— por Elisa Belém —
Crítica a partir do espetáculo “BR-Trans”, de Silvero Pereira (CE).
Foto de Alex Costa.
Há momentos em que não é fácil escrever, mas é necessário. Escrever é como falar para uma escuta silenciosa. E há assuntos que pedem silêncio. Um minuto, ao menos. Um minuto de silêncio para as perdas de muitas vidas nas ruas, como também para outras perdas, outras renúncias – sobre como se poderia ser e muitas vezes não se é. E também sobre o medo, o preconceito, a moral e os bons costumes, os julgamentos, as tentativas de aceitação, a violência em seu maior e menor grau.
Há uma peça de teatro do escritor austríaco Peter Handke chamada A hora em que não sabíamos nada uns dos outros. Nunca li esse texto e, no entanto, guardei o título. Todas as horas são horas em que não sabemos nada uns dos outros ou sabemos muito pouco. É preciso exercer a tarefa de conhecer o outro a cada instante. Ainda mais nesse período no qual, com tantas informações, opiniões, críticas e discursos, parecemos saber demais sobre tanto – sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre certo e errado, sobre corruptos e incorruptíveis, sobre os que devem viver, como devem viver, sobre feminismo, machismo, modos de vida LGBT, sobre as fobias, sobre o que é ser isso ou aquilo, essa ou esse. E até mesmo sobre Deus, que tem sido frequentemente invocado.
Acho que, por todas essas questões, a peça BR-Trans[1], do ator Silvero Pereira e direção de Jezebel De Carli, me sensibilizou tanto. É uma peça que permite análises por vários pontos de vista e enfoques teóricos ou conceituais. Me permito escrever de forma mais livre, já que não sou uma especialista em questões de gênero, sexualidade e performance. Antes de mais nada, quero destacar o conjunto de qualidades da peça – em termos de atuação, abordagem temática, texto, direção e trilha sonora. Esse conjunto afinado faz com que os espectadores se deixem conduzir com prazer pelas veredas difíceis que a peça apresenta.
Conforme o programa entregue ao público, o espetáculo tem como “interesse temático o universo de travestis, transexuais e transformistas”. Esse é mote e seu desenvolvimento leva à discussão sobre a solidão, o preconceito, a violência e também sobre os silenciamentos, as transgressões, o brilho, as canções de amor, sobre aquilo que é cafona, mas a gente gosta, sobre o enclausuramento, a liberdade, a morte, a polícia, a família, a rua, o desejo… Junto a isso, bem como à performance do feminino, do masculino e do trans, está a problemática do marginal, da marginalidade e da margem em si. O marginal, aquele que infringe uma lei; a marginalidade, o lugar daquele que está fora do padrão, da norma, da moral ou sem acesso aos bens materiais básicos; a margem como o limiar, o portal através do qual se pode ser um ou outro. A margem aparece na encenação até mesmo nos elementos e objetos cênicos como as imagens de santos e exus protetores do povo da rua e das encruzilhadas. O corpo do performer transborda e parece perguntar: você é a si mesmo? Ou você é quem te disseram que teria que ser? Essas perguntas incluem e, ao mesmo tempo, extrapolam o tema do travestimento e da transexualidade. São questões existenciais… E as quais parecemos ainda não ter debatido de forma suficiente a fim de reconhecer a violência que perpassa nossos atos, nossas falas, nossos olhares – e o vosso olho é mau porque eu sou bom? E o vosso olho é bom porque eu sou mau? Ainda não debatemos suficientemente sequer o tema da liberdade.
Como bem nos disse Judith Butler (2015), a quem cito com frequência, é preciso reconhecer a condição precária da vida a fim de discutir uma crítica do direito à vida. BR-Trans é uma estrada, uma passagem, uma zona limiar para ser outra (o), ser a si mesma (o). Inverte as regras ortográficas debatendo a sobrevivência e o viver, a normatividade e, destaco, as proibições internas e externas que limitam as potências de vida e entorpecem a necessidade da alegria. Não poderia deixar de destacar também a importância de assistir, aqui no sudeste do Brasil, a um espetáculo vindo do nordeste, em uma temporada fora do circuito dos festivais.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra – quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
[1]Espetáculo assistido durante temporada no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte (MG).
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Elisa, lendo sua crítica, voltei lá, no espetáculo e fui de novo às ruas, no tempo de ontem quando homens que gostavam de “dar” para homens eram ” os viados”, depois foram nomeados “bichas” e hoje são “gays”,” trans”, “queer” e quantos nomes vier, porque temos necessidade de nomear e colocar na gaveta, senão não entendemos ou não existe. Mas, de qualquer forma eles se multiplicaram e estão aí, reivindicando Sol, Luz, respeito e a dignidade de existir e (e)star, direito de todos. O espetáculo é muito bom, porque além de bem feito por um ator extremamente comprometido com a causa e com o teatro,ele é urgente, necessário, quase como água e comida. Precisamos nos ver e proteger à todos. Precisamos deixar ser tudo e todos. E seu texto é bom, porque torna a nos lembrar disto.