– por Clóvis Domingos
Crítica a partir do espetáculo Looping: Bahia Overdub (Salvador/BA)
Fotos do Facebook do espetáculo
Looping; Bahia Overdub é uma composição sonora, espacial e coreográfica que convoca à participação coletiva e cria um acontecimento performático no qual se cruzam festividade, política e afirmação dos corpos como matéria humana e urbana. Escrevo esse texto a partir de um estado festivo e um “corpo inFestado” pelas sensações, percepções e encontros vivenciados na experiência com esse trabalho que muito se aproxima de um ritual no qual a potência de se estar junto acaba por configurar modos de resistência e criação de espaços de convívio e proximidade. Esse espetáculo é resultado do encontro colaborativo entre os artistas Felipe Assis, Rita Aquino e Leonardo França e consegue estabelecer uma poética relacional pela conjugação de um pensamento sonoro aliado a um pensamento coreográfico.
Mas o que chamo de InFestação? É ação da festa no corpo. InFestação como contaminação e contágio. Minha escrita inFestada e produzida por um “saber do corpo” que Looping desperta e acaba produzindo afetos emancipatórios pela possibilidade de transformação não só da disposição da plateia (que abandona o lugar de espectadora para se tornar vivenciadora da proposta), mas do espaço cênico, das relações construídas, das memórias evocadas, enfim, daquilo que se movimenta, se escuta, se sente, se inventa. Sonoridade e movimento não disputam, mas pelo contrário, são procedimentos geradores de ajuntamentos corporais capazes de tornar o espaço de fato público, comum e heterogêneo, atravessado pelas diferenças. Eu danço, você dança, nós dançamos. Pude dançar abraçado junto a pessoas que não conhecia. Nós compartilhamos um espaço-tempo aberto e disponível aos encontros, infiltrações e jeitos de estar, se mexer, de compor.
Looping: Bahia Overdub mistura dança, teatro e música e a meu ver se aproxima de uma instalação artística, no sentido de que sua composição é tecida in loco, partindo de células (tanto coreográficas quanto sonoras) bem simples, que através de um processo de repetição, acúmulo e variação se tornam compostas, aumentando assim a tensão e vibração dos corpos em suas possibilidades de afetação e adesão ao trabalho. A festa em suas variadas dimensões se apresenta: das celebrações religiosas às orgias sexuais, dos bailes populares aos ritos tribais, as manifestações de transe, a violência e o corpo em sua imanência e também transcendência. Festas de rua, blocos de carnaval, multidões, suor, chão, contato, perigo, sensualidade e protesto. Looping: Bahia Overdub é efervescência coletiva e vida manifesta ou manyfesta (“Muitas festas”).
A iluminação utilizada de festa de rua, a dispersão dos corpos dançantes e a “barraca/tenda” na qual os músicos permanecem, me remetem aos variados e insurgentes espaços de baile que ocupam as ruas da cidade de Belo Horizonte com seus dançarinos anônimos e famosos e os passos e ritmos de seus corpos negros, mestiços, periféricos e carnavalizados. Festa como dispêndio. Alegria como modo de vida. Diferente do tempo produtivo e escravo do trabalho capitalista remunerado, a festa como ócio, prazer, produção de saúde, excesso e des-ordem. Ao mesmo tempo potência política pela re-união de singularidades. Como arte participativa e através de uma estrutura móvel, acessível e dialógica a toda forma de interação, o espetáculo nos engaja, nos encanta, nos co-move. Vale salientar que em Looping, não há separações rígidas entre artista e público, já que todos são convidados e estimulados a fazerem parte do trabalho, o que me lembra Hélio Oiticica quando defendia a importância da criação artística como forma de devolver as prioridades criativas para a rua e para qualquer tipo de coletividade.
Os dois músicos atuam como DJS e MCS, e em alguns momentos, mensagens e pequenos textos políticos são enunciados e embalados por melodiosas batidas enquanto bailamos: “Abre o espaço! Vamos negociar o espaço! Fique à vontade para se expor! Quantas vidas importam? Tem bala perdida no Belvedere? Não! Quem matou Marielle? MARIELLE, Presente! Meu coração está machucado! A democracia está machucada”! Eu respondia, gritava, me emocionava e ao mesmo tempo me divertia. Aqui a improvisação e a contextualização são táticas eficientes a nos provocar reflexões sobre o momento atual do país, sobre os desenhos geográficos da cidade numa denúncia dos lugares de exclusão e pertencimento social. Looping: Bahia Overdub se transformava então em Looping: Belo Horizonte Overdub ou Looping: Brasil Overdub. Tão local e tão global. Lá e aqui. Hoje, ontem, talvez amanhã infelizmente.
