Crítica a partir do espetáculo Quem é você? da Toda Deseo (Belo Horizonte/MG).
– por Clóvis Domingos e Gustavo Moreira Alves-
Todos nós nascemos nus. O resto é drag.
RuPaul Charles
O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Mas, para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábito, por mais afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora (…) cada encontro com uma nova turma de estudantes, para não falar de um novo chefe, assistente social, gerente de banco, senhorio, médico, constrói novos armários cujas leis características de ótica e física exigem, pelo menos da parte de pessoas gays, novos levantamentos, novos cálculos, novos esquemas e demandas de sigilo ou exposição. Mesmo uma pessoa gay assumida lida diariamente com interlocutores que ela não sabe se sabem ou não.
Eve Kosofsky Sedgwick
Ao sabor dos contos de fada, Quem é você?, a mais nova produção da Toda Deseo, é a história de um recém-nascido largado numa vila lendária. Ali, os vilões (no sentido de aldeões e de malignos) trajam figurinos como os dos séculos que precederam a Revolução Gloriosa na Inglaterra. Eles uivam para lembrar que “o homem é o lobo do homem”, como disse Thomas Hobbes no Leviatã, uma das obras da formulação intelectual do período. E estão simultaneamente insuflados da condenação inquisitorial das diferenças, em espírito feudal que mesmo as bandeiras burguesas de igualdade, liberdade e fraternidade, pelo caráter contraditório, não foram capazes de destroçar.
São as diferenças, ainda não explícitas, que os vilões censuram quando se deparam com o bebê, ao enfim descobrirem de onde vem o choro. Uma bruxa, igualmente vítima dos julgamentos daqueles lobos, se interpõe. Montada no desmonte, trata-se de uma mulher que apenas mora sozinha, como as que foram condenadas segundo as recomendações da cartilha O martelo das feiticeiras. Qualquer semelhança com a atualidade conservadora no Brasil e no mundo não é mera coincidência. Daí não ser estranho a dificuldade de impedir que resolvam atirar o recém-nascido do penhasco, referência histórica aos ditos “deficientes” (na verdade pessoas com algum tipo de diferença e/ou limitação) que eram descartados por civilizações para lá de atrasadas. Mas na queda, a criança se amortece numa teia de aranha, e, numa transição lúdica, vai parar presa no armário. Aí tanto a teia de aranha quanto o armário formam a grande alegoria da proteção, do gueto e das amarras contra a sociedade tecida por conflitos, da vida ameaçada e sempre à beira do precipício.
É papel da iluminação, no espetáculo, estender essa realidade para além das portas e muros que fecham o ambiente até a quarta parede. Do fundo do palco, atrás do cenário composto como teia de aranha, os refletores se projetam no público. Na frente do cenário, os braços dos atores lançam sombras que formam as oito patas da aranha na plateia. Está tudo dominado.
O lirismo metafórico é um convite ao prazer da decifração, em que o pensamento se movimenta para a diversidade de hipóteses: aranha e lagarta (ou será “largata”, homófono de “largada”, considerando-se a quase irrisória substituição da consoante linguodental não vozeada pela vozeada) não só alegorizam as mães solteiras ou avós como chefes de família tão comuns na sociedade (bruxas?), mas também remetem aos pelos nascentes e à viscosidade genital que marcam a passagem hormonal da infância para a vida adulta (aí conseguir dizer lagarta em vez de largata também denota a transição, sempre dolorosa e a deixar marcas). É um modo engenhoso de a encenação narrar a passagem de tempo e a mudança de espaços.
O bebê, agora crescido, decide sair do armário contra a vontade da mãe-aranha, vencendo a interdição dela frente ao perigo externo. Não só explícita no texto, a preocupação aracnídeo-materna aparece ainda cifrada nos oito olhos vermelhos (paralelismo com os quatro pares de patas?), e nas múltiplas vozes assustadoras, enunciado também da coletivização da figura social ao mesmo tempo opressiva e protetora. A fome dela é menos a fome de quem quer devorar o filho do que a fome da miséria a que está submetida, porque fora do armário se corre o risco de serem esmagados.
Nesse processo, o jovem ainda sem nome, decidido a desbravar o mundo, conhece Biba. Ela também sai do armário, onde tinha proteção de uma lagarta em vez de uma aranha. Os dois se identificam tanto, em meio a divertidíssimas coincidências, que o anônimo resolve se nomear igualmente como Biba. Essa duplicação de personagem, presente também em espetáculos como Happy hour, do Mayombe, e Classe, do Mulheres Míticas, é chave onírica do expressionismo para a percepção de uma figuração social. Por isso, em Quem é você?, a homonímia das Bibas estabelece outro tipo de identificação, diferente daquela atacada por Brecht.
