– Por Soraya Martins –
Reflexões e expansões a partir do espetáculo Memórias Póstumas de um Neguinho, de Lucas Costa.
Elas levam a vida nos cabelos: (…) Antes de escapar, as escravas roubam grãos de arroz e de milho, pepitas de trigo, feijão e sementes de abóbora. Suas enormes cabeleiras viram celeiros. Quando chegam nos refúgios abertos na selva, as mulheres sacodem as cabeças e fecundam, assim, a terra livre.[1]
Na última reflexão que fiz, da segunda temporada da segundaPRETA[2], sobre o espetáculo Black Boulevard ou Tudo Preto de Novo ou Ensaio Geral, da companhia Espaço Preto, chamei para conversa Machado de Assis, autor canônico da literatura brasileira, embranquecido pela crítica literária. Na ocasião, problematizava sobre o modo torto e redutor que se tem para ver/pensar a arte negra: atrelada somente às mazelas sociais e à religiosidade de matriz africana. Essencialismo Negro! Brinquei a la Machado. Decifra-me ou devoro-te.
Agora, e como sempre tenho feito, chamo Leda Maria Martins, da poesia, da academia e do terreiro, que junto com a gente de pele colorida tece teoria e conhecimento poderosos, para encarar a esfinge, ou melhor, matar/problematizar as neguinhas e os neguinhos que, obviamente, também habitam nosso modo de fazer teatro. Decidi. Está propício. Vou misturar Leda e Machado. Que a mistura do dois nos potencialize esteticamente!
Memórias Póstumas de um Neguinho, como as memórias do defunto-autor Brás Cubas, coloca a memória e o passado em cena para, a partir deles, ressignificar o presente. O neguinho que levava porrada dos coleguinhas, que pela herança social preestabelecida entraria para a criminalidade fácil, morreu. Morreu o neguinho que a sociedade queria neguinho. Agora é Lucas. Lucas Costa. Lucas imprimindo a marca da sua negritude no corpo, mais especificamente no cabelo, que nas múltiplas possibilidades de análise que o corpo negro oferece, é aquela que se apresenta como síntese do complexo e fragmentado processo de construção das identidades negras.
O cabelo não é um elemento neutro no conjunto corporal. Foi transformado pela cultura em uma marca de pertencimento étnico/racial. A ênfase, aqui, no cabelo/beleza não é um desvio da luta antirracista, antes, nessa luta, o estético é indissociável do político. Coloca a negra e o negro no mesmo território dos não-negros, o da humanidade.
Memórias do Lucas: voltar ao passado para nele fazer emergir um ressentimento recalcado, existente como potência criadora e fundante para algumas artes, como a literatura de testemunho e o teatro negro. O jogo de colocar as memórias em cena recompõe por intermédio da narração a vida de Lucas – persona-personagem que se encena duplamente -, reconstrói um passado morto, subvertendo não apenas a temporalidade dramática, como também o status do personagem Lucas.
Quantos neguinhos dentro de nós ainda precisam morrer?
Como encenar esteticamente nossos ressentimentos, nossas fúrias e nossas subjetividades?
Chamo a Leda: No encontro, na semana anterior, dia 4 de setembro, para abrir os caminhos da terceira temporada da segundaPRETA, Leda nos falou sobre o que ela chama de “tirania da subjetividade”, o excesso da transposição direta dos lugares de enunciação para o palco, a partir de um texto desabafo, sem ou com pouca mediação criativa, criatividade aqui é no sentido de pensar no como, na forma (e não só no conteúdo/tema), tecer essa subjetividade que está na esfera do palco, que foi removida propositalmente do cotidiano. E eis o decifra-me ou devoro-te:
“Como reelaborar esteticamente a experiência para que esse eu (essa dimensão subjetiva) que se expressa seja um eu fingido para a experiência estética?”
É sintomático ver na discursividade da cena negra contemporânea a repetição do tema negrura, que transita do individual ao coletivo e vice-versa, uma repetição que não está na ordem da repetição perfomática. É passado que não passa, ainda não foi superado, é presença obsidiante, por isso sempre volta. Talvez essa repetição não seja, agora, o ponto a ser problematizado (ou talvez sim, se pensarmos a nossa expansão artística para além da repetição do enunciado e da enunciação sobre a negrura) e sim o como cuidamos desse discurso esteticamente, fazemos cafuné, colocamos para dormir, o questionamos e nos questionamos.
Elaborar, laborar nossas subjetividades recalcadas, nossas fúrias e ressentimentos sociais, criativa e esteticamente, talvez seja o caminho para fissurarmos nós mesmos como artistas, para estarmos disponíveis e produzirmos outras possibilidades estéticas em arte. Fico pensando que para mudarmos os padrões coloniais do ser, do saber e do poder em ato estético-performativo ainda precisamos, nós artistas pretas e pretos, matar nossas neguinhas e neguinhos do teatro.
[1] Eduardo Galeano.
[2] SegundaPRETA é um projeto criado por um grupo de artistas negras e negros de Belo Horizonte com objetivo mostrar as produções pretas, refletir e estabelecer um diálogo tensionado sobre as várias poéticas da cena negra contemporânea.