— por Daniele Avila Small —
A capacidade criativa do artista está em constante processo de testes. É sempre preciso começar de novo. A cada começo, o acúmulo de experiência que dá segurança convive com o desejo de rigor e renovação que desestabiliza. Sempre nos perguntamos o que fazer para a constância não ser uma armadilha para a cristalização de caminhos, o que fazer para que a continuidade não se restrinja a um exercício de variação mínima sobre si.
O trabalho de grupo, a princípio, tem na sua natureza coletiva um dispositivo de provocação interna. Trata-se de “um” composto de “outros”. As revoluções internas de cada integrante movimentam a base mesmo quando há continuidade. Mas o grupo não deixa de ser “um”. O que me parece interessante nesse encontro de companhias amigas de que trataremos aqui é a convocação do outro. Um encontro, por mais amigável e sem disputas que seja, como é o caso, não deixa de ser um embate. Mas não se trata, no entanto, do embate competitivo contra o outro, mas do embate formativo com o outro.
Falamos do Acto2! – Encontro de teatro, promovido pelo Espanca! com a companhia brasileira e o Grupo XIX em Belo Horizonte em novembro de 2010, do qual fiz uma espécie de cobertura crítica para a revista eletrônica Questão de Crítica, da qual sou editora, junto com Felipe Vidal, meu parceiro de trabalho no Complexo Duplo.
Nosso encontro com o Acto 2 começou no Rio de Janeiro, no Espaço Sesc, em Copacabana, em setembro daquele ano. Fomos fazer uma conversa para a Questão de Crítica com o pessoal do XIX e do Espanca, que estavam em cartaz com o trabalho que criaram juntos, “Marcha para Zenturo”: texto da Grace Passô, direção do Luiz Fernando Marques, elenco de ambos os grupos. O assunto era justamente esse: como fizeram uma peça sob o signo do encontro? Dessa conversa, veio o convite para Belo Horizonte e a proposta de cobrir o Acto 2, conversando com os grupos e escrevendo sobre as peças.
A ideia desse texto é olhar para trás e identificar no Acto 2 uma proposta de relação entre festivais, companhias e espectadores. Para tanto, recorro aos vídeos e textos produzidos na época. Assim, quando mencionar algum comentário, a referência é desse material.
A primeira edição do Acto foi em abril de 2007. O grupo mineiro, que foi o catalisador do encontro, fez a proposta para os outros dois e realizou o projeto. A iniciativa partiu de uma admiração mútua e de um desejo de convivência. Mais especificamente, os artistas do Espanca apontaram que se interessaram por essas duas companhias pelo tipo de relação que suas peças estabelecem com o espectador, como consta na carta de abertura do Acto1. Esse é um ponto importante porque trata de uma característica bastante objetiva dos trabalhos de cada um dos três grupos. Identifico com clareza que há uma elaboração complexa sobre a lida com o espectador, algo construído na dramaturgia e na encenação e que está no entendimento ético do trabalho atorial de cada um dos integrantes da brasileira, do Espanca e do XIX.
Para falar sobre a importância desse projeto, devo chamar a atenção para a iniciativa em si. O Acto já teve três edições, mas a ideia continua sendo bastante valiosa, não devemos tomá-la como dada. Imagino que para cada grupo ter oportunidade, entre 2007 e 2015, de realizar três encontros com intercâmbios diversos, deve ter sido bem importante. Para a companhia brasileira, por exemplo, como nos contaram os integrantes do grupo em conversa realizada nos últimos dias do encontro, foi na primeira edição do Acto que eles tiveram oportunidade de falar pela primeira vez sobre o grupo para outro grupo, ou seja, puderam fazer pela primeira vez um exercício de elaboração sobre si mesmos em um ambiente de convívio artístico – e que assim puderam participar da narrativa uns dos outros, perceber e vivenciar um interesse mútuo, sem discursos preparados. Participar da narrativa do outro é uma forma de se perceber no mundo. E isso não é pouca coisa.
Escutando de novo as conversas que tivemos na época, identifico questões do teatro de um modo geral e do pensamento de cada grupo que foram ali levantadas e que são bastante pertinentes. Mas o que faz do Acto uma realização original e vital é uma obviedade: a tomada de consciência do convívio como algo que é da natureza do teatro e que precisa sempre ser resgatado. Precisa ser resgatado porque se perde, sim. O convívio nunca está dado na simples copresença, ele é a experiência da copresença – e a experiência, como sabemos, tem uma tendência ao déficit. No teatro, estamos sempre trabalhando na contramão da banalização das coisas, inclusive do próprio teatro.
