Crítica do espetáculo Babilônia Tropical – A Nostalgia do Açúcar, que fez sua estreia nacional no Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte (CCBB BH), em maio de 2023.
– Por Julia Guimarães –
“Como olhar para o passado sem reparar que os pilares do país foram sustentados pela escravidão?”. Essa é a pergunta que atravessa o espetáculo Babilônia Tropical – A Nostalgia do Açúcar, em cartaz no CCBB BH até 5 de junho, cuja estreia nacional ocorreu em Belo Horizonte, na semana passada. Em consonância com uma série de criações cênicas recentes que têm buscado revisitar a história sob um olhar crítico e reflexivo – sobretudo no que se refere ao próprio lugar da representação artística –, Babilônia Tropical explora a contradição como mote para investigar os significados da colonização e da escravidão no Brasil.
A obra parte de um recorte bem específico. Trata-se da história de Anna Paes (ou Ana Pais), uma portuguesa, proprietária de um engenho de açúcar em Pernambuco, que ficou conhecida por ter enviado um peculiar bilhete ao aristocrata neerlandês Maurício de Nassau, presenteando-o com seis caixas de açúcar quando ele chegou ao Brasil. À primeira vista, o que presenciamos em cena é a tentativa de imaginar, com a ajuda de documentos e informações históricas, quem teria sido essa mulher e que lugar ela ocupava na sociedade de sua época.
Foto: Julia Zakia
No entanto, não é apenas sobre Anna Paes que o espetáculo discorre. Mas, principalmente, sobre as tensões incontornáveis no que diz respeito à decisão de levar à cena uma protagonista escravocrata do Brasil Colônia. Na peça, as personagens da trama (representadas pelos atores Carol Duarte, Jamile Cazumbá, Ermi Panzo e Leonardo Ventura) vivenciam, de forma metalinguística, o próprio ensaio de um espetáculo sobre Anna Paes. Com trilha sonora concebida e executada ao vivo pelo músico Adriano Salhab, além de projeções, no fundo do palco, de documentos históricos e imagens dos próprios atores sendo banhados por açúcar, a montagem explora um registro de atuação cotidiana, de modo que o duplo ator-personagem pareça, por vezes, se confundir, o que colabora para chamar atenção aos próprios corpos que ocupam a cena.
Nas entrelinhas da dramaturgia, concebida pelo diretor do espetáculo, Marcos Damigo, e pelo ator angolano residente no Brasil Ermi Panzo, o que surge é a forma de uma peça-ensaio. Ou seja, uma criação que gira em torno da própria pergunta sobre como levar essa história para a cena. Presente em muitas encenações atuais, justamente por favorecer a partilha, com o público, de uma reflexividade processual e duplicada sobre os temas tratados, a opção metalinguística de fazer da obra o seu próprio ensaio aparece como gesto propício ao desafio de enfrentar o problema da representação no atual momento histórico brasileiro. Especialmente em um contexto no qual a chamada crítica decolonial busca atuar precisamente nos pontos cegos, apagados e recalcados da dita história oficial, além de identificar suas reverberações no presente.
Inicialmente, o espetáculo caminha no sentido daquilo que se espera dele, a considerar a sinopse e o provocativo subtítulo. Em uma cenografia que pode ser vista tanto em seu sentido mais literal – um amontoado de papéis amassados que representa as incansáveis tentativas de redigir o tal bilhete para Nassau – ou mais simbólico – como uma espécie de escultura amorfa branca que parece escorrer pela mesa de Anna Paes e indicar certa presença excessiva da branquitude naquele espaço –, o elenco reflete sobre quem teria sido essa “desenvolta mulher”, segundo relatos da época. Uma personagem histórica que ocupou lugares de poder e teve atitudes pouco habituais para o período em que viveu, especialmente por se tratar de uma mulher. Alguém que desfrutou, provavelmente, de uma condição de relativa liberdade para os padrões de seu tempo.
