Crítica a partir do espetáculo violento.
– por Guilherme Diniz –
Na obra “Os Condenados da Terra”, Franz Fanon, ao meditar sobre os conflitos e opressões coloniais perpetrados no continente africano, argumenta que o processo histórico de descolonização é um fenômeno violento. O colonialismo, como estrutura político-social, é, na visão de Fanon, a violência em estado bruto, e só poderia ruir por ação de uma outra violência maior. O intelectual martinicano ainda afirma que, no movimento de descolonização, embora exista correspondência entre a violência praticada pelo colono e aquela operada pelo colonizador, ambas possuem natureza e propósito distintos. Enquanto a primeira objetiva manter a dinâmica de exploração e subalternidade; a segunda, isto é, a violência do colonizado contra o colonizador, almeja destruir um estado de coisas, refundar um território e, individualmente, desintoxicá-lo de sua condição desumanizada. Em suma, Fanon alega que a violência articulada pelos colonizados materializa, no decurso histórico, sua efetiva libertação. Esse movimento violento, de caráter anticolonial, segundo ele, gestaria “a criação de homens novos”.
Essa trama de considerações me vêm à mente ao pensar os discursos e reflexões agenciados pelo espetáculo violento., apresentado no Teatro Espanca!, em uma nova e brevíssima temporada[1]. O trabalho solo de Preto Amparo instaura uma zona movediça, na qual signos, estereotipias e imaginários sociais acerca do corpo masculino negro são incessantemente deslocados, ora dinamitados, ora ressemantizados, de modo a desnaturalizar imagens distorcidamente racistas. Nesse momento a voz de Fanon ressoa. Afinal, de qual violência estamos falando? Daquela violência estrutural, por vezes silenciosa e institucionalmente praticada pelo sistema/Estado contra corpos negros? De que maneira a estigmatização do homem negro, como bruto e violento, se converte em instrumento de regulação, controle e manipulação psicossocial? A atitude poeticamente performática de Preto Amparo suscita direta e/ou indiretamente tais questionamentos, sobretudo, ao conceber um espetáculo que tem na fisicalidade intensificada do corpo negro o seu eixo estruturante de criação.
violento. não parte de uma hesitação ou de uma dúvida – e o ponto final, seco e certeiro, no título do espetáculo, nos indica isso -, mas de uma afirmação socialmente imposta: o homem negro é um ser violento. Fanon, para dialogarmos com sua sabedoria uma vez mais, vai ainda mais longe ao dizer: “o negro não é um homem”. Bestializado, degredado de sua dignidade e rebaixado à categoria de sub-humano por ditames sócio-culturais, de um ideário racista, a imagem dos homens negros se fixa, de modo insistente, à figura da selvageria desregrada, à sexualidade ostensiva ou à brutalidade ridicularizante. bell hooks, em sua magistral obra “We real cool: Black men and masculinity” aponta para o beco sem saída, no qual vivem homens negros, cujas identidades são definidas por sistemas classistas, sexistas e racistas de dominação. Ou seja, masculinidades patriarcais modeladas sob o signo da brancura, infringindo sofrimento, dor e um angustiante isolamento mental a tais sujeitos, impossibilitados de viver a plenitude e a diversidade de suas fragilidades, belezas e singularidades afetivas.
A configuração espetacular de violento. tem diante de si uma massa enraizada de estereotipias e imaginários acerca do homem negro, e sua operação é a de rasurar, estrategicamente, estes signos, conferindo à corporeidade de Preto Amparo amplitude dilatada, por meio da qual, os discursos se presentificam. É do corpo nu, pulsante e denso que toda a articulação dramatúrgica se constrói. É agudamente cuidadosa a seleção e a manipulação dos objetos e elementos cênicos mobilizados/ativados pela atuação de Preto, cada qual ampliando ou contradizendo semanticamente as noções do que imagina ser a expressão da violência.
O primeiro objeto agenciado por Preto Amparo é um singelo carrinho de polícia, puxado por uma fina corda. Ali compreendi novamente a expressão “brincar com o perigo”. O contraste entre as dimensões do corpo e o tamanho diminuto do brinquedo complexificam a relação, criando contrapontos sutis. O carrinho de polícia abriga em sua figuração simbólica uma contradição entre o caráter lúdico do brinquedo e a violência sistemática da instituição. No contexto performático, a polícia e suas ações são o “outro”, não a norma, diz respeito a uma série de eventos, práticas e posturas que materializam um algoz social, sobretudo, das populações e juventudes negras. Em um outro momento, o brinquedo é destroçado pelo martelo de Preto Amparo. Quem ou o que é violento? A destruição do carrinho prefigura uma recusa, uma negação frontal a qualquer conformidade para com esse estado de coisas estruturalmente racista e genocida. É, em suma, não somente uma disputa acirrada de narrativas, mas igualmente uma questão de poder.