A identificação entre as Bibas suspende a premissa na qual o indivíduo luta pra vencer na vida de acordo com as prescrições pseudomeritocráticas do mundo liberal (o que em termos de teatro se traduz como o personagem que disputa posição social e derivações dessa posição no desencadear da ação dramática). Em Quem é você?, o homem não é, afinal, “lobo do homem”, por isso a jogada é épica: não são indivíduos singulares em conflito entre si, mas figuras com caracteres que se abstraem de todo um grupo e assim enunciam condicionamento, fator esse que leva ao choque contra as forças sociais repressoras. Não é à toa que a identificação acontece no palco, identificação que se estende ao espectador em sentido político.
Daí então as Bibas deliciosamente identificadas saem para a vida urbana. A transição para o mundo moderno, mesmo que marcada pela sonoplastia de automóveis, mantém “noite escura, céu sem estrelas, tempo virado, graça nenhuma”, isto é, o atraso feudal ainda como norma que aparece caracterizada em série nos discursos de vários personagens e também pelo figurino algo clerical que esconde os seus rostos.
Já as Bibas não se protegem por trás de uma máscara medonha, nem usam o figurino uniformemente acinzentado como os carros que têm valor de troca no mundo da mercadoria. Ilustre-se de modo simplificado os conceitos de uso e troca na teoria do valor: o valor de uso de uma casa se definiria pela demanda que atende, qual seja, abrigar com conforto. Já o valor de troca se baseia naquilo que o mercado valoriza: isto é, vende-se com preço mais elevado uma casa estruturada no padrão de três quartos, por exemplo, para abrigar uma abstração de família tradicional. Para o uso de uma pessoa que pensa em construir para morar sozinha, não faria sentido uma casa de três quartos, mas o vislumbre de eventual troca estimula a especulação. Como diz David Harvey, referência nos estudos de Marx, “em todos os lugares, o valor de troca é o mestre e o de uso, o escravo. É nesse contexto que se torna imperativa a revolta da massa da população contra o acesso inadequado a valores de uso fundamentais”.
Trazemos tal discussão no contexto desse espetáculo, pois é o valor de troca que justifica a homofobia, quando uma cortina de arco-íris visível para a rua desvaloriza um apartamento; justifica também o racismo, quando a cor de pele de moradores de uma região, determinante de classe, atrapalha o encarecimento dos imóveis próximos. Por isso a expulsão dos trabalhadores, opostos aos especuladores, para regiões periféricas.
As Bibas, abertas às cores e à inventividade, não escondem o que são, e por isso são tolhidas em todos os gestos, incluindo os que combinados formam as pantomimas de dança. As figuras não têm conflito: o conflito é antes imposto pelos que reproduzem o próprio conflito. As cadeiras em que as Bibas se sentam, onde a depender do gênero, se prescreve a perna aberta ou cruzada, inclusive remetem à lógica prisional escolar. Daí para o julgamento social – alegorizado como um tribunal à maneira de O processo de Kafka, com juízes de figurinos ainda mais explícitos no estilo impositivo da Igreja, assistimos uma cena na qual todos estão perdidos na burocracia e no “juridiquês pseudointelectual” – é apenas um passo que continua a remeter à mesma lógica. Os espectadores chamados a participar do julgamento, mesmo depondo a favor das Bibas, não servem de nada individualmente para que a estrutura social repressora dê seu veredicto condenatório.
Se as Bibas não querem, cada uma por seu turno, ser o príncipe ou a princesa, isto é superação que reconfigura os contos de fada, uma das ruínas desta última parte da Trilogia do Desmonte, tríade de espetáculos da Toda Deseo que começou com Nossa senhora do Horto, passou por Glória e desembarca aqui em Quem é você?
Espetáculo para todas as idades
O acabamento técnico dos elementos de cena está bem cuidado. Além disso, como se pôde verificar, a escolha por figurinos que fazem trânsito histórico, a utilização de metáforas que dão a passagem de tempo e de caracteres coletivizantes que marcam enunciado social, num conjunto que atesta a complexidade narrativa da materialidade do espetáculo e o sucesso na condensação da variedade de conteúdos a se comunicar. Essa condensação auxilia na duração suave do espetáculo, de três quartos de hora, e que consegue produzir significativa possibilidade de reflexão crítica, além de divertir o público infantil.
Como se tenta argumentar com esta crítica, Quem é você? estimula o prazer, tanto de crianças e adolescentes como de adultos, e até mesmo da “criança viada”, agora velha, podendo assim talvez ser curada e que sonhava ter tido o prazer de assistir à um espetáculo desses em seus tempos de escola. Ver a “cultura da fechação” em cena, nas suas formas mais comicamente sublimes, resgata mnemonicamente um tempo em que depois de toda uma vida de opressão se torna possível se reconhecer ali de um modo alegre e afirmativo.