Foto: Julia Zakia
No entanto, especialmente a partir de considerações das personagens negras presentes na montagem, são evidenciadas as limitações éticas, políticas e artísticas presentes na escolha de apenas retratar essa personagem sob um viés (que aqui poderia ser lido como feminista) de uma suposta “liberdade”. Pouco a pouco, diversos comportamentos das personagens brancas no ambiente dos ensaios surgem criticados e desnaturalizados pelos seus companheiros de cena. Simultaneamente, há uma reflexão coletiva acerca do colonialismo do período retratado, a partir da relação entre a monocultura do açúcar, a escravidão e o advento do capitalismo.
Pela situação teatral explorada, a dramaturgia ganha contornos de uma peça de ideias. Uma tensão se instaura, motivada pelas diferentes perspectivas de cada personagem. Em algumas passagens, essa tensão surge pouco nuançada, apenas reproduzindo debates genéricos, reiteradamente repetidos nas redes sociais, por vezes redutores em sua argumentação. Já em outras, a forma dialética da situação dramatúrgica colabora, de fato, para concretizar um dos objetivos que aparece no release do espetáculo: fazer da obra uma evocação coletiva para “que juntos possamos queimar os ‘engenhos de açúcar’ presentes em cada um de nós”[1].
A partir dessa premissa, dois caminhos cênicos ajudam a potencializar os questionamentos acerca da colonialidade brasileira, do racismo e do privilégio branco que insistem em se perpetuar. Numa das vertentes, seria possível pensar em uma espécie de historiografia performativa[2], na qual a pesquisa histórica é transmitida sob o enquadramento de uma perspectiva teatral. Nas conversas entre as personagens, surgem informações relevantes para se compreender o período tratado e seus reflexos na atualidade. Por exemplo, quando o nascimento do capitalismo é relacionado ao perfil das companhias comerciais de Portugal e da Holanda que invadiram o Brasil nos séculos XVI e XVII. Ou, ainda, quando somos lembrados de que, atualmente, quase um quarto do açúcar consumido no mundo ainda é produzido em nosso país e que o trabalho análogo ao da escravidão segue sendo uma realidade em diversos setores produtivos, inclusive na indústria açucareira.
Há também, nessa junção entre teatro e história, uma série de informações que colaboram para nos aproximar do período retratado, além de escapar de lugares-comuns das narrativas historiográficas tradicionais. É o caso da passagem em que as personagens especulam sobre as supostas razões para a adesão de Anna Pais aos holandeses, sob o argumento de que uma mulher de sua época possivelmente teria muito mais liberdade em uma província dominada por estes últimos do que pelos portugueses. Para embasar a hipótese (e vale sublinhar que o espetáculo contou com apoio da Embaixada dos Países Baixos, o que traz uma camada a mais de significado a essa cena), as personagens comentam que, na Holanda do século XVII, não apenas era possível a uma mulher ser escritora como também havia um popular manual de educação sexual que descrevia, já naquele período, o clitóris como órgão de prazer.
Ainda que relevantes para a compreensão dos valores daquela época e dos significados da colonização holandesa no Brasil, tal especulação acerca da subjetividade de Anna Paes é, em seguida, questionada por uma das personagens negras: “Não vou ficar dando palco pra inimigo, essa mulher era escravocrata!”, comenta. O que nos leva a indagar, não apenas no contexto ficcional, mas no projeto em si do espetáculo, em que medida é legítimo usar a cena para se especular sobre a biografia de uma escravocrata, ainda que emoldurada pelo gesto metacrítico presente na dramaturgia.
Relacionado a esse gesto, um segundo caminho que aparece na montagem para lidar com essas questões – e que já foi explorado em outras obras também de São Paulo, como Terror e Miséria no Terceiro Milênio, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos – é a construção de cenas que revelam lugares mais oblíquos do racismo, justamente por parte daquelas personagens que se veem como artistas “antirracistas”. É o caso, por exemplo, da cena em que a personagem do ator branco reclama dos motoboys da cidade para, instantes depois, propor recorrer a eles a fim de realizar uma compra. Ou quando é lembrado que, em sua pesquisa histórica para a construção do espetáculo, leu e citou apenas homens brancos.
No momento histórico atual, o teatro tem sido um dispositivo relevante para amplificar, desnaturalizar e criticar certos comportamentos que, mesmo sob uma perspectiva progressista e antirracista, na prática acabam por reiterar, ainda que de modo inconsciente, certas lógicas assentadas sobre o racismo e o privilégio.
