— por Ana Luisa Santos —
Crítica a partir da leitura dramática dos textos “Câmara Escura”, de Guilherme Dearo (SP) e “Hoje”, de Luciana Romagnolli (BH), apresentados na 5ª Janela de Dramaturgia, em Belo Horizonte (MG).
Na noite de 30 de agosto de 2016, às vésperas da votação do Senado Federal que aprovou o golpe que resultou no processo de impeachment da presidente Dilma Roussef, aconteceu o primeiro encontro da 5ª Janela de Dramaturgia 2016 no Teatro Espanca! em Belo Horizonte. A ocasião trouxe os textos Câmara Escura, de Guilherme Dearo (SP), e Hoje, de Luciana Romagnolli (BH). Como nas edições anteriores, o acontecimento registrou um público significativo, que lotou a plateia e toda a área disponível para sentar no chão.
É muito bom ver tanta gente para ouvir. Em conversa com o dramaturgo e diretor Juarez Guimarães Dias, cheguei a comentar, antes das leituras do dia 30, como eu sentia que o encontro artístico começava, cada vez mais, a ganhar um caráter ético da presença na atual conjuntura política. Por que nós e todas aquelas pessoas estávamos reunidas ali, naquele dia, àquela hora? Por que tanta gente na porta do Teatro Espanca! à noite, na rua Aarão Reis, no hipercentro de Belo Horizonte, contra todos os prognósticos de violência, fascismo, medo, isolamento, para não dizer, sensação de falta de futuro? Esse ethos do teatro, do encontro, de caráter político é ressaltado em tempos de incerteza. Na dúvida, seguimos buscando o exercício da ambiguidade artística, da imaginação, o experimento de linguagem, algo que faça conversar o real e o simulacro, discutir ideologias.
Neste mesmo espaço na calçada da Aarão Reis, dois dias antes, na madrugada de domingo, falecia Cléa, moradora de rua. Ela morreu na rua, perto do muro da calçada ao lado do Teatro Espanca! onde morava há pelo menos cinco anos. Os membros do Espanca!, além de guardarem seus documentos pessoais, localizaram a família de Cléa e avisaram sobre seu falecimento. Cléa fez uma colagem artística antes de morrer em que inscreveu “Teatro Espanca”, desenhando as letras e intercalando as palavras com um coração. A notícia foi comunicada por Oséias, também morador da Aarão Reis, que foi até o Espanca! na véspera da Janela, na manhã da segunda-feira 29 de agosto. Neste contexto, iniciamos o exercício coletivo de escuta.
Trevas (título provisório)
No início era escuro. O agora é escuro. A Câmara é escura. O Grupo Espanca! iniciou a leitura do texto de Guilherme Dearo no breu. Logo (cedo demais) vieram luzes intermitentes de lanternas, revelando as vozes dos atores Alexandre de Sena, Gláucia Vandeveld, Gustavo Bones, Marcelo Castro e Raysner de Paula. Eu queria ter voltado ou ficado mais tempo nesse escuro coletivo protegido e constrangido, que o blackout teatral pode provocar. Como você sai no escuro? Como o escuro funciona em você? O breu pode ser um tipo de intimidade? O que você faz quando eu não te vejo? O que eu faço quando você não me enxerga? Como é a experiência coletiva do escuro?
O escuro é uma rubrica básica no teatro e na vida. Para o artista Wilson de Avelar, “o obscuro clareia o pensamento.” Segundo o filósofo Giorgio Aganbem, contemporâneo é aquele que tem o olhar no seu tempo, para nele se aperceber não das luzes, mas da escuridão. E o que acontece quando nos encontramos num ambiente privado de luz? O que é a escuridão que vemos? Os neurofisiologistas dizem que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina, asoff-cells, que entram em atividade e produzem aquela espécie particular de visão a que chamamos escuridão. A escuridão não é a simples ausência da luz, algo como uma não-visão, mas o resultado da atividade das off-cells, um esforço da nossa retina.