A cultura da fechação – definida por Jurandir Freire Costa como exacerbação dos estereótipos que denuncia a artificialidade de gênero assim como excesso no teatro de Brecht que desaliena da ilusão – é marca da Toda Deseo, e que não poderia faltar em Quem é você? No final do espetáculo, a pantomima antes tolhida ganha o foco da cena inclusive na versão bate-cabelo. Com a cumplicidade das Bibas que ousam dizer seu nome, quem até hoje sofre constrangimento de pôr a cara no sol por ser taxada como bruxa pode vislumbrar no público a necessidade de transformação para além do espaço do teatro.
Isso tudo é fruto de um espetáculo que não se contenta com o “era uma vez” do tempo lendário, antes introduzindo nesse tempo a dimensão histórica. De um espetáculo que muito menos se encerra com um ilusório e perverso “e foram felizes para sempre”. Trata-se de mais um modo de romper com as prescrições aristotélicas de nó e desenlace, ainda resistentes na ideologia do drama, que encerram tudo em ilusão deslumbrada e burguesa, e mais, desconectada da realidade social. O flashback final, em que a dita bruxa se narra humana e diz que desta vez, na recontação, não haverá penhasco abaixo, é já o horizonte de transformação do mundo. Sim: outro mundo é possível.
Pontos de vista diferentes ou debate crítico
Só se faça uma ressalva: para crianças menores, que ficam com medo, talvez fosse produtivo tentar explicitar melhor as engrenagens. Medo é identificação no mau sentido, sensação difusa da ilusão sobre a realidade, e isso só se desfaz, para os mais pequenos até para os mais velhos, democratizando a técnica: mostrando que o teatro é teatro (pegando pelo braço, levando para trás das coxias, ou utilizando mais recursos de distanciamento em cena). Aqui um ponto precisa ser demarcado: se para um dos críticos a questão do medo pode ser uma questão importante na recepção infantil da peça, para o outro autor, a sensação de medo também pode ser um afeto positivo desde que se desenvolva outras possibilidades de destinação. Vale também lembrar que o medo é afeto recorrente na história daqueles que são discriminados socialmente e lidar com ele faz parte de uma estratégia de sobrevivência e reexistência. Só se vence o medo o enfrentando. (Sobre esse tópico, há também apontamentos na crítica de Ana Luísa Santos publicada aqui: https://www.horizontedacena.com/otima-peca-infantil-em-cartaz1/)
Se por um lado, no espetáculo, não haveria a defesa de uma identidade fixa das personagens, por outro, haveria a busca de identificação coletiva para uma superação das adversidades: Biba não é João nem Maria, é uma outra coisa. Assim, munidos da identificação política estimulada por Quem é você?, com a assertiva de que a união faz a força, os críticos, que também são Bibas, esmiúçam aqui juntos diversos pontos do espetáculo. Eles sabem que a cooperação é tão produtiva quanto a concorrência é estéril, não acreditam que “o homem é o lobo do homem”, daí a decisão e produção desse ensaio crítico escrito de forma colaborativa.
A aranha solitária trama sua teia. A Toda Deseo tece sua rede humana e sensível pela força dos encontros e de forma lúdica e inteligente amplia sua estética para um público bem maior e diverso, compreendendo que através do teatro, como forma de diálogo e convívio, podemos ver e ler o mundo sob outras lentes.
Ficha técnica:
Direção: Mariana Lima Muniz
Dramaturgia: Raysner de Paula
Elenco: David Maurity, Ju Abreu, Nickary Aycker, Rafael Lucas Bacelar, Ronny Stevens e Thales Brener Ventura
Figurino: Silma Dornas
Cenografia e registro audiovisual: Alexandre Hugo
Preparador corporal e assistente de direção: Thales Brener Ventura
Preparadora vocal: Rainy Campos
Trilha sonora: Manu Ranilla
Iluminação: Akner Gustavson
Designer gráfico e cenógrafo assistente: Túlio Colombo
Assessoria de imprensa: Larissa Scarpelli
Gestão e produção: Érica Hoffmann
Realização: Toda Deseo
Gustavo Moreira Alves é jornalista formado pela PUC-Minas, graduado em letras pela UFOP e mestre em artes cênicas também pela UFOP. Atualmente está no doutorado em estudos literários da UFMG, com uma pesquisa em teatro político e psicanálise. Vem publicando críticas e experimentos literários no blog Pensamento em Cena: pensamentoemcena.blogspot.com