— por Joyce Athiê —
Crítica de “Calor na Bacurinha”, do coletivo A Peregrina (BH).
Como óbvio, algumas questões se fazem notar de forma diferente para homens e para mulheres, em especial, quando o assunto é o feminismo. Assim também, “Calor na Bacurinha” são, ao mínimo, dois espetáculos; e a versão que se segue diz de uma mulher (talvez seja necessário dizer: branca) em luta como elas que estavam em cena.
Embora esta reflexão olhe para o espetáculo encenado, observar o processo que levou à construção de “Calor na Bacurinha” traz alguns elementos de interesse para a discussão. Vale ressaltar que o acompanhamento de um trabalho artístico revela-se um privilégio para a compreensão de uma proposta teatral, como aconteceu com o espetáculo que chegou ao público em dois momentos como esquetes apresentados no Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto e em algumas performances realizadas na rua.
Ainda como uma cena curta, dirigida por Guilherme Morais, o trabalho adquiriu o tom da festa e da irreverência de uma encenação que procurava, pelo humor, debochar e sambar seios, bundas e vaginas na cara da sociedade em que as relações de gêneros são pautadas por hierarquias e privilégios. No caso, elas dançavam, rebolavam e, se não me engano, batiam siririca como verbos de uma libertação.
A desconstrução de discursos e comportamentos sociais seguia o gesto da ruptura também quanto à forma da encenação que problematiza a cena teatral e aponta para esses outros caminhos que vêm sendo experimentados em espetáculos performáticos. O desejo da liberdade feminina é também a liberdade que se experimenta em cena, mas que, ao final, após tanta desconstrução, fica incerto o que afinal foi construído. De certa forma, os rompimentos, quando preocupação preponderante, perdem sua potência, gerando menores efeitos.
Quando o grupo se modifica, com a entrada de Marina Viana em substituição a Guilherme na direção, além de alterações no elenco, a herança permanece com alguns crescimentos, agora já no espetáculo completo. A festividade, as paródias e o humor são constantes, o que cria poucos espaços de respiro para que o discurso chegue a outras esferas de afetação que se abrem ao aprofundamento de uma reflexão crítica.
Um destes momentos é a cena de abertura, uma composição plástica lírica que se forma com atrizes nuas, deitadas no chão e, sobre elas, é jogada uma rede de pescaria. Ao levantarem e caminharem para sair do que as prende, essa metáfora social de um histórico de repressão, os corpos ganham movimentos leves, moldados pela relação com a rede, dando ao público uma forma sutil de pensar a luta feminina, em outros tons, ritmos e imagens, além do deboche.
Outro momento que a festa se abre para outra forma de provocação remete à transformação dos corpos femininos que saem da rede como sereias e, por meio de pequenos movimentos corporais, se transfiguram em vacas e galinhas e nos fazem rir ao nos vermos retratadas e colocadas no lugar do bicho a que é dado símbolo vulgar. A bela sereia romanceada sai do lugar da musa encantadora, desejada e inalcançada dos poetas e recai em espaços que mais próximos a realidade e o cotidiano das ruas. E isso tudo em um mesmo corpo, o corpo da mulher. O que a leva de um lugar a outro? Por que um – aparentemente – valoriza e o outro é o lugar do desvalor?
Outro crescimento que se verifica na direção de Viana diz da transversalidade da luta feminista em interfaces com as discussões sobre transgêneros e a questão negra. No primeiro ponto, a presença de um corpo identificável como masculino entre as mulheres remete à discussão dos sujeitos que não se enquadram na binaridade homem-mulher. Entre elas, as diversas mulheres em cena, o transgênero aparece como parte de uma discussão que caminha junto até certo aspecto, sem, no entanto, explorar a potência desse encontro.
Na transversalidade da discussão, a questão negra torna-se o ponto alto do espetáculo. Enquanto samba, a negra, bela e livre, perde o equilíbrio do seu caminhar da vida quando se vê alvo do comportamento machista e racista. Cada assobio, uma punhalada. Ao ato, tão comum, ordinário em todos os sentidos da palavra, é dado sua dimensão constrangedora e desrespeitosa. O que representa um simples fiu fiu? Ela, negra, responde dando a ver os tropeços de seu caminhar. A especificidade da mulher negra faz-se ver no vocabulário que ganha outros predicados de humilhação, normalmente, associados à esfera do sexual e ao corpo objetificado, revelando o óbvio que precisa sempre ser lembrado: há diferenças entre nós. Neste ponto, o espetáculo acerta ao retirar o tom de humor e a chacota exacerbada e pueril de outras cenas.
Um ponto de grande interesse e que explica parte da inquietação com o espetáculo diz respeito ao processo a qual essas atrizes passaram durante a construção deste trabalho e que se torna velado na apresentação. Se, por um lado, os corpos nus são gritos de liberdade, de presenças que se fazem valer, de um empoderamento de espaço e do próprio corpo, desnudar-se não seguiu o ato simples de tirar a roupa, sendo constrangedor para algumas das atrizes no exercício do seu fazer artístico.
A nudez, mesmo aos contemporâneos de Zé Celso – ou de outros tantos exemplos como a Cia Brasileira de Teatro – ou ainda seguidores da Marcha das Vadias, continua sendo uma questão, certo tabu para a sociedade e, por vezes, também para o teatro. Por isso, os corpos nus falam, gritam, metralham, gozam. Descobertos, aos saltos, empoderados, são reflexos de um desejo, uma projeção de uma conquista. Nesse quesito, é como se a luta tivesse dado um pulo e atingido o final de uma trajetória não retratada em seu processo histórico e presente.
A ditadura dos corpos perfeitamente modelados por certos padrões censura a relação da mulher com seu próprio corpo, tolido de certos movimentos, coberto por roupas que vieram não para vestir, mas para esconder. Revelar a nudez, portanto, é um tabu também da ordem íntima. Não por acaso, algumas atrizes chegaram a se apresentar de calcinha e sutiã à época do Cenas Curtas. A dificuldade que se revelou tão delicada, mesmo no exercício da interpretação, no palco, parece superada.
Pergunto-me, então, por que não expor algo que foi sentido por elas próprias, enquanto mulheres e profissionais, na experiência de dar forma artística para um discurso, expondo uma experiência íntima – não necessariamente em forma de depoimentos pessoais, caso quisessem – e que toca num processo de luta social que atinge a ordem do íntimo, o que ampliaria as potências de revelar, pelo sensível, o que é viver sob os olhares de uma sociedade que limita a descoberta do próprio corpo? Vale lembrar que este esforço foi realizado na fala de uma atriz que revela ter sonhado apresentar o espetáculo de burca. O trecho, no entanto, foi executado sem ênfase.
Nesse sentido, “Calor na Bacurinha” é uma projeção de uma luta que retrata, pelo deboche, um lugar onde se pretende chegar, sem alcançar territórios que levem o público para além da festividade e que escamoteia o que nos é tão doloroso.