Adiante, Preto Amparo toma em suas mãos um saco de pipocas; este elemento funciona semanticamente como índice de um ato violento, extraído do real, potencializando, na performance, o seu diálogo com os rastros de um cotidiano mordaz. Um jovem negro fora morto pela polícia ao ter o saco de pipoca “confundido” com drogas. As pipocas poderiam ter sido substituídas por furadeiras, celulares, guarda-chuvas[2], não importando necessariamente o objeto trocado, quando o olhar enviesado sobre o corpo negro já pressupõe uma imagem essencialmente fixa, desfigurada e, por isso, estranha ao próprio corpo estereotipado. Preto devora o saco de pipocas em um ritmo crescente, até alcançar uma dinâmica frenética, urgente, pois o tempo é por demais escasso, como se o ator almejasse se alimentar o máximo possível de vida antes que esta lhe seja sequestrada.
Ao assistir a primeira apresentação de violento., na UFMG, quando ainda era uma cena curta embrionária, há alguns anos, discuti com Preto Amparo a dificuldade que a nudez do corpo negro enfrenta para ser efetivamente vista em sua dimensão física e formal. Isto é, as inúmeras figurações estereotípicas, reducionistas e sexuais acerca do homem negro, erigem tanto um imaginário cristalizado sobre tais sujeitos, quanto uma espécie de armadura que se cola àqueles corpos e os impedem de ser olhados para além das distorções de cunho caricatural. Nesse sentido, é como se o corpo negro nunca estivesse realmente nu, mas revestido de significados alheios ao seu próprio desejo. Vemos projeções, representações e fantasias racistas em um corpo negro masculino nu, ou sua própria presença atuante e os discursos/narrativas que ele cria a partir de si?
No espetáculo atual, Preto Amparo aprofunda a investigação cênica sobre a corporeidade negra nua, pensando-a como uma fisicalidade dinâmica, processual, e, sobretudo, enunciadora de distintos modos de apreensão da realidade, projetando-se como instância/lócus/operadora de suas epistemes. O corpo nu de Preto Amparo ao mesmo tempo em que modifica e inscreve significâncias no espaço, é também afetado por ele, pelos objetos que utiliza e pelas movimentações que concebe.
Na configuração performativa de violento. o corpo do ator se alça como desafiante de um conjunto de estereotipias, mas se doa inteiramente ao momento/experiência cênica não como ato sacrificial, mas em postura re-fundadora. Em certo momento, ele diz: “iniciar é morrer”, anunciando desde já que a construção de novas possibilidades de vida e de sentido necessitam de certas rupturas, cortes, interrupções. Fanon já nos disse que a descolonização é uma desordem. Desestabilizar estereótipos racistas e acachapantes é uma atitude que pressupõe não apenas dissolver determinadas imagens e visões de mundo, mas fundamentalmente desestruturar certos modelos de relações. Seria isso violento?
O espaço cênico é transfigurado, pela corporeidade de Preto Amparo, em território memorial, no qual o vivido, o traumático e o imaginado são reelaborados e atravessados por diversas temporalidades. Em sua atuação, Preto instala o palco como campo–terreiro que fissura o cotidiano e o agora com outros tempos e presenças, tracejando ambiências rito-performáticas, cujas reverberações trazem para o palco uma gama crítica de imagéticas simbólico-políticas sobre o ser negro. A interpenetração de elementos e mídias – projeções de imagens e textualidades; trilha sonora densa e variante em cadências, ritmos e sonoridades – perfura não apenas o instante contemporâneo com outros pretéritos, mas também reparte o aqui em múltiplas espacialidades ficcionais. A intrincada trilha de Barulhista imprime pulsações e ritmos diversos, os quais são incorporados por Preto Amparo em dinâmicas gestuais e coreográficas que sutilmente remetem a um transe ou a alguma experiência mística.
Há uma passagem especialmente significativa no espetáculo: o momento em que Preto Amparo mergulha abruptamente sua cabeça em um balde de água, mantendo-a submersa por alguns instantes para, logo depois, repetir o movimento e se banhar. Em minha compreensão, a água neste contexto é disparadora de uma profusa carga semântica, cultural e histórica, ao termos em mente as travessias oceânicas dos corpos negros. Paralelamente, a submersão na água alude a uma violência/agressão, mas também a uma renovação/recriação, ao vermos Preto Amparo despejar toda a água sobre o seu corpo a fim de banhar-se. Pela água, a dinâmica morte-vida, violência/recriação se incrusta no corpo negro que, no movimento diaspórico, se refez culturalmente, se reterritorializou noutras terras. “Iniciar é morrer”, disse Preto Amparo.
