Crítica da peça “Muito barulho por quase nada”, do grupo Clowns de Shakespeare ::: Por Daniele Avila Small – Revista Questão de Crítica :::
Abrindo os trabalhos da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, realizada pela Cooperativa Paulista de Teatro, a peça Muito barulho por quase nada, com o Grupo Clowns de Shakespeare, foi apresentada no Centro Cultural São Paulo. Com direção de Fernando Yamamoto e Eduardo Moreira e elenco formado por Camille Carvalho, Dudu Galvão, João Ricardo Aguiar, Joel Monteiro, Marco França, Paula Queiroz e Renata Kaiser, o grupo coloca em cena sua leitura da peça de Shakespeare, um trabalho de tradução no sentido amplo.

Clowns de Shakespeare fazem sua própria “tradução” de “Muito Barulho por Nada” (Foto Clowns/Divulgação)
Fiel à narrativa e ao tom, a adaptação proposta se beneficia de cortes de trechos falados, bem como de alguns personagens e situações, para oferecer uma versão própria do extenso material dramatúrgico original. Tradução, adaptação, versão, leitura, encenação: do que se trata? Poderíamos estabelecer definições diferenciadas para cada uma dessas situações, do ponto de vista técnico, mas o que me parece interessante nesse trabalho do Clowns, no que diz respeito a uma análise crítica, é o trabalho de apropriação de um conteúdo canônico com uma consequente criação original.
De modo geral, é possível dizer que toda peça que se constitui pela montagem de um texto pré-existente tem a sua medida de tradução. O trabalho de encenação pode ser pensado como um trabalho de tradução – de linguagens, não necessariamente de línguas. E textos canônicos de teatro demandam novas encenações na mesma medida em que textos canônicos de literatura demandam novas traduções. Mas nem toda encenação – assim como nem toda tradução – dá o pulo do gato: apropriar-se ao ponto de ser um outro original. A proposta desse texto é tentar ver a montagem em questão nesse caminho.
O “quase” inserido no título conhecido em português (Muito barulho por nada) dá a dica de que há algum desvio. E esse algum desvio pode sinalizar o lugar de descolamento do cânone – que é justamente o salto de infidelidade que faz a volta, que faz a tradução/adaptação/encenação ser fiel justamente por sua relação de independência. E esse salto só é viável porque há um respaldo de pesquisa e de conhecimento prático, de familiaridade com o legado shakespeareano que, não à toa, nomeia o grupo. No que diz respeito à originalidade, é visível que o grupo tem uma linguagem própria na qual pode inscrever a sua dramaturgia: o chão a partir do qual é possível levantar voo.
O que vemos e ouvimos neste Muito barulho por quase nada é um Shakespeare popular, com espaço para as idiossincrasias dos artistas criadores e referências sutis ao momento da apresentação, uma encenação que finca suas bases na comunicabilidade imediata entre ator e espectador, contando com o lirismo e a descontração dos números musicais. Eles estão à vontade, como se Shakespeare não fosse um autor canônico, mas um lugar que eles frequentam, ou a cidade onde nasceram. São os clowns – ou clóvnis – que moram em Shakespeare, ou que vieram de lá.
(*) O texto integra as ações da DocumentaCena – Plataforma de Crítica na cobertura da Mostra Latino-Americana de Teatro do Grupo