Esse breu que ativa nossas off-cells foi potencializado pela bela encenação proposta pelo Grupo Espanca! para a leitura do texto do jornalista Guilherme Dearo. Estamos diante de histórias de pessoas em meio a uma guerra. São soldados, vítimas, fotógrafos e testemunhas do atual conflito na Síria. O nosso cicerone em meio a mortos e destroços é um jovem. O personagem-narrador foi inspirado na vida e obra de Molhem Barakat, que morreu fotografando a serviço de uma das maiores agências de notícia do mundo a destruição final do hospital de Alepo na Síria em 2013. Tinha 18 anos incertos.
Molhem listava interesses variados em sua página na rede social do Facebook: as cantoras Shakira e Katy Perry, o programa Arabs Got Talent, a BBC, a Revolução na Síria. Tornou-se um jovem indeciso entre tornar-se terrorista ou virar fotógrafo. Barakat havia se inscrito na lista de candidatos a membro da Frente Al-Nusra, milícia islamista afiliada à Al Qaeda, e aguardava o veredicto. Seu tio e avô tinham sido mortos pelo regime de Hafez al-Assad.
Suas credenciais para terrorista não foram consideradas suficientes. Em compensação, de tanto conviver com enviados da mídia internacional a sua cidade, tornou-se um guia, fez amizades e começou a registrar o que via com seu próprio smartphone. Molhem Barakat havia se tornado uma valiosa testemunha do esfacelamento da vida a sua volta. Em pouco tempo tinha câmeras e duas lentes fornecidas pela agência. Acredita-se que recebia U$ 100 pela produção de dez fotos diárias e um bônus caso alguma dessas imagens fosse selecionada como a “foto do dia” pelo site do New York Times.
Barakat retratou tanto o aspecto feroz dos combates como a adequação da população ao cotidiano da guerra. Captou momentos prosaicos, líricos, absurdos e desoladores. Morreu sem capacete nem colete à prova de balas, ao lado do irmão, que era militante do Exército da Síria Livre, fotografando a batalha entre rebeldes e forças do governo pela posse das ruínas do principal hospital de Alepo. 20 soldados e seis rebeldes também morreram nesse confronto.
No texto Câmara Escura, temos além do jovem que expressa seus conflitos e sonhos, o personagem de seu irmão, soldado da guerrilha; um homem que está fugindo de um país sitiado; um repórter-fotográfico em cobertura de uma guerra; e uma segunda narradora-testemunha, que também realiza uma espécie de entrevista com o jovem fotógrafo.
A dramaturgia proposta por Dearo não traz nenhuma indicação de ações para as vozes. Às vezes, elas dialogam entre si. Em outras, realizam monólogos existenciais, em que expressam suas contradições diante de uma realidade em conflito. Lutar na guerra ou tirar fotos? Ficar ou fugir? Viver ou morrer? Acreditar ou desistir? Além dos diálogos, não sabemos como essas presenças se relacionam em cena, quais planos ocupam, como funcionam suas simultaneidades e seus afetos entre si. Estamos em uma câmera escura, realmente, e o que vemos são flashes de momentos, sem legendas de duração.
Em discussão, a relação da vida e da morte com a imagem. Dearo disse que usou na Câmara Escura referências do ensaio “Sobre Fotografia” de Susan Sontag, em que a autora discute a nova ética da visão inaugurada com o advento da câmera fotográfica. Neste mundo-imagem, as relações humanas passaram a ser mediadas por imagens. Segundo a autora,
“(…) nossa opressiva sensação de transitoriedade de tudo é mais aguda, uma vez que as câmeras nos oferecem os meios de ‘fixar’ o momento fugidio. Consumimos imagens num ritmo sempre mais rápido e, assim como Balzac suspeitava que as câmeras exauriam camadas do corpo, as imagens consomem a realidade. As câmeras são o antídoto e a doença, um meio de apropriar-se da realidade e um meio de torná-la obsoleta.”
