De que maneira os territórios do Ceará e de Porto Alegre estão presentes no espetáculo? E as condições sociais e culturais de travestis e transformistas são semelhantes nesses dois extremos do país?
Como foi a pesquisa para o espetáculo? Que situações observou, o que mais atraiu seu olhar, o que o quebrou expectativas ou as reafirmou?
A pesquisa consistia, principalmente, na montagem do espetáculo a partir de três pontos. Primeiro, um laboratório/pesquisa de campo onde eu deveria me travestis e circular pela cidade de Porto Alegre para ambientes como teatros, padarias, super-mercados, restaurantes e hotéis, bem como acompanhar o trabalho de travestis nas ruas de prostituição e casas de show transformista. Segundo, colher registros de artigos, literatura, histórias contadas. Terceiro, uma oficina de teatro para travestis, sendo este o que mais me interessou, pois o mesmo foi realizado ao longo de dois meses no PCPA (Presídio central de Porto Alegre, o segundo no país com ala só para travestis e seus companheiros). No presídio eu fui tocado pela possibilidade de dignidade, pois a partir do momento que foi permitido às travestis e seus companheiros exercerem dentro do presídio o afeto, e a possibilidade delas exercerem sua sexualidade, houve uma grande mudança na conduta e aceleração no processo de reabilitação.
O presídio foi minha grande experiência, pois ao mesmo tempo que me fez perceber a importância dessa ação, também me causou angústia ao retornar pro Ceará e ver que no meu estado essa realidade no sistema carcerário é cruel e desumana.
A sua história pessoal está inserida no espetáculo de alguma forma?
A todo instante. O espetáculo é um revelar-se, trata-se de uma exposição do Silvero. Nele sou capaz de abrir minhas experiências, tentar levar o espectador aos ambientes por onde percorri e presenciei as situações, além de expor questões bem pessoais como a minha sexualidade na infância, na família e na sociedade em que vivo.
Como se estrutura a linguagem cênica?
Particularmente eu considero um espetáculo antropológico – autofágico – esquizofrênico. Eu não tenho como engessa-lo em um gênero teatral. O que mais me satisfaz nesse trabalho é a capacidade, enquanto artista, de ter verdade e liberdade com o público. Fazer um teatro onde tudo que é dito é real e sincero.
Eu acredito que se temos como referência, dos espetáculos que vi, os trabalhos “Luis Antônio – Gabriela” (SP) , “Borboletas de Sol de asas Magoadas” (RS), “Avental Todo Sujo de Ovo” (CE), “TransTchekov” (RJ), ou mesmo nós do Coletivo As Travestidas com “Uma Flor de Dama” e “Engenharia Erótica – Fábrica de Travestis”, penso que se todos esses trabalhos fossem capazes de rodar o país e, principalmente, atingir as escolas, nós iremos inciar uma nova era para a construção de uma condição de vida melhor para as trans.
Repito a pergunta acima, mas em relação à sua análise sobre quais as condições do país para atrizes travestis ou transexuais.
O Brasil teve uma época em que as travestis eram as verdadeiras vedetes do teatro, as mais aclamadas e cortejadas. O problema é que quando surge a discussão de gênero, a questão artística perdeu a sua vez e a busca pela definição e realização sexual veio para primeiro plano. Atualmente, estamos conseguindo resgatar a condição do ator-transformista, tendo em vista que as questões de gênero estão mais esclarecidas. Deste modo, para os atores etrans, hoje é mais tranquilo diferenciar a sexualidade da arte, podendo assim exercer as duas sem questionamentos. Hoje, no Coletivo As Travestidas, estamos desenvolvendo métodos de trabalho que permiti o ator construir, por meio de exercícios e laboratórios, a “sua travesti”, configurando assim, para nós, como atores-transformistas.