:: Por Soraya Belusi::
A hibridização de linguagens teatrais, de procedimentos de escrita dramatúrgica e a multiplicidade de vozes que assumem lugar no discurso são algumas das características presentes no espetáculo Maria Inês ou O que você mata para sobreviver? que nos levam a refletir sobre conceitos como a escrita rapsódica proposta por Jean-Pierre Sarrazac, que a aproxima do domínio do épico, do território “dos cantos e da narração homéricos e, ao mesmo tempo, dos procedimentos de escritura tais como a montagem, a costura e a coralidade ([1])”, que se inscreve sob o signo da polifonia.
O espetáculo da Cia. Ato Reverso (SP) trabalha em pelo menos dois planos: um ficcional e outro real, que se cruzam e se questionam na encenação, divididos entre a narrativa sobre a “saga” de Maria Inês e a dramatização dos testemunhos ouvidos pelos atores criadores durante residência na Fundação Casa (que recebe menores infratores). Somam-se ainda a esses dois vetores dramatúrgicos os questionamentos dos próprios performers, que permeiam a encenação em forma de comentários. Nesse sentido, a fábula de Maria Inês, ao mesmo tempo em que é encenada, é o tempo inteiro questionada no plano das ideias, apontando para um “teatro dos possíveis” ([2]), em que uma alternativa é apresentada, mas outras possibilidades são argumentadas.
Tal procedimento não só traz um ponto de vista dos performers sobre a temática levantada – a violência contra mulher, o que somos capazes de fazer para sobreviver, os tempos de barbárie em que vivemos, o que matamos dentro de nós diariamente, o que é liberdade ou prisão, o que é escolha ou não, etc –, como também permite ao espectador engajar-se em outras reflexões possíveis, fazendo com que a obra não seja determinista ou autoritária no ponto de vista que apresenta (um risco iminente pela própria temática trabalhada).
A multiplicidade de vozes se dá não só pelo próprio caráter rapsódico da dramaturgia, mas também pela maneira como esta se agrega à encenação, sendo realçada por procedimentos como a opção pela construção coletiva de personagens, sem que nenhum ator assuma prioritariamente um papel dentro da fábula e, consequentemente, a escolha pela simultaneidade da enunciação, que aparece em cena de maneiras diversas – com a explosão dos diálogos, às vezes com a mesma fala sendo repetida por todos os criadores ao mesmo tempo, quanto nos momentos em que facetas diferentes da história dessa personagem são contadas para determinados grupos de espectadores. Tal escolha enfatiza ainda o caráter de coralidade/coletividade que se empresta também à atuação.
Ao mesmo tempo em que o espetáculo ganha em complexidade ao entrecruzar planos distintos como real e ficcional, dramático e narrativo, fabular e documental, ele recai na possibilidade de leitura na qual um plano torna-se referencial para se pensar o outro, gerando assim uma comparação entre as situações “ficcional”, de Maria Inês, e “real”, dos meninos da Fundação Casa. A certa altura do espetáculo, um dos atores-criadores diz algo como “nós levamos a metáfora, eles nos deram a realidade” ao referir-se a essa questão, o que fundamenta de certa maneira a relação que se estabelece na dramaturgia entre esses dois planos. Porém, esse cruzamento já proposto pela obra pode tornar-se, senão mais claro, ainda mais potente de leituras para o espectador.
A fonte de inspiração da fábula, a canção “Maria Inês” do grupo Karnak, também integra de forma concreta essa tessitura dramatúrgica, à medida que se torna texto e também estrutura – a peça se desenvolve em estrofes –, mas parece ainda trazer, por sua sonoridade, dois elementos fundantes do espetáculo: uma oralidade popular brasileira e a musicalidade que permeia a encenação (com referências que vão do rap, ao funk e ao repente).
Por tudo isso que se enumerou até aqui, Maria Inês ou O que você mata para sobreviver? articula de maneira complexa uma série de questões e procedimentos teatrais contemporâneos, criando uma obra que dialoga, de maneira eficaz, com uma multiplicidade de referências estéticas e formais – o que tem sido uma das “marcas” encontradas em obras que resultam de processos coletivos/colaborativos de criação na cena contemporânea brasileira. Também tendo como referência as práticas compartilhadas de criação, tende-se a ser uma questão de complicada solução no processo as escolhas finais na formalização da obra – já que todo material levantado foi criado diretamente pelos criadores, e os cortes são sempre “sofridos”. Por essa perspectiva, denota-se no espetáculo uma ênfase exagerada na repetição dos procedimentos que, talvez, possa ser fruto dessa idiossincrasia do próprio processo (me refiro, no espetáculo, a procedimentos como o próprio canto-improviso, assim como as idas e vindas entre dramatização e narração, criando uma sequência com certa previsibilidade).
[1] SARRAZAC, Jean-Pierre (org). Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. Editora CosacNaify. São Paulo: 2012
[2] Segundo Sarrazac, o termo designa uma dramaturgia “impelida pela constante meditação do autor sobre os personagens e sobre a fábula, (…) progride por hipóteses que vão se substituindo umas às outras. (SARRAZAC, 2002: 63).