Por Guilherme Diniz
Crítica a partir do espetáculo Sodade, da Panorando Cia e Produtora (AM), visto no dia 17 de novembro de 2024 no Entre – Festival das Infâncias, no teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas.
O filósofo Eduardo Lourenço observa que a saudade, esta experiência tão complexa, ambígua e, em alguma medida, incapturável, é um modo pelo qual nós, seres de memórias, nos relacionamos com o tempo e seus movimentos. Para o pensador, este deslizante sentimento não deseja estritamente recuperar ou reconstituir o passado tal como ele factualmente foi, mas reinventá-lo como uma dimensão sonhada. Por isso, a saudade não é da ordem da representação, mas da vivência (e revivência) do pretérito, tornando presente aquilo que já foi ou está distante. Portanto, efemeridade e eternidade se justapõem estranha e poeticamente na jornada saudosa. De acordo com Lourenço, é possível avistar, entrecortando todo esse labiríntico processo, uma nota de amor. É o que ele nos conta em sua belíssima Mitologia da Saudade: “a saudade não foi mais que a expressão do excesso de amor em relação a tudo o que merece ser amado: o amigo ausente a amada distante, a natureza imemorial e íntima, escrínio de todos os amores, flor de verde pinho, ondas do mar”[1].
É este o território de Sodade, espetáculo da premiada Panorando Cia e Produtora (AM). A trágica e abrupta morte de um jovem sombreia a tranquilidade de um grupo de amigos peraltas e irreverentes, levando-os a encarar o luto e a ausência, a finitude e a angústia. O palco transmuta-se em um espaço memorial, em que os momentos de felicidade, “os bons e velhos tempos” são recordados pela coreografia. Contudo, o trabalho não se aloja na amargura. As suas ambiências, em geral, não se esgotam na seriedade ou na melancolia. Ao contrário, a policromia da cenografia e da indumentária, bem como os ritmos e os bamboleios dançantes remetem à alegria solar, à memória também como palco de irradiações que reafirmam pulsões de vida, celebrações do existir. Evidentemente a tristeza ainda está lá, seu incômodo se manifesta, mas o espetáculo investiga, com efeito, a alegria. Não uma alegria escapista ou ingênua, mas como energia coreografada que mergulha na explosiva vitalidade dos corpos em movimento. A saudade do companheiro ausente não se traduz apenas no pesar e na gravidade, mas sobretudo no sorrir e no festejo.
Importante lembrarmos que o título do espetáculo não é saudade, mas Sodade, uma palavra crioula, isto é, nascida dos entrecruzamentos fonéticos e morfológicos entre o português e certas línguas da África Ocidental. Em Cabo Verde, foi a cantora Cesária Évora (e em segundo lugar o cantor Bana) quem conferiu ao termo sodade uma dimensão, por assim dizer, poética e existencial, que condensa o sentimento agridoce de ter nascido no intrigante arquipélago[2]. Esse sentimento, agora matizado pelas africanias, sintetiza a aflição daqueles (em especial os emigrantes cabo-verdianos) que se veem distantes da própria terra. A sodade, evocada por Évora, é corporificada tanto pela música quanto pelos passos. Não é um estado puramente mental; é também físico, engloba a totalidade humana. Ora, as experiências saudosas podem se manifestar de maneiras distintas e variadas.
Fotos de Igor Cerqueira
Nessa mesma direção caminha os artistas da Panorando, pois além de não se afogarem na pura desolação, a montagem, evidentemente, pensa a saudade por meio do corpo. É no e pelo corpo que os tempos, as figurações e as evocações se instauram como jogo, relação e acontecimento. Os corpos dançam para ressignificar o passado, os amores idos, as confraternizações e o falecido amigo, tornando-os mais próximos, mais concretos. Memória e corporeidade são aqui sinônimas, pois a tensão entre lembrar e esquecer se inscreve nos movimentos do corpo, na sua densidade lúdica, nas dinâmicas que se desenvolvem quando aquelas presenças se encontram. Um biombo multicolorido e quadriculado é praticamente a única estrutura cenográfica que permanece do início ao fim, deixando o palco livre para as cenas individuais e grupais.
Sodade pode ser vista como uma espécie de colagem que aglutina distintos elementos musicais e cênicos, tais como elementos da palhaçaria, do hip-hop, do frevo, do forró, das brincadeiras e danças de roda, das sonoridades de Dominguinhos, da Academia da Berlinda etc. Assim como em As cores da América Latina, outro trabalho da companhia, este amplo mosaico de referências culturais se desdobra em quadros distintos sem se ater a uma narrativa linear e/ou inteiriça do início ao fim. O falecimento do rapaz é um ponto de partida para o jogo da memória se desdobrar de modo variegado e dinâmico, articulando situações múltiplas, fragmentos de recordações. As coreografias revisitam os divertimentos e os conflitos entre os amigos, os afetos, o bar e as festas que a todos reuniam. Os cinco bailarinos (Reysson Brandão, Marcos Telles, Carol Nunes, Fernando Castelo Branco e Talita Menezes), dirigidos por Fábio Moura, saltam por entre ritmos, andamentos, partituras e qualidades de movimento bastante diversos, exalando não apenas boa técnica, mas pulsante vigor. Nem sempre, contudo, as transições entre uma música e outra, um episódio e outro ocorrem fluida e organicamente. Há trechos em que as mudanças soam um tanto truncadas, algo bruscas, evidenciando mais as marcações cruas do que a plasticidade dos deslocamentos.