As caixas de som também atuam como corpos a demarcar espaços e simbolizam desde os discursos que interferem sobre nossas vidas como também reforçam os elementos cênicos (pela sua luminosidade) da festa compartilhada. Há uma ação/sequência/imagem que produz infinitas possibilidades de leitura: quando os corpos dos bailarinos carregam lentamente as caixas de som sobre as cabeças e depois nas costas (e escutamos fragmentos sonoros de festas religiosas, aglomerações festivas ou falas de políticos), é como se esses corpos fossem de alguma forma puxados para trás por longos fios. Uma espécie de amarras e cordas que paralisam o movimentar, o avançar, o caminhar, o conquistar direitos. Impossível nesse momento não pensar nos retrocessos políticos e sociais de um país cuja democracia vem sendo golpeada cotidianamente por forças conservadoras e muito se tem perdido, violentado e silenciado.
Até que os corpos entrelaçados dos intérpretes marcham impetuosamente sobre os espectadores, quase os ameaçando em sua integridade física. Um misto de revolta, defesa e agressividade. Logo depois uma outra forma de reação se estabelece: algumas peças de roupa vão sendo retiradas a partir de movimentações corporais entre o erótico e o sedutor, e assim novos cordões corporais se formam com as pessoas presentes, retomando de alguma forma o início do trabalho. O “eterno retorno” se evidencia.
Como viver e dançar juntos? Nessa sequência narrada sintetizo minha percepção encarnada desse “espetáculo-festa” e penso nas “três transformações do espírito” enumeradas por Nietzsche: o camelo, o leão e a criança. Em Looping: Bahia Overdub pude experimentar esse traçado nietzschiano: do camelo cansado e submisso que carrega todas as ordens e discursos ao leão feroz que se nega a repetir essa coreografia aniquiladora de toda espécie de existência, podendo finalmente se transformar para experimentar um corpo-criança brincante e festivo, livre dos ressentimentos e das regras e opressões, a inventar novas danças, espacialidades e formas de se fazer cidade, espaço, arte e política. Um processo contínuo e que nos pede coragem, ousadia e movimento para sempre poder recomeçar. Uma mulher me disse: “Que delícia dançarmos juntos aqui. Eu estava precisando de viver isso, me sentir viva novamente”! Isso contagia, infesta, contamina, agrega e instaura f(r)esta como possibilidade de resistência. Difícil precisar quando o evento termina, uma vez que a discotecagem continua a embalar nossos corpos exaustos e ao mesmo tempo energizados pela força reparadora da festa.
Em tempos de crescente disputa e polarização partidárias, que mais tem nos enfraquecido, dividido e separado, Looping: Bahia Overdub é coreopolítica ao nos permitir a criação de uma comunidade dançante autônoma que afirma os corpos como aberturas ativas, afetivas e festivas ao agir coletivamente para remodelar o mundo em constante gesto estético, crítico e po-ético.
Espetáculo assistido em 25 de março de 2018 no Sesc Palladium dentro da programação do Palco Giratório 2018.
http://www.sescmg.com.br/palcogiratorio/
Ficha Técnica:
Concepção e criação: Felipe de Assis, Leonardo França e Rita Aquino.
Criação Musical: Mahal Pita e Felipe de Assis
Músicos: Ícaro Sá e Edbrass Brasil
Intérpretes-criadores: Bruno de Jesus, Jai Bispo, Jaqueline Elesbão, Laís Oliveira, Leonardo França, Rita Aquino e Talita Gomes
Cenografia e Identidade Visual: TANTO Criações Compartilhadas
Figurino: Flávia Couto
Concepção de Luz: Felipe Assis e Rita Aquino
Fotografia: Patrícia Almeida
Coordenação de Produção: Felipe Assis
Técnico de Luz e assistente de produção: Lucas Barreto de Sá