Sobre a fotografia de guerra, podemos pensar no ponto de vista de quem consome as imagens e de quem realiza os registros. Em um livro sobre coberturas fotográficas de conflitos, Greg Marinovich, experimentado repórter-fotográfico revela: “às vezes nos sentíamos como abutres. Pisamos em cadáveres, metafórica e literalmente, e fizemos disso nosso ganha-pão. Falamos muito sobre diamantes de sangue e nos recusamos a usar tênis fabricados pela exploração de mão-de-obra infantil, mas nada temos contra o consumo de imagens feitas por adolescentes que ganham migalhas”. Para Sontag, se pode haver um modo melhor para o mundo real incluir o mundo das imagens, vai demandar uma ecologia não só de coisas reais, mas também de imagens.
Eu não vim aqui para morrer hoje
No outro texto da noite, Hoje, a autora Luciana Romagnoli também inicia seu acontecimento por uma reflexão sobre o que somos capazes de ver, de perceber. “Eu só existo diante do olhar de vocês”, diz a personagem logo no começo. Em cena, estamos diante da encenação proposta por Daniel Toledo e Samira Ávila, que empresta sua voz sensível, potente e carismática para uma espécie de monólogo-transe, para experimentar uma mulher que fala.
Os rápidos diálogos, quando existem, acontecem entre esse eu lírico feminino e uma outra presença em cena, um homem que responde algumas perguntas, serve de modelo, pode ser um matador de aluguel, uma vítima de seqüestro e, por fim, alguém que pede para sair dali. Na leitura, além da direção, Toledo também trabalhou como contra-regra, realizando uma instalação com bonecos e brinquedos, servindo bebida, ouvindo.
Há um diálogo direto da personagem com o público, com a plateia que a assiste. “Eu nunca me vi pelos seus olhos antes”, diz. Nesse deslocamento, percebemos uma personagem em trânsito de origens. Ela passa por uma série de questionamentos sobre as heranças da genética, do gênero, da linguagem e da memória inscrita no seu corpo e no corpo coletivo. Hoje, naquele dia, ficamos sabendo que faz 10 anos do assassinato de seu pai. Quando nos deparamos com o fim de quem amamos, o mundo parece mais real.
Estamos diante de outro tipo de escuridão (a rubrica indica o risco de um tornado lá fora e a possibilidade um apagão). “Se a luz apagar, faço uma fogueira”, diz a personagem com tons feministas. Durante a ação, ela tira fotos da plateia em uma câmera fotográfica polaróide. Pede para alguém da plateia tirar uma foto sua e pede para o homem em cena que tire uma foto sua com o público. Distribui as fotos instantâneas. Comenta que a revelação da câmera demora, contrastando com leveza a densidade da dramaturgia.
No texto de Luciana, a fotografia é o pretexto para intensificar a relação com o público. “É aqui que a gente vem para esquecer?” pergunta. Será que fotografamos para não ter que lembrar? Durante a peça, a personagem impunha outro gatilho além daquele da câmera fotográfica. Ela aponta uma arma de brinquedo para a plateia. Está em um fluxo ambíguo de forças, de realidades, de temporalidades.
O público é seu júri imediato, dividido entre aqueles que acusam, aqueles que defendem e os que julgam. “Vocês não amam, vocês julgam.” Inclusive quando a personagem se coloca não somente como vítima, mas também como possível algoz, durante julgamento pela suspeita de ter matado seu marido. Conversa com o público como se esse pudesse julgá-la não só pelo que ela fez, mas também porque fala, fala forte e diante desse tipo de voz, aparece geralmente a terrível e machista ameaça do bullying que diz que a histeria é uma característica de mulheres.
Para escrever a dramaturgia, Luciana se inspirou em um fato real-biográfico que foi o assassinato de seu pai. A autora, que também é jornalista, e disse que precisou superar a linguagem dos noticiários para conseguir escrever Hoje. Durante o debate após as leituras, Luciana revelou que a experiência da morte de seu pai representou um corte da ficção em sua vida. “Eu não conseguia mais fabular. Na verdade, não consigo me desligar totalmente do real e Hoje é uma tentativa de reprogramar isso.” Através da voz criada por Luciana para a dramaturgia, percebemos um processo de lidar com a dor de lembrar ou com a dor do medo de esquecer e o desejo de fazer uma auto-ficção ou um auto-documentário.
