Julia Guimarães*
Em cena, uma enfermeira cuida de uma paciente em coma como quem arruma um quarto. O corpo em estado vegetativo é tocado de maneira mecânica por ela, cuja atenção está centrada mesmo é na novela mexicana que transcorre na TV.
Assim, com uma indiferença sutilmente cômica entre as personagens, inicia-se o espetáculo “Cucaracha”, da Cia. Independente, do Rio de Janeiro, que se apresentou na última terça (12) no OFF Rio Multifestival de Teatro, na cidade de Três Rios (RJ).
Fotos de Paula Kossatz |
A cena que abre a peça constrói uma interessante antítese do que será desenvolvido posteriormente. No entanto, o texto do incensado dramaturgo carioca Jô Bilac mostra logo a que veio ao evidenciar a solidão dessas duas figuras confinadas no ambiente asséptico de um quarto de hospital.
Mirrage, a enfermeira, vive sua rotina permeada de atropelos sobre o presente. Sua relação automatizada com o trabalho e com a vida parece materializar-se inclusive em seu próprio figurino, um vestido com cores idênticas à da parede do hospital, onde se funde como um ser preso àquele espaço e desprovido de vontade própria. Já Vilma, a paciente em estado de coma há meses, só recorda do passado através de flashes e não sabe mais exatamente quem é, nem em qual camada entre a vida e a morte se encontra naquele momento.
É através de uma certa licença poética que o espetáculo vira a chave e, em doses homeopáticas, apresenta o desenvolvimento da relação entre as duas. Nesse partilhar de solidões, pouco importa se esse convívio é construído no plano da memória, do devaneio ou da realidade. O que vemos ali, de fato, é a realidade da cena, do teatro, e ela parece bastar em si.
Então, mais do que resolver o paradoxo entre os limites do que seria vivido ou imaginado na trama, interessa perceber as transformações de cada uma a partir desse suposto convívio.
Bastante diferentes entre si, desde o ritmo corporal de cada uma até ao modo como encaram o mundo, Mirrage e Vilma funcionam através de uma estrutura dramatúrgica relativamente simples, que valoriza a dimensão de alteridade surgida entre elas.
Enquanto a enfermeira tem na nova amiga um estímulo para tomar as rédeas de sua própria existência – ao invés de fazer da rotina de trabalho uma muleta que a isentaria de autorreflexão –, a paciente se agarra à Mirrage como um fio derradeiro de conexão com a vida. A experiência limítrofe do coma faz com que a personagem sirva como uma espécie de consciência libertária para a outra – e por tabela, para o público – ao nos dizer aquilo que, em vida, não deveríamos esquecer.
É da paciente também que surge uma metáfora estruturante do espetáculo: a do espaço sideral, para onde ambas fabulam embarcar vez por outra no decorrer da peça, a bordo de um foguete. Ao mirar a Terra de longe, conseguiriam ver certas banalidades desimportantes do cotidiano para, paradoxalmente, enxergar o que realmente importa em suas vidas.
Se por um lado a simplicidade da dramaturgia favorece a identificação do público em relação às personagens, por outro, há o risco da alta voltagem dramática – é bom lembrar que estamos diante de questões como solidão e morte – pender a balança demais para a emoção catártica consumida em si mesma, o que acontece em algumas passagens do espetáculo.
Percebe-se que, de fato, existe uma preocupação em ressignificar esse mote simples e, nesse sentido, a sofisticação do texto de Jô Bilac, que sabe dosar humor inteligente em cenas que rapidamente poderiam estagnar-se em diálogos superficiais, confere novos coloridos à trama. Da mesma forma, tanto o diretor Vinícius Arneiro quanto as atrizes Carolina Pismel e Júlia Marini investem num timming bastante peculiar, sutilmente estranho, que também colabora para contrabalancear a densidade temática e tornar a encenação atual, fato ressaltado ainda pela cenografia, a iluminação e pela trilha sonora.
No entanto, são justamente os momentos que parecem não só sugerir, mas praticamente exigir do espectador que se emocione – e a cena final é emblemática nesse sentido – aqueles potencialmente mais frágeis do espetáculo para quem não embarca na corrente dos afetos. Nesses momentos, a simplicidade pode transformar-se em simplismo para quem não vivencia a catarse, pois é justamente o caráter dramático que infla o sentido. Assim, quem não percorre esse arco emotivo termina por deparar-se com uma significação um tanto trivial.
Nesse caso, a beleza de “Cucaracha” irá residir mais em seus detalhes, como quando a paciente reflete sobre o grito, esse expurgo de caráter tão pessoal, forte nas crianças e nos animais; ou sobre os perigos, tão recorrentes, de ocupar a vida com coisas que, no fundo, não interessam de fato, sendo essa uma das questões-chave do espetáculo. É quando reflete sobre a liberdade com certa leveza e despretensão que a montagem propicia também ao espectador semelhante liberdade de embarcar à sua maneira naquele fluxo de emoções.
*A jornalista viajou a convite da produção do OFF Rio Multifestival de Teatro.