Texto a partir da performance “ensaio sobre o desabamento” de Wilson de Avellar
– por Ana Luisa Santos-
Fotos de Gabi Mendes
prólogo
a revolução começou aqui[1]
antes da nota
depois da performance, conversamos em uma pequena mercearia de bairro, que estava aberta àquela hora da noite de sábado porque havia uma festa na casa ao lado. Elx escondeu a foice em uma árvore antes de entrarmos no bar e comprar um latão de cerveja e alguns cigarros picados para x performer fumar.
nota zero
ainda estou rodeando o trabalho para tentar me aproximar. É difícil. Wilson empunha uma foice diante de nós. Em francês, diz que nos ama. Convoca-nos a essa responsabilidade do vínculo e da leitura enquanto audiência, enquanto gente que deseja.
zero vírgula um
a performance “ensaio sobre o desabamento” aconteceu em uma casa no bairro sagrada família em belo horizonte, na terceira edição da iniciativa “ações de apartamento”. Wilson de Avellar e Camilo Gan ocupam o alpendre da construção residencial. Nesse espaço entre, são negociadas fronteiras e ideias como identidade, convívio, pertencimento, intimidade, expectativa e céu. A performance é uma alfândega.
vírgula dois
pisando na máquina de escrever Wilson profere palavras sob a foice. Performa frases em idiomas diferentes, convoca a língua do corpo e da história para uma outra dramaturgia. Tudo balança como as folhagens das palmeiras que o vídeo da instalação projeta no quarto adjacente. Signos em trânsito no transe repetitivo da ação guiada pela trilha sonora ou oração. Em cena estão pelo menos seis figuras femininas como a fita métrica, a cadeira, a máquina de escrever, a foice, a audiência e a revolução.
terceiro sinal
o performer entra de costas.
de quatro
enquanto diz a revolução começou aqui x performer cria um gesto histórico aberto. Com a mão espalmada, receptiva e, ao mesmo tempo, demonstrativa, Wilson compõe uma situação simultânea ao convite para a audiência performar também, ao criar um campo de energia em torno da cadeira vazia. O trono esvaziado. Devemos nos sentar diante da foice da audiência? Seremos dissecados junto com a linguagem ou através dela?
dez cortado ao meio
a atitude da audiência é ambígua, bem como a entonação que x performer utiliza para dizer em três ou mais línguas diferentes que após a performance haverá uma conversa. Mas Wilson não volta depois de sair de costas. O que devemos esperar quando a performance termina? Desejamos conversar? Queremos explicações? O que acontece quando a performance continua nos relatos a partir do testemunho da ação? O que significa hoje a mediação das conversas após as apresentações artísticas? O que é possível conversar depois?
meia dúzia
a imagem lembra uma estratégia surrealista. O espaço de ação articula objetos diferentes, sem relação direta entre si. A convivência é cheia de arestas e vazios. São um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre a mesa de dissecação na imagem original. Mas a história da arte e seus episódios não são suficientes para dar conta do desafio de linguagem que nos assola no atual panorama ético-estético. Como criar hoje? Como denunciar sem lacrar? O que pode compor um gesto artístico interessante e expansivo? O que significa visibilidade, dar a ver alguma coisa, alguém ou uma voz?
sete de setembro
o trabalho disseca em novos ecos a imagem de uma revolução acéfala, difusa, sem medida. Alguém se senta na cadeira no final da performance, no último ciclo de repetições. Será que está dispostx a perder a cabeça? Que tipo de guilhotina a arte da performance aplica? Simbolicamente a foice remete a um ícone socialista do trabalho e da luta de classes. A máquina de escrever é o solo aberto, é a sola de seus pés, seu púlpito mudo. Teclas e dedos perto demais do chão. Letras de uma tecnologia antiga, analógica, mecânica. Tipos móveis que utilizavam as tintas de uma fita real e dedos para cada letra. Outra fita métrica das palavras. O canto de Camilo Gan, os sons de seus instrumentos invocam um ritual afro-religioso. A letra da música em iorubá pode dizer “eu vou brincar com cuidado”.
oito infinito
a proposta decolonial emerge de um outro tipo de resistência. A repetição inaugura uma temporalidade de diferenças não lineares, em que início e fim, morte e nascimento, ressurreição e desistência são partidos em outros pedaços não identificados, não dicotômicos, irregulares.