Outro elemento estruturador de violento. reside na complexa interlocução com o real, o cotidiano e seus sentidos. Além de se configurar de modo performático, delineando, nesse sentido, uma fenda na ideia de representação, violento. articula, em seu desenvolvimento, resíduos e/ou fragmentos de eventos, extraídos de nossa realidade social brasileira, tais como o uso de projeções de imagens de Marielle Franco, Mestre Moa do Katendê e Evaldo Rosa dos Santos, assassinados por uma necropolítica, estruturalmente racista, que materializa, no genocídio de corpos negros, uma plataforma política e um projeto de nação; a manipulação de objetos, como o saco de pipoca e o carrinho de polícia que evocam uma história contemporânea de violência já fixado à normalidade diária de uma sociedade; e, por fim, o próprio fato de violento. se iniciar na rua, onde Preto Amparo caminha, penetrando na paisagem urbana e no vozerio citadino. O real na cena de violento. não se limita à presença destes fatores citados, mas no próprio modo pelo qual Preto Amparo encara e desmantela os estereótipos sociais lançados contra seu corpo retinto e nu, sobrepujando-os. A sabedoria de Fanon, mais uma vez nos orienta:
“O colonizado descobre o real e transforma-o, no movimento de sua práxis, no exercício da violência, em seu projeto de libertação” (p. 44)
Portanto, em sua constituição cênica, mais do que retratar traços da realidade, violento. toma o real como urgência e condição, mas não como fatalidade, numa acepção determinista. É no/pelo real – e aí está uma grande força desta performance – que a desnaturalização e o desmantelamento de seus significados e práticas se dá. O debruçar-se ativo sobre o real (diferentemente de realismo), conforme o pensamento de Franz Fanon, pode engendrar as vias de libertação, entendida aqui, como emancipação estética e política de estruturas desumanizantes. Por isso, a importância, em violento., de se pensar possibilidades poéticas do corpo negro e masculino nu, em sua dilatada e afirmativa presença. Os contornos dramatúrgico-performáticos de violento. tecem, de modo substancial, aquilo que Leda Maria Martins visualiza como desejo no histórico Teatro Experimental do Negro, isto é: uma reficcionalização da persona/signo/ negros como corpo de memória e saberes, retraduzindo o termo negro como uma episteme, e não uma lástima ou lamento.[3]
Já nos derradeiros momentos, Preto Amparo oferece uma flor a algumas pessoas negras da plateia, se aproximando delicada e silenciosamente de cada uma delas para lhe conceder o singelo presente. Preto olha, reconhece e compartilha este instante sem qualquer pressa. Ambos ficam ali se contemplando, num misto ora de surpresa e carinho, ora de confiança, mas também por vezes um sutil desconforto. Esta cena é especialmente significativa, pois a performance propõe uma reorganização das ausências/presenças. Ou seja, ao conceder as flores somente às pessoas negras, violento. não apenas potencializa uma relação afetiva entre dois corpos que partilham alguns traumas e ferimentos em comum, mas toma a presença destes corpos negros em elemento/força motriz de convivialidade cênica. violento. propõe um abalo simbólico na noção de totalidade/onipresença da branquitude, pois naquele momento ela é o outro, não se configurando como norma ou centro. Esta construção performativa nos possibilita pensar em outros modos de enxergamos as ausências e as presenças, no sentido não apenas daquilo/daqueles que não estão fisicamente no mesmo tempo-espaço, mas no que concerne aos sentidos, visibilidades e transformações substanciais que estes corpos negros provocam. Acompanhemos as reflexões de Leda Martins acerca do público nas manifestações das cenas negras:
Assim sendo, o espectador torna-se um dos signos motores da representação, que reflete e é refletido em um discurso que, simultaneamente, o evoca e é por ele evocado, pois a linguagem cênico-dramática movimenta a experiência e a memória coletivas. (1995, p. 86)[4]
Fanon, como já mencionado, afirma que o processo de descolonização é não somente violento, mas cria seres humanos novos. violento. deseja também desestruturar, radicalmente, imagens e estereótipos já impostos a homens negros, a seus corpos, a sua nudez, operando modos performáticos de reumanizar subjetividades desfiguradas pelos mecanismos racistas. Podemos pensar esse movimento como um processo de descolonização também. E é violento na medida em que rompe, sem conciliações, com imaginários já instituídos. A violência aqui se recobre de outras semânticas, não se reduz ao lugar-comum estigmatizado pelo racismo; diz respeito a uma urgência criadora, à necessidade de um diálogo sobre fragilidades e a afirmação de vidas (vidas negras, vidas de homens negros) constantemente em risco, embora pulsantes.
Como transformar o ódio ou o desejo de vingança em potência criativa é um complexo questionamento estético-político que violento., em sua poética performática, nos convida a pensar.
[1] O espetáculo se apresentou nos dias 18 e 19 de abril.
[2] https://www.almapreta.com/editorias/realidade/conheca-6-objetos-que-a-policia-achou-ser-uma-arma-na-mao-de-um-negro
[3] Estas e outras reflexões estão presentes no artigo: A Fina Lâmina da Palavra.
[4] Da obra: A Cena em Sombras.