por Assis Benevenuto
O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. (HUBERMAN, 2010:29)
Essa palavra, ruído, leva-nos a pensar em algo de fissura, em um rastro de algo maior que esteja acontecendo ou aconteceu, em falha; um ruído pode-se dar pela fricção, pelo deslocamento de algo. Som ou informação indesejada. É uma resultante qualquer, geralmente excedente e menor, mas que conduz a algum elemento ou algum tipo de informação descendente.
Antes de seguir esse pensamento, pare um pouco aí! Levante-se, leitor, siga para a janela mais próxima, tente abri-la, coloque a sua cabeça para fora e deixe o tempo passar. Experimente por uns minutos e retorne aqui__
E aí? O que viram? Foram vistos? O que se deu a ver era a realidade? Percebeu algo da paisagem que era ainda escondida por sua cegueira? Pois bem, é por essas trevas que vamos caminhar.
Ruído 01 é a mais recente proposição estética do artista Marcelo Castro, do grupo Espanca!. Eu a chamo de experimentação performática, ou um dispositivo cênico anti-teatral. Anti, não por ser contra, ao invés disso, pelo seu funcinamento que prima por um caminho da negatividade! Eu a vejo muito a favor do Teatro, um conceito dominado, esquecido em si. Sob o pretexto de ouvirmos juntos um cd inteiro e vermos a rua, nós, o público ou qualquer passante, somos convidados a, como em qualquer apreciação artística, irmos ao teatro, dedicarmos cerca de 1h hora do nosso tempo para estar com a obra. Que obra? Não há obra. Quer dizer…
Há uma arquibancada montada no fundo do teatro, onde podemos sentar e, à frente, estão as portas abertas do pequeno galpão onde vê-se a rua, a praça, o ponto de ônibus, as gentes e tudo mais que se der a ver. A música – neste dia era do chileno Nicolas Jaar – é um condutor importante da experiência. Em um volume alto, não incomodativo, não podemos escutar perfeitamente os sons vindos de fora, exterior ao teatro. Vez ou outra, ouvimos palavras, sons de carros mais barulhentos, nossas próprias risadas. Estamos na condição de espectadores e ouvintes do quê? Do espaço vazio, outrora tido como área de cena [umbral], seguinte este temos as portas abertas do teatro e o que está lá fora, todo o acaso, o devir. E há também o jogo vivo entre esses “lugares” denominados. Saímos da nossa realidade, e vamos ao teatro para ver a ‘realidade’ de onde saímos. As portas abertas fazem um quadro por onde vemos, por onde entram e saem todas as informações imagéticas, sonoras, afetivas. Como num cinema, esse quadro é o meio de edição. Há lá fora, há o dentro que é onde estamos sentados, e há o entre, a distância que nos separa e nos une. Que diferentemente do cinema, da fotografia, do teatro mesmo, esse entre é permeável, torna-se um não-lugar, ativo, que nos possibilita experimentar de outras formas esses modos expressão da arte já assimilados e assentados por nós.
A arte se faria testemunha do “acontece”, que sempre ocorre antes que sua natureza, que seu quid, seja apreensível, testemunha do que há de inapresentável no cerne do pensamento que quer assumir a forma sensível. O destino das vanguardas seria dar testemunho desse inapresentável que desampara o pensamento, inscrever o choque do sensível e testemunhar o distanciamento originário. (RANCIÈRE, 2012:142)
Ruído 01 é uma proposição viva de um dispositivo [teatral] ativado pelos acontecimentos únicos que irão acontecer, sempre. É uma esfera de potência. A qualquer momento um representante do público, um de nós, levanta-se, pega um cigarro, atravessa o limbo entre as realidades e vai até o lado de fora – a tela ficcionalizada pelo real que estamos a ver – pega um cigarro, fuma e conversa, e olha para trás, para nós. Como ser que vira-se para a medusa. Mas neste dispositivo opera-se negativamente: quem se petrifica somos nós, as medusas, impotentes com tal inversão de sentidos. O que víamos embalados pela música era uma realidade recortada pelo espaço e por nossos afetos, era um filme (ficção) individual que fazíamos. Como faz Godard em Acossado, por exemplo, quando aquela imagem das persoangens nos desejam ao olharem diretamente para câmera. Enfrentando olhares da ficção com o real, nós que vemos. Só que em Ruído 01 temos uma ficção viva, capaz de dar voltas no seu desenvolver e derrotar quem as lê/vê. Cada vez que nos é dirigido um olhar lá de fora, pelo cara que fuma ou pelos passantes que, curiosos, param e nos fitam, nos é devolvida a condição de ficcionados. Nós somos também a ficção, pois saímos de lá. O jogo inverte? Mais do que isso, Ruído 01 nos dá possibilidade perceber que as duas operações coexistem. Também nos é ofertada uma noção esquecida de que ali, dentro, somos público, mas somos seres sociais, livres, jogados no tempo, em direção ao seu próprio fim. E nesse trajeto podemos ir e vir, criar e recriar, ser e ver a ficção, uni-las.
Ruído 01 me soa como uma fresta para olhar, embalados por uma música, aquele lugar presente em todo ser que é indecifrável. Quando termina a experiência de Ruído, nós retornamos para a ´realidade´, que minutos antes era nossa matéria de ficcionalização. Um ruído que abre uma fresta para o olhar, para a ação de olhar: de dentro das cavidades oculares, nossos neurônios estão conectados ao exterior do corpo, à vida, mas nunca podemos VER o nosso próprio mecanismo, não temos essa capacidade, simples, de ver internamente a si. Como o cérebro humano, esse gênio, capaz de imaginar todas as coisas, mas incapaz de saber sua própria espacialidade dentro do crânio. Dessa forma recebi Ruído 01, como uma possibilidade de ver antes de ver. Um rasto, uma pista.
Estou ávido por outros Ruídos, mas essas foram minhas primeiras impressões deste dispositivo. As passagens de JACQUES RANCIÈRE E DIDI-HUBERMAN me serviram como fios do pensamento, mais do que um entrocamento acadêmico para se dar a escrita. Acho que, assim, citadas, soltas, elas podem iluminar caminhos [desconhecidos] do leitor. Vale uma leitura mais aprofundada de Ruído conjutamente com a idea de Huberman Ser Crânio – lugar, contato, pensamento, escultura.
Referências –
Didi-Huberman: O que vemos o que nos olha (2010); Sobrevivência dos vagalumes(2011); Ser Crânio (2009)
Jacques Rancière: El espectador emancipado (2010); O destino das imagens (2012),As distâncias dos cinema (2012)
Assis Benevenuto – Formado pelo curso técnico de atores do centro de formação artística do palácio das artes (cefar) e licenciado pelo curso de graduação em letras da UFMG. Estudou na pós graduação em Teoria da Literatura pela mesma faculdade. Desenvolve trabalhos como ator, diretor, dramaturgo, improvisador, escritor e pesquisador acadêmico. É integrante do grupo Quatroloscinco.