Uma vez que há, atualmente, uma percepção coletiva cada vez mais aguda e crítica acerca da escravidão e de seus atuais desdobramentos para se compreender a sociedade brasileira do passado e do presente, parece legítimo que a instituição teatral – essa que historicamente funcionou como um dos pilares do colonialismo – seja habitada por criações que explorem tais problemáticas de modo produtivamente didático (no melhor sentido dessa palavra), a fim de colaborar para disseminar certa reflexão auto e metacrítica acerca desses temas.
Foto: Julia Zakia
É certo também que tais tentativas, especialmente quando idealizadas e protagonizadas por quem não vivencia habitualmente o lugar da opressão racial, corre um risco permanente de incorrer nos mesmos vícios que almeja combater. E essa talvez seja a contradição mais complexa de Babilônia Tropical.
Ao performar certa polarização, por vezes maniqueísta, de um nós-eles entre as personagens brancas e negras da peça, além de investigar as personagens históricas negras somente nas cenas finais do espetáculo, é possível se perguntar em que medida a metafórica “queima dos engenhos de açúcar” em cada um é, de fato, alcançada na obra. Por outro lado, ao valorizar o teatro justamente como dispositivo para espelhar, ampliar e duplicar as contradições que o circundam, o espetáculo chama atenção, afinal, para o próprio entorno no qual ele acontece.
A ocasião em que assisti Babilônia Tropical era uma sessão de pré-estreia fechada para convidados no CCBB-BH. Seja na plateia ou no coquetel que ocorreu logo após a apresentação, havia pouquíssimas pessoas pretas e uma grande maioria de convidados brancos, dentre os quais me incluo (e considero, nesse ponto, relevante também racializar o lugar de escrita dessa crítica, ao me identificar aqui como uma mulher branca). De algum modo, o contexto imediato circunscrito ao marco institucional da apresentação colaborou para trazer uma camada a mais de complexidade à contradição exposta no espetáculo. Ainda que, na obra, o movimento seja o de progressivamente revisitar a história sob a perspectiva das pessoas escravizadas, tal gesto em alguma medida se enfraqueceu diante do contraste com o próprio contexto que emoldurou aquela apresentação.
Novamente, seria possível aqui resgatar a afirmação feita pelo produtor do espetáculo Gabriel Bortolini e atualizá-la sob a forma de uma pergunta: “o que é necessário fazer para que juntos possamos queimar os ‘engenhos de açúcar’ presentes em cada um?”. Ainda que Babilônia Tropical fale mais sobre habitar do que superar as contradições, é no gesto de refletir – sob uma estética de espelhamentos e processualidades – sobre a reiteração do racismo no próprio âmbito da criação artística e de seus mecanismos mais naturalizados que o espetáculo dá passos significativos para evocar essa queima coletiva, sobretudo junto àqueles que estão historicamente vinculados à posição de opressores.
FICHA TÉCNICA
Marcos Damigo – idealização e direção geral
Ermi Panzo e Marcos Damigo – dramaturgia
Gabriel Bortolini – direção de produção
Carol Duarte, Jamile Cazumbá, Ermi Panzo e Leonardo Ventura – elenco
Lúcia Bronstein – interlocução artística e stand in de Carol Duarte
Adriano Salhab – direção musical e música ao vivo
Wagner Pinto – iluminação
Simone Mina – direção de arte
Glaucia Verena – preparação vocal
Pat Bergantin – preparação corporal
Jack Stephanski e Vi Muriel Silva – assistente de direção
Luiz Schiavinato Valente e Vi Muriel Silva – assistentes de produção
Nina Bittencourt – produção local
Sandra Nascimento e Lucas Ávila – assessoria de imprensa
Rafa Saraiva e Mila Cavalcanti – programação visual
Luiz Valente, Mayara Santana e Rafael Tenório – redes sociais
uma produção REPRODUTORA
[1] A afirmação é do produtor Gabriel Bortolini.
[2] FABIÃO, E. B. Performance e história: em busca de uma historiografia performativa. In: Pelas Vias da Dúvida: Segundo Encontro de Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Artes do Estado do Rio de Janeiro, 2., 2012, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de Janeiro: PPGAV, 2012. p. 46-56.