Naquele primeiro bate-papo no Espaço Sesc, os integrantes do Espanca e do XIX lembraram que começaram a se paquerar nos festivais, e que ambos tiveram um início de carreira reconhecida em um festival, o Festival de Curitiba. Isso é bem sintomático. Não é à toa que há um debate constante sobre o conceito de festival. Muitos entendem que nem todo festival de teatro precisa ter aquela característica de vitrine de espetáculos. O que não anula o valor dos festivais que assumem essa proposta, absolutamente. Alguns festivais no Brasil estão trabalhando para fazer parte de coproduções, por exemplo, uma prática comum em festivais internacionais. O festival – essa coisa ancestral do teatro – está sendo sempre repensado.
O papel do festival nessa conversa entre os grupos é o do intercâmbio entre os participantes, o lugar em que artistas também são espectadores de outros artistas, onde podem conhecer e reconhecer aqueles que lhe são próximos embora geograficamente distantes, identificar as questões e as linguagens da sua geração. Os festivais nem sempre conseguem ser esse lugar de encontro entre grupos e artistas porque muitas vezes a lógica de produção precisa priorizar outras demandas, mas é sempre bom lembrar o quanto isso é importante. Luiz Fernando Marques, do XIX, observou esse momento recente do teatro brasileiro em que os festivais tiveram uma presença determinante na consolidação dos grupos de teatro no Brasil.
Mas o que interessa enfatizar nessa primeira conversa é que ficou claro que ser espectador dos colegas foi importante para o olhar de cada um como artista. Nas três conversas com os grupos, todos chamaram atenção para os momentos em que viram o trabalho do outro e para a experiência que tiveram com esses trabalhos. Essas experiências de espectador são fundadoras de encontros e formadoras de poéticas. Marcelo Castro, do Espanca, lembrou que o que aproxima os grupos é uma identificação ética mais que estética. Marcio Abreu, da brasileira, fez uma colocação parecida quando em outra ocasião disse que a afinidade entre os grupos é mais uma afinidade de conduta que de técnicas ou de resultados.
A peça que estava em cartaz na ocasião dessa conversa e que fez parte da programação do Acto2 foi “Marcha para Zenturo”, fruto do primeiro projeto concreto de intercâmbio realizado entre o XIX e o Espanca. Um projeto proposto pelo grupo paulista à Lei de Fomento permitiu a materialização desse desejo: a convivência dos dois grupos em São Paulo por um mês no segundo semestre de 2008. Depois de dois anos de processo, em 2010, o Espanca voltou a SP, e os grupos estrearam o espetáculo. O espetáculo estreou em um festival, o Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, que até pouco tempo tinha grande presença no cenário teatral brasileiro.
Depois dessa estreia nacional e de uma temporada no Rio, “Marcha Para Zenturo” estreou em Belo Horizonte no Galpão Cine Horto na programação do Acto 2, marcando esse momento de consolidação de um deslocamento na direção do outro. E mal essa peça ganhava o mundo, outra parceria se iniciava, o projeto Troca de Pacotes, com a companhia brasileira. No projeto de intercâmbio entre grupos promovido pelo Rumos Itaú Cultural, os dois grupos trocaram correspondências com materiais criativos, fizeram encontros presenciais e apresentaram um experimento cênico em São Paulo em agosto de 2011.
Além de “Marcha para Zenturo”, o público ainda pôde ver “Vida” e “Descartes com Lentes”, da brasileira; “Congresso Internacional do Medo”, do Espanca; e “Hygiene”, do Grupo XIX.
O Acto2 também abrigou um momento especial para o Espanca e para a cidade de Belo Horizonte: a inauguração do espaço do grupo, onde foram realizadas oficinas, debates abertos ao público, encontros entre os grupos e apresentação de trabalhos.
A segunda edição também ganhou uma ligação com o FETO – Festival Estudantil de Teatro, fazendo com que o encontro ganhasse em atividades formativas. Soma-se a isso o fato de que, na ocasião, o Espanca estava em processo de criação de um espetáculo de formatura de uma turma do Palácio das Artes. Assim, havia um clima geral de interesse e escuta do público – um público jovem e engajado – que acompanhou as atividades ao longo dos dias. A participação da Questão de Crítica proporcionou a produção de um material crítico sobre as peças apresentadas na ocasião, em textos publicados na revista.
