Por Soraya Belusi
“Ela (a arte) é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado t empo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras.” (Jacques Rancière – Política da Arte)
“Academia de Malvadas: Matrículas Abertas”, do Oh Ladies! Group (BH), propõe ao público testemunhar um ritual-manifesto-cômico-subversivo-macabro em que a questão do feminino desdobrada em problematizações sobre o corpo, o desejo, a arte e a política. A cena parte da imagem consolidada da bruxa e da princesa, como antagonistas do bem e do mal, do certo e do errado, para ao longo de 15 minutos levar a desconstrução dessas convenções até às últimas consequências.
A encenação e a dramaturgia partem do universo ficcional e cultural dos contos infantis para desembocar em referência direta ao real (entre elas, a movimentos como os Panteras Negras, os Black Blocs, a banda russa Pussy Riot e a Marcha das Vadias), construindo-se como um protesto-cênico em que as reinvindicações estão não apenas no que se diz, mas impregnada nos corpos, que, de objetos mercantilizados de desejo do outro transformam-se em ato de afirmação, instrumento revolucionário.
O trabalho atinge essa dimensão de arte como política não apenas por seu discurso textual, mas pela forma que optou por dar-se-ver, apropriando-se dos formatos pasteurizados da cultura de massa para deles extrair o que têm de mais subversivo, no sentido de contrair a norma estabelecida no que concerne às regras do comportamento, da beleza e do gênero.
As referências aos desenhos animados e contos infantis da Disney subvertidos em uma estética queer, pautada pelo excesso e pelo grotesco, comparável ao humor de um videoclipe dos Twisted Sisters ou ao poder provocativo No limite do politicamente correto e do mau gosto do artista polonês Zbigniew Libera e suas obras como o “You Can Shave the Shave Baby” as camas de parto transformadas em carrinhos de bebê ou suas Barbies com as tripas para fora.
O real aparece não apenas como citação, mas como materialidade, com a presença das duas crianças em cena, desestabilizando de vez os espectadores que, por um acaso, ainda estivessem presos ao plano da ficção, sublinhando a cada segundo que não se trata apenas de uma historinha infantil com final infeliz.
O real, o político e o excesso também são elementos que se fazem notar na composição de Freaking People, do Grupo Dois Pontos (BH), assim como as noções de estereótipo e radicalização, como na cena cita acima. Aqui, porém, o discurso construído pelos três personagens e a maneira como eles são levados para a cena apenas reproduzem o real, sem problematiza-lo, descontruí-lo, negá-lo de fato. É como se a cena apenas constatasse, e reproduzisse em tom caricatural, a existência de pessoas capazes de acumular preconceitos de todas as ordens.
Não há no trabalho nenhuma subversão da ordem ou da linguagem. Apenas exibe-se, e carrega-se na tinta, as imagens do prefeito despreparado e intolerante, do apresentador de televisão escroto e da produtora/artista afetada e incompetente.
A vida dele se enfartou e ele teve um ataque de lirismo!”
(Grace Passô – Por Elise)
Futuro de um Pretérito, da Cia. Corda Bamba (BH), e Estudo Número 1, da Cia Armazém (RJ), também permitem algumas aproximações por trabalharem, cada uma à sua maneira, índices como a representação com referências mais realistas e uma abordagem sobre o universo da loucura.
As duas cenas fazem do espectador testemunha de uma noite em um hospital (em ambos os casos, aparentemente um local de tratamento psiquiátrico/neurológico). Futuro do Pretérito, embora tenha dois atores em cena, opta por estruturar-se basicamente como um monólogo, no qual um homem prestes a morrer e, pelos trejeitos gestuais, como problemas de saúde mental, é tomado por uma reflexão acerca de suas escolhas durante a vida, numa tentativa filosófica de questionar os limites da lucidez e da loucura.
Na tentativa de constituição naturalista da atuação, a cena abre mão de investigar momentos de ruptura com a linguagem da dramaturgia e da encenação (como acontece brevemente em dois momentos da cena: da projeção sobre o corpo do ator e da cena final), apenas reafirmando a dualidade instalada no imaginário do coletivo do louco como um estranho ou como o gênio incompreendido.
Estudo Número 1, embora também tenha a noção de loucura ou delírio como um de seus elementos, parece não se prender somente a ela, trazendo para a cena relações de poder, de ganância, de disputa e desprezo pelo outro. A configuração do espaço parece propor, assim como a dramaturgia, três planos intransponíveis, com os focos de luz fixamente delimitando os lugares de seres que habitam o mesmo ambiente, mas sem nunca se cruzar.
Os núcleos dos médicos, enfermeiros e paciente são estanques no espaço, porém todos eles são deslocados na dramaturgia da imagem convencional e idealizada que se possui deles. É como se, por trás das aparências, nas madrugadas de um centro cirúrgico qualquer, aqueles que deviam curar na verdade se entretém com doses de alegria passageira para amenizar as suas próprias doenças, entre elas, o desejo de status e poder; ou ainda que, assim como Hamlet, é justamente no seu delírio mais profundo que o paciente assume as rédeas de sua sanidade.
Como diz o próprio título, a cena da Armazém parece de fato ainda apresentar-se como experimento, uma obra em processo, inacabada, não no seu acabamento estético ou artístico, com a visualidade sempre competente das encenações de Paulo de Moraes, mas, sim, no entrelaçamento dessas várias vozes sociais e humanas que a dramaturgia parece querer problematizar.