Segundo Elisa Belém, pesquisadora convidada para o debate após as leituras do dia, nós temos uma pulsão de ficção, que revela uma necessidade inata de criar do ser humano, tanto no plano individual, quanto no plano coletivo. E nesse sentido, o gesto de criar pode gerar reparação. Reparar é pôr em bom estado de funcionamento o que estragou; restaurar, consertar, recondicionar; é voltar a possuir algo. Pode ser também retratar-se de ou dar satisfações. Reparar é também notar, observar ou conseguir perceber, ter cuidado, estar atento, constatar. Reparar é um tipo de tatuagem necessária hoje. É um tipo de relação: quem repara, quem recebe a reparação.
Por uma ética da intimidade
No final da noite, quando o debate estava quase terminando, Bremmer Guimaraens, mediador convidado pela Janela de Dramaturgia, fez uma pergunta sobre a questão da autoria, com relação à presença de citações em ambos os textos, em especial com relação a Câmara Escura. Bremmer queria saber como elas funcionam nas dramaturgias, principalmente porque na leitura dramática não é possível distinguir o que está “entre aspas” e o que não está.
Os autores, ambos jornalistas, disseram que utilizaram diferentes referências em seus textos. Guilherme Dearo disse que adaptou referências teóricas como “Câmara Clara”, de Roland Barthes. Ele também utilizou depoimentos de fotógrafos, além de “stalkear” o perfil de Molhem Barakat nas redes sociais e captando algumas frases do jovem árabe, que um amigo no Egito o ajudou a traduzir. Luciana utilizou referências poéticas e teatrais.
Marcelo Castro do Grupo Espanca! ampliou a discussão sobre dilema ético colocado para dramaturgos, grupos de teatro e artistas que decidem trabalhar a partir de fatos e personagens reais. Castro mencionou que o Espanca! passou por questionamentos semelhantes durante o processo de criação do “Real”, último espetáculo do grupo. O ator do Espanca! acredita que estamos vivendo um momento diferenciado, em que dramaturgos têm um novo tipo de acesso a uma série de informações pessoais através da internet.
Fiquei pensando: quando na arte o dilema ético com a realidade não é uma premissa? O que significam essas apropriações? Seria esse atravessamento da intimidade alheia um dos mais fortes temas de criação hoje? Diante de toda essa intimidade disponível, criar intimidade interpessoal é tão raro. A intimidade pede tempo, convivência, corpo, presença. O que está disponível então nas redes digitais seria ainda intimidade? Ou uma fachada, um perfil, um personagem… Será que todos nós parecemos personagens nas redes sociais?
De acordo com a historiadora Mary Del Priore, vivemos o instantâneo e o espetáculo em uma sociedade narcisista e confessional. Em seu livro “Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil”, a autora explica no passado a idéia de interioridade dava consistência à vida dos indivíduos:
“No início, as pessoas jamais estavam sós. Membros de comunidade, elas vivam em espaços sem divisões. Buscar o isolamento era luxo dos que podiam. Estar longe do olhar dos outros definia o privado. (…) Hoje, espaços privados estão ligados à noção de conforto e convivialidade. ‘Estar bem’ significa ter seu ‘canto’, reconhecer-se em objetos familiares, sentir seu próprio cheiro. (…) E ali, no coração da vida privada, a intimidade: fronteira fluida entre o indivíduo e o mundo, o espaço preservado contra agressões. Ali, o corpo, o sexo, o amor, a imaginação, a memória e tudo o mais que seja cumplicidade consigo mesmo.”
Anthony Giddens, em “A transformação da intimidade”, um livro de 1993, disse que alguns têm declarado que a intimidade pode ser opressiva se ela for encarada com uma exigência de relação emocional constante. No entanto, se considerada como uma negociação transacional de vínculos pessoais, estabelecida por iguais, ela surge sob uma luