Crítica a partir da intervenção urbana Chorar os Filhos de Nina Caetano apresentada na programação do FIT-BH 2018.
– por Clóvis Domingos –
Foto de Guto Muniz/ FIT-BH
“Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus”. (Pedaço de Mim. Chico Buarque).
Há mais de uma década, a artista Nina Caetano vem circulando (por diferentes espaços e cidades) e criando trabalhos que abordam a questão da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Desde Baby-Dolls: uma exposição de bonecas (ação surgida em 2008 e realizada juntamente às performers Lissandra Guimarães, Érica Vilhena e Joyce Malta) a Espaço do Silêncio (2013), seus programas performativos irrompem nas malhas urbanas e buscam trazer para a dimensão pública a denúncia da naturalização do feminicídio em nosso cotidiano marcado pelo machismo e pela misoginia.
Em Baby Dolls, na silhueta riscada dos corpos das mulheres-bonecas que tombavam assassinadas no chão, Nina escrevia os discursos, imperativos e palavras de ordem secularmente destinados à condição feminina, tais como: “cozinhar, parir, transar, não reclamar. Sorrir…”. Já em Espaço do Silêncio, a escrita apresentada era, além de um texto elucidativo sobre a crescente violência contra a mulher, os nomes reais das vítimas inscritos em etiquetas como lápides a mancharem de sangue o lençol branco que com o passar do tempo se transformava num cemitério coberto de cruzes feitas com durex vermelho. Agora, com a ação Chorar os Filhos, são os retalhos (com textos e falas de mães que perderam seus filhos para a polícia e para o Estado), que são costurados para formarem uma grande mortalha de dor.
Chorar os Filhos está na programação do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte e acontece durante três dias consecutivos na Praça Rui Barbosa, localizada na região central. Como performance de longa duração, a cada dia deverá experimentar diferentes dinâmicas relacionais, temporais e espaciais, fora o próprio acúmulo do ato de alinhavar tantos fragmentos dispersos e dolorosos, que ao final da ação, irão evidenciar a construção de um grande tapete que reunirá os depoimentos das mães sobreviventes. Desconfio que não faltarão momentos de desafio e confronto para esse trabalho no contato com a diversidade das ruas, uma vez que ainda reina a perversa ideia de que a morte de muitos desses jovens, quando não é justa, certamente é causada por culpa deles mesmos, que sempre são apontados e criminalizados como infratores ou bandidos em potencial. Mas no Brasil, gente considerada de “quinta categoria”, pode ser executada sumariamente e impunemente. Como nos lembra Judith Butler: a comoção é sempre seletiva e há vidas que importam mais do que outras.
Minha experiência com essa ação se deu no primeiro dia de realização da mesma e por duas horas acompanhei e observei um pouco do que se desenrolava. Cheguei à praça e encontrei a artista sentada num banco e na companhia de duas mulheres que a auxiliavam na tessitura da mortalha. Inicialmente permaneci mais afastado. Vi que a ação, em alguns momentos não era percebida pelos transeuntes que por ali passavam, mas para mim era muito significativo acompanhar os desenhos produzidos pelas mãos e braços dessas mulheres ao levarem agulha e linha ao encontro dos tecidos. Já sabendo antecipadamente da proposta desse trabalho, o fiar feminino anônimo a mim se configurava como uma Coreografia da Restauração. Restauração simbólica da dor de milhares de mulheres negras e pobres que diariamente sofrem com a perda brutal de seus filhos. Sim, suas vidas e histórias de dor importam para outras mulheres. É sobre as vivências e sobrevivências (vale destacar que essas expressões estão na capa da programação impressa do FIT-BH e informam muito da proposta curatorial dessa edição) dessas mulheres mutiladas que se tornaram combativas, que a performance se ancora. Mesmo tendo a coragem em não se calar e apontando o dedo na cara do Estado, em alguns casos, há aquelas que sucumbem devido às feridas emocionais nunca cicatrizadas e assim morrem, como aconteceu nesse ano de 2018 com a manicure e cabelereira Vera Lúcia Gonzaga dos Santos, que também militava no Movimento Mães de Maio (SP).
Urdiduras da Indignação
Foto de Roque Antônio Juaquim
Me aproximei da performance e pude ler alguns fragmentos textuais já remendados: “Cada vez que escuto um tiro penso no que o Cleiton sentiu quando entrou a primeira bala”, “no dia primeiro de janeiro de 2008, Andreo, meu filho de 17 anos, foi espancado, torturado e morto por seis agentes de Degase”, “a mulher de sexo frágil não tem nada quando ela perde um filho”. Fiquei impactado ao ler essas escritas tão reais e verdadeiras como se pudesse escutar a voz de dor e revolta dessas mães. Depois dois jovens negros pararam e leram um pouco, concordaram com a cabeça e saíram em silêncio. Também presenciei uma jovem negra, que ao permanecer ali por um período, saiu chorando. A ação sendo realizada numa região tão popular do baixo centro da cidade encontrava eco e possibilidades de diálogo e afetação com a população trabalhadora e miserável que por ali vive. Quando os poucos retalhos já cosidos, eram dispostos no chão, algumas pessoas paravam e iniciavam a leitura dos mesmos. Acostumados a ler e receber as propagandas e anúncios de todo tipo de venda que assolam o espaço-tempo urbano, a presença dessas grafias insurgentes (através das falas singulares das mães), subvertia, de alguma forma, nosso hábito já reiterado pelo contato ordinário com as discursividades de uma cidade-outdoor.
Foto de Guto Muniz/FIT-BH
De minha parte achava interessante que as pessoas nem sequer desconfiavam que aquela ação compunha a programação de um festival de teatro da cidade. Reconheciam no gesto estético-político de Nina Caetano em Chorar os Filhos, mais uma ação de protesto e de natureza cidadã do que a possibilidade de uma obra artística e espetacular. Uma mulher afirmou: “Eles matam só os pobres! Mataram Marielle Franco. Matam o povo negro todo dia”. Nesse sentido, se ressalta a ideia de um fazer cênico em campo ampliado, essa liminaridade entre arte e política, essa potência de se colocar em confronto e negociação estética e vida urbana, arte e direitos humanos, além da expansão da cena teatral ou performática para além dos circuitos estabelecidos com seus espaços privatizados. Algumas questões me visitaram: Como um festival de teatro conversa com todo tipo de morador da cidade? Como criar encontros inesperados? Como deslocar o lugar de espectador para participante? Como alterar códigos, comportamentos e percepções? Um fato interessante ocorrido: uma mulher se aproximou e disse: “Que lindo! Vocês estão fabricando camisetas para vender? O que é isso”? A resposta não demorou a surgir: “leia os escritos para você compreender”.
Dessa forma, ficam expostos determinados condicionamentos sociais: de um lado, a mulher, dona de casa perfeita e habilidosa para todo tipo de costura e trabalho manual, e de outro, o espaço da cidade vivenciado como lugar da mercadoria, do consumo e mais, da pressa e da velocidade. O ruído excessivo e a movimentação enlouquecida da cidade contrastavam com a concentração e o gesto delicado e solidário (ainda que incômodo e deslocado para uma Sociedade da Felicidade) das mulheres a alinhavarem relatos femininos de dor em Urdiduras da Indignação. Se a bala das armas perfura o corpo jovem, preto e indefeso, essa ação artística, metaforicamente, sutura o corpo social e materno.
Se em Espaço do Silêncio, Nina Caetano estava cercada das mortas, em Chorar os Filhos penso que são as mulheres viventes que se fazem presença. Viventes talvez não, mas sobreviventes. Ou estarão mais mortas do que nunca? Como podem lidar com a dor e o vazio causados pelo extermínio de seus filhos, cujos corpos desaparecidos não podem sequer ser velados ou enterrados? Quem vai acolher seus desesperos? Quem vai suportar suas réstias de vida fraturada pelos poderes assassinos? Não se trata mais da dimensão de um trabalho de luto, pois nesse ainda existe a possibilidade de se restituir de alguma forma o objeto perdido. As mães que choram seus filhos mortos pela chacina da polícia e do Estado se encontram na dimensão do trauma. Agonizam um viver sombrio e sustentado através de medicações psiquiátricas. “Hoje eu sou uma pessoa mais triste que morre um pouco a cada dia SEM MEU FILHO. É muito difícil pra mim, a mãe é a que mais sofre”, tudo isso está exposto na mortalha de Chorar os Filhos. Como sobreviver ao horror do silêncio e da injustiça? Como não enlouquecer?
Foto de Matheus Silva
Chorar os Filhos de Nina Caetano é uma intervenção urbana artística como um manifesto de resistência e solidariedade, uma poética da falta, um bordado contra o esquecimento, uma micropolítica de interrupção, um convite à reação coletiva, uma aparição rara contra as desaparições de todo dia, uma costura de vidas despedaçadas. É sobre vivências de sobrevivências, e pode ser também uma prática vaga-lume, na acepção de Georges Didi-Hubermann: uma faísca de luz que se emite, ainda que trêmula, intermitente e fraca (se comparada aos poderosos refletores que nos cegam), mas necessária e capaz de se tornar fresta e farol norteador de luta nessas noites tão frias e escuras.