Esta crítica integra a cobertura da 16ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH) e foi escrita a partir do espetáculo O fim é outra coisa, de Zora Santos, Dione Carlos, Grace Passô e Gabriel Cândido.
Por Luciana Romagnolli
“Você suga o peito de uma pessoa. É o seu primeiro alimento.
A pessoa respira. Você escuta. É como se o som da respiração dela fosse de leite.
Você ouve um estômago roncando e não sabe se é o seu ou se é o dela.
Você ainda não sabe quem é essa pessoa. Sabe e não sabe.
[…]. Mas não sabe se ela te oferece o leite por amor ou por trabalho.
Se ela está te alimentando ou te servindo.
E aí? Quem é você?”
Dos muitos modos possíveis de aproximação a O fim é outra coisa, tomemos aqui a via pela qual a peça convoca o espectador a se localizar diante de uma pergunta sobre o seu ser. Ela indica que as identificações estão em questão, entre a alienação e a separação do corpo que serve o leite e do corpo que o sorve. E aponta para o instante indiscernível, quando ainda não se sabe o que separa o seu e o dela, o trabalho e o amor, a mãe e a ama.
Assinada por Dione Carlos e Zora Santos, que também atua, a dramaturgia inclui o público nos caminhos transitados por uma família até um local onde assentar na clareira de um morro. Ao espectador é solicitado que carregue objetos, mova-se, escute Zora descrever como aquele espaço será habitado com uma horta, um fogão e um viveiro de pássaros, esquive-se do longo pedaço de bambu trazido para fazer daquele clarão uma casa, decida suas posições.
Tais materialidades, palpáveis na cenografia ou sugeridas pela oralidade, vão criando uma ambiência de concretudes, sabores e aromas que instauram um modo de vida transmitido entre gerações. Saberes das folhas, do sangue, da cozinha, da terra, das gentes. “A gente convive com os porcos, alimenta os porcos para se alimentar deles depois. E a palavra ‘porco’ serve para tudo aquilo que a gente precisa mastigar para não ser devorada”, diz Zora.
Saberes que não se aprisionam em instituições; incorporados, em ato, em fazeres com os quais se inventam soluções para a perseverança diante do adverso. Daí emerge uma ética de cuidado e de mutirão, não ingênua. Zora transmite ao público uns versos que nomeiam a natureza da qual se serve para sobreviver, ao refrão: “enquanto você mexe com o tutu, o tutu mexe com você”. Os corpos se afetam, os gestos repercutem, ser se faz no entre um e outro.
Sem lugar, despossada, despejada, sob a ação repetida da segregação racial, a família acompanhada pelo público precisa deslocar-se novamente. “Ser longeva é a minha vingança”, dirá Zora, encontrando para si não uma identificação fixa, mas essa movência que é por si mesma uma tecnologia viva de sobrevivência e que leva junto saberes incorporados, esses dos quais não se despoja, para reinstaurar uma vida possível a cada novo território aonde chegar. Agora, à cozinha das ervas e do porco se une a cozinha dos instrumentos, fazendo nascer o samba e amplificando-o com a outra tecnologia, a eletrônica. A peça suspende o drama para dispersar os sons dessa habitação musical de tempo dilatado. O passado e o futuro traçam rotas não lineares, aí não está o fim.
As palavras se depositam no fogão e Zora cozinha a feijoada. Quem é a mulher que serve o alimento? Ama ou trabalha? Ama e trabalha? Aqui a linha que a dramaturgia esticava não retém somente um sentido tramado: há mais vida no encontro que o teatro promove, há mais que a história de alguns personagens, há a presença de Zora Santos e o que ela significa e mobiliza como criadora a quem conhece sua história no projeto Comida de Cerca, uma maneira particular de enlaçar a arte e a ancestralidade na culinária afro mineira.
A direção de Grace Passô e Gabriel Cândido abre os espaços e tempos para que a experiência do teatro não se instale em formas prévias de contemplação e drama; permaneça porosa, ampliada, fronteiriça, incompleta. À beira de se derramar na roda de música. Então, Zora termina a feijoada, o aroma reconecta os corpos no espaço. E se afasta para apreciar o próprio alimento.
Fotos de Kika Antunes
Ficamos com os músicos, a panela, os acompanhamentos, os potes, o convite a nos servirmos, sobre o qual ressoam aquelas primeiras frases da peça. A mesa está posta para que a partilha do alimento em regime convivial se dê com algum questionamento sobre o lugar de cada um nessa situação. A mulher que cozinha não está ali para servir. Serve-se. Recusa-se a compor outra vez o mesmo quadro exaustivamente repetido, desde pinturas de Jean-Baptiste Debret ao encontro cotidiano com pessoas negras nos ofícios servis que ainda lhes são frequentemente designados na estruturação social racista de uma modernidade colonizada. Desenquadra-se.
Entretanto, Zora não cozinha somente sua porção, faz um caldeirão. Não nega o alimento a uns ou outros. Deixa que cada espectador precise se localizar na sua relação com quem o alimenta e com o uso (amoroso, crítico, exploratório?) que faz disso. Zora não os segrega, mas se destaca. Ocupa-se de seu próprio alimento. Sua resposta, ainda que fale na vingança da longevidade (e da alegria), traz uma aposta na implicação ética de cada um em um convívio comum. Naquilo que nos distingue, mas também no indistinto.