Uma atmosfera onírica reveste delicadamente todo o espetáculo. Os dançarinos, seres brincantes por excelência, parecem advir de uma lenda ou de uma fábula. Certos elementos culturais das regiões norte e nordeste são assumidamente tomados como insumos criativos para a companhia. Nesse aspecto, Sodade realça as potencialidades imaginativas da saudade e da memória. O parceiro que foi morto é magicamente revivido pelas danças e cores, perfazendo estórias e recordações preenchidas de encantamento. Ora, esse ciclo de nascimento-morte-ressureição está presente em muitas outras manifestações da cultura nortista e nordestina, como o Bumba Meu Boi. Esta natureza fantasista do espetáculo alcança seu ponto mais alto na cena em que surge uma enigmática criatura mascarada, um misto de assombração e feiticeiro, que a todos hipnotiza. Ao cabo, a ameaça misteriosa não passa de troça, uma peça pregada por um colega brejeiro. Na montagem, o real, o sonho e a brincadeira se atravessam o tempo todo.
Sodade é um espetáculo que já se apresentou em diferentes espaços. A criação se alimenta, muito especialmente, do contato vívido com a plateia, sobretudo nos contextos urbanos (ruas, praças etc.), em que a espontaneidade e a improvisação são constantemente convocadas. Em que pesem a energia, o carisma e a ligeira comicidade da trupe, o palco do Centro Cultural Unimed-BH nem sempre potencializava as interações entre os artistas e o público. Em algumas passagens o distanciamento se impunha. Situação semelhante pude observar na apresentação de Três fadas moribundas, do Coletivo Bufadas, também parte da programação do Entre – Festival das Infâncias. Uma sensação de afastamento pairava.
Segundo a curadoria do festival foi imprescindível alargar e pluralizar as noções de infância, compreendendo suas múltiplas formas sócio-históricas de ser e estar no mundo. Este ponto é crucial, pois desestabiliza política e esteticamente um sem-número de idealizações e essencialismos em torno das crianças. A presença de Sodade contribui para isso. Em primeiro lugar, o espetáculo traz imaginários e cotidianos que desenham outras possibilidades de infância em contextos geográficos outros. Além disso, o trabalho da Panorando aborda a morte, o luto e a aflição, isto é, temas, para alguns, delicados demais para os pequenos. Mas afinal, de quais universos infantis estamos falando? No Brasil, as infâncias negras, por exemplo, sistematicamente convivem com várias formas de violência provocadas pela desigualdade racial. A morte para muitas delas não é uma abstração distante ou “uma estrelinha que brilha no céu”. Aqui em Belo Horizonte, o espetáculo Matias e a estrada infinita do tempo, da nossa mineira Cia Bando, estreado em 2023, também refletiu sobre a finitude da vida terrena, partindo dos universos culturais afro-brasileiros. Como eu já assinalei em um outro ensaio, “as questões das crianças e dos jovens, em sua diversidade, são questões de toda a sociedade”[3].
Neste mundo em que muitos de nós parecem só andar apressados e em que tudo precisa ser instantâneo, imediato, refletir sobre a saudade é suspender uma ideia de tempo implacável e linear, sustar esse fluxo avassalador. Do que as nossas crianças (de todas as idades) têm saudade? Eis uma inquietante pergunta que a Panorando Cia e Produtora nos propõe.
Ficha Técnica
Direção: Fábio Moura
Assistência de Direção: Talita Menezes
Coreografia: O Grupo
Elenco: Marcos Telles, Fernando C. Branco, Carol Nunes, Reysson Brandão e Talita Menezes.
Iluminação: Fábio Moura
Produção: Diego Sampaio, Marcos Telles e Kelly Vanessa.
Elementos Cênicos e Pesquisa Musical: Fábio Moura e Talita Menezes.
Ilustrações: Frank Kitzinger
Colaboração: Jean Palladino, Juca Di Souza e Thiana Colares.
[1] LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade: seguido de Portugal como Destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[2] https://www.youtube.com/watch?v=ku_WZoTtT8Q
[3] https://www.horizontedacena.com/a-cena-dos-muriquinhos-para-pensarmos-os-caminhos-dos-teatros-negros-para-as-infancias-e-juventudes/