noves fora
estamos tentando testemunhar uma revolução acéfala, sem guias, sem garantias, sem líderes, sem palavras de ordem ou propostas definitivas. Sabemos o que não queremos, ele não. Mas sabemos o que queremos? Que tipo de programa queremos fazer? O que é possível? O que damos conta? O que a prática artística se propõe fazer? Qual é a possibilidade que ela abre?
nota dez
escrevo por notas, em um tipo de ensaio que Wilson de Avellar, enquanto performer escritor, desenha para seus textos curatoriais, palestras e críticas. Desejo que seja um texto em pedaços, moído, mastigado entre a fumaça do cigarro. Sinto a ansiedade por tentar criar algum sentido com essas palavras. Depois da performance haverá uma conversa. Desisto.
onze meia
a noite é fria. Faz silêncio no bairro da sagrada família. Não há carros passando na rua. A vizinhança é composta de latidos. As pessoas que chegam para as ações de apartamento não sabem o que vão encontrar. Não há uma indicação de roteiro no espaço ou papel impresso com a programação do dia. Outras performances acontecem simultaneamente à revolução. A atenção às vezes é difusa como o sentido.
meia noite
as reações da audiência são impressionantes. Destaco o gesto violento de uma pessoa mais nitidamente branca, grisalha, com traços masculinos heteronormativos. Esse homem sempre provisório entra na cena de um modo agressivo. Ele coloca a sola do seu sapato social de couro no degrau do alpendre. Repete essa imagem duas vezes para o espanto que não foi só meu. Mas o que nos surpreende? Por que deveríamos nos espantar com essa reação colonial traduzida na atitude de recepção? Desde quando a situação da arte está isenta de ataques e racismo? Por que ainda ficamos impressionados quando acontece algum tipo de reação negativa ao trabalho artístico? Desde quando a censura se tornou uma moeda no processo de legitimação? Por que gozamos ao comprovar que as instituições ou as pessoas institucionalizadas não toleram muito bem a prática artística? Essa não é uma constatação óbvia? Como ir além do discurso da censura? Será que a censura é nosso único tema de denúncia?
treze
não há dúvidas sobre a intensificação dos diversos ataques reais e simbólicos aos direitos humanos no brasil e no mundo. Nessa modalidade capitalística contemporânea, a necropolítica legalizada afia suas lâminas para ceifar vidas, imaginações, narrativas, diferenças. Toda seiva nutritiva inventiva é sugada, tragada, poluída até se tornar lama tóxica e viscosa de barragens expostas e impropérios racistas de 160 caracteres. A indústria bélica agradece. Precisamos encontrar um modo de continuar vivxs, de continuar desejantes.
catorze ou quatorze
na prática de linguagem, o campo das sensibilidades precisa de espaço para invenção. Como fazer quando a ironia e o cinismo crítico foram roubados junto com o dinheiro? Como fazer quando a ficção foi sequestrada para o real? Como fazer quando a verdade foi pulverizada em postagens e aplicativos? Como fazer se estivermos buscando aplausos no palco assim como estamos esperando curtidas nas redes sociais? Como performar a visibilidade?
praça quinze
a performance de Wilson de Avellar e Camilo Gan configura um portal energético. Somos convocadxs a atravessá-lo espiando e expiando o que nos convém, o que nos é possível viver no tempo que nos foi dado. Podemos atravessá-lo de frente, de costas, não sabemos mais onde é dentro e fora, antes e depois. Entre o tempo dessa presença decepada, podemos perder alguma coisa, até mesmo um tipo de dignidade antiquada. Não há explicação para o que está acontecendo. Não há tempo para justificativas ou ilusões de justiça. O que a arte pode é de outra ordem. Experiência sempre inaugural de outros mundos, outras possibilidades. Mover-se, transformar-se é um processo intenso e difícil. Não repetir é quase impossível.
dezesseis ânus
talvez repetir diferente. Reperformar as frases. Refazer as propostas percebendo o que se descobre a cada vez que ouvimos idiomas desconhecidos. Experimentar os códigos como decalques no corpo que se dissolvem com o tempo. Não adianta tentar lavar ou tentar lavar as imagens. A realidade é suja e continua indefinidamente até ser interrompida de novo.
[1] Como performar essa frase? Que tipo de desenho de corpo ela implica? Como nos sentimos convocados para essa proposta?