Tudo isso me faz pensar no encontro como o lugar da formação do artista de teatro por excelência – sendo essa formação necessariamente processual e incessante. Uma frase da Grace Passô sobre o Acto 2 parece sintetizar essa consciência: “Estamos criando a nossa escola e estudando nela”. Movidos pelo interesse na dramaturgia textual e no exercício formal estético inovador da brasileira e no trabalho dos atores do grupo XIX, que escrevem e imprimem o seu ponto de vista, os artistas do Espanca fizeram esse movimento de trazer para sua cidade os artistas que admiram e dividir isso com quem quisesse chegar. Para tanto, abriram suas portas e convocaram os demais artistas e espectadores da cidade. Nesse sentido, vejo esse projeto como um exercício filosófico sobre o teatro, um exercício sobre as formas e os fazeres do teatro, mas também um experimento, uma invenção do que pode e deve ser o lugar do teatro.
Marcio Abreu chamou atenção para o espírito gregário do Espanca e da cidade de Belo Horizonte, como algo que é de outra ordem, que não faz parte da cultura de teatro de outras cidades do Brasil, como Curitiba ou como o Rio de Janeiro. Pensando assim, poderíamos dizer que Belo Horizonte, com seu espírito gregário, pode ser experimentada como uma cidade-casa do teatro.
Esse espírito se reflete na forma como o público da cidade lida com o teatro. A pergunta sobre a formação do público, que é constante para qualquer grupo de teatro, para produtores e artistas, e também para os festivais, não ficou de fora das conversas. Inspirados pelo clima das plateias do Acto 2, do FETO e de outros encontros de teatro, especulamos sobre a formação de um público ativo, que fala, compara, lembra, guarda. Giovana, Marcio e Nadja comemoravam o retorno que recebiam de um público formado, que acompanhava a trajetória do grupo, que conversa depois da peça. Um exemplo dessa atitude foi o debate depois da primeira apresentação de “Descartes com Lentes”, que acabou sendo sobre “Vida”, outra peça do grupo que também estava na programação do Acto e do FETO. Aqueles espectadores estavam vendo o trabalho como uma relação encadeada, a ponta de um tecido maior. E queriam conversar sobre isso. Vejo aqui uma chave: Marcio chamou atenção para o potencial formativo, porque agregador, dessa atividade crítica em torno dos trabalhos que pode ser oferecida ao público como forma de entrar, de participar, se engajar nos procedimentos e nos meios.
Assim, recordo o Acto 2 como um exemplo de festival nada convencional mas que pareceu conquistar uma atmosfera de convívio muito rara. O Acto propõe um formato de festival único, que é íntimo e gregário, mas nem por isso endógeno. Sua característica intimista é a condição mesma da sua comunicabilidade. O fato de que não quer conquistar o mundo é justamente o que inaugura outro mundo. O Acto 2 foi um festival-ilha.
Geralmente no teatro quando se fala em “comunicar-se com o público”, há o entendimento de que o público é um coletivo sem rosto, um bocado de gente que não é do teatro, que está distante e quer continuar distante, mas que tem que ser agradada. É um “consumidor de cultura”. Em todas as conversas, as gravadas e as de mesa de bar, os debates depois das peças e na sede do Espanca, a ideia de espectador que estava em jogo não tinha nada a ver com isso.
O espectador do Acto 2, que é o espectador das peças da brasileira, do Espanca e do XIX, é um espectador de teatro, não é um consumidor de cultura. O festival que convida a essa participação convoca a dimensão arcaica do convívio no teatro (dentro e fora do momento das peças), a intimidade com o fazer teatral, o espírito agregador de uma arte coletiva e a veia formativa que reúne artistas, estudantes e espectadores como pessoas que estão no mundo e querem aprender umas com as outras a viver nesse mundo e falar sobre ele. Enfim, não é por acaso que se trata de um encontro de companhias amigas. A amizade é uma política afetiva de partilha, uma forma de experimentar o mundo em companhia.
Referências online:
Conversa com o Espanca e o Grupo XIX:
Registro em vídeo: Parte 1/4 / Parte 2/4 / Parte 3/4 / Parte 4/4
Conversa com a companhia brasileira