda, racistas em sua forma-conteúdo. Ao dizerem isso em cena, os artistas se reconhecem como reprodutores de um racismo estrutural e fazem a crítica de si mesmos, o que é a primeira operação decisiva para que o racismo seja enfrentado – e, convenhamos, ainda não realizada por tantos e tantas. Assim, depondo sobre suas limitações, revestem o espetáculo de uma autocrítica raras vezes vista no teatro branco.
Acontece que a voz que constantemente anuncia a crítica ao próprio racismo é autovigilante, ela se ocupa de se proteger de ser acusada antecipando a própria acusação. Nesse sentido, se a autocrítica não conduz a uma mudança de comportamento, ela é uma forma elaborada de autoproteção.
Artistas negros foram chamados a serem interlocutores críticos durante o processo criativo de “Branco”. O que sabemos pelos depoimentos dos atores em cena é que esses convidados consideraram a peça (a primeira versão) racista. Diante disso, o grupo cogitou não realizar mais o projeto, mas enfim insistiu em prosseguir, por entender que não fazer a peça seria o exercício do maior privilégio branco possível: se furtar a enfrentar o racismo. (Segundo me informa Janaina Leite, as conversas com esses interlocutores prosseguiram “sempre contundentes, sem concessões” e “prezando pela interlocução crítica e o aprendizado” até às vésperas da estreia).
A partir dali, o desafio do projeto seria fazer um espetáculo que não fosse mais uma ação reprodutora de racismo (porque essas são igualmente privilégio branco). Como fazer da obra não uma expiação de uma culpa por sermos racistas, culpa esta que nos fere em nossa autoimagem de pessoas iluminadas, mas um ato ético movido pela nossa responsabilidade sobre as discriminações que perpetuamos?
Em “Branco”, essas não são questões meramente extracênicas, mas consequência direta do conteúdo dos depoimentos sobre o processo criativo que os diretores transformaram em substância mesma da dramaturgia, em igual ou maior peso do que a fabular. Numa mesa na lateral direita do palco, entre expressões de autoficção que ressoam o trabalho solo mais recentes de Janaina Leite (“Conversas com meu pai”), os atores relatam as questões éticas que foram dando forma ao trabalho, até que esse processo se tornasse, ele mesmo, a forma.
Uma dessas informações de processo trazida à cena é a escolha por que toda presença negra fosse excluída do espetáculo. (Uso a palavra escolha como antídoto à naturalização que nos faz não estranharmos quando estamos somente entre brancos como nós). Os interlocutores negros, que não aparecem senão por meio do discurso dos atores, são ironizados em um “diálogo imaginário” projetado textualmente no fundo do palco, e suas palavras não são consideradas. Quando questiona se o autor quer mesmo saber o que ele pensa, o interlocutor imaginário recebe como resposta: “quero querer saber”. Eis um exemplo de como não bastam o reconhecimento e a autocrítica de um racismo que não se interessa realmente pela escuta do outro. Cito um trecho do depoimento do autor dentro da peça:
“Talvez eu tenha mesmo precisado entender que todo esse meu texto inicial, que gerou tanta coisa, tanto movimento ao longo do processo, realmente não tenha sido capaz de dar espaço para o outro, de nenhuma forma. Talvez ele tenha realmente sido só um olhar para mim mesmo, de dentro de mim mesmo, sem lembrar que dentro de mim não está o mundo inteiro, mas apenas aquelas partes do mundo que passam por mim. E talvez seja mesmo um primeiro passo necessário – e nem sempre ele é óbvio como parece ser: perceber que o outro não está lá. E que o não estar também é uma forma de presença. Como a presença de um cadáver no meio de uma sala de velório. O cadáver tem um tipo de presença peculiar: ele é o que não está mais lá”.
O problema dessa conclusão me parece ser o de pressupor que a ausência seja uma forma de presença. Não sempre. A generalidade e a abstração dessa afirmação só fazem sentido do ponto de vista universalizante do homem branco como centro da sociedade. Não estar não é uma forma (ainda que simbólica) de presença quando é a regra social que sustenta o racismo. Quando se fala em racismo estrutural, o que se diz é que as estruturas sociais são racistas, e elas o são quando o negro não está: no palco, na plateia, na universidade, nas referências bibliográficas, na mídia, nos shoppings, nos hospitais privados, nas escolas particulares etc. Não estar é a máxima reprodução do racismo.
Não se trataria, tampouco, de colocar referências negras como objeto da cena – dessa abordagem redutora, os diretores souberam desviar. O ponto é a falta da escuta que permita que o outro exista. Esta – apesar dos interlocutores negros mencionados – não aparece diante do olhar do espectador. Dal Farra diz, dentro e fora de cena, que ainda é impossível criar “junto” das pessoas negras porque faltam quilômetros até vencer o fosso que os separa. Conceber que essa é uma distância que se deva percorrer cada um de seu lado não serve mais para evitar o conflito e o atravessamento pela alteridade do que para diminuí-la?
Cruzar o fosso para poder criar algo juntos significa, antes de tudo, abrir-se realmente à presença do outro, no que ela trará de crítica, conflito e perda de espaço (privilégio). Que paradoxo nos leva a criticar a exclusão do outro reafirmando a impossibilidade de estar junto em cena? A forma prematura de “Branco” nos mostra quão insustentável é qualquer defesa da liberdade e da legitimidade independente do lugar de fala que não seja precedida pelo diálogo e pela escuta.
Em sua performance na MITsp 2016, Grada Quilombo propôs um breve exercício para a plateia: ela continuaria sua palestra enquanto nós, espectadores, deveríamos conversar com a pessoa ao lado. O que queria nos mostrar, ali, era que não basta para uma pessoa ou um grupo silenciado conquistar o poder da voz se continua não sendo ouvido. Estamos escutando?
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[1] Conceito nomeado por Kimberlé Cremshaw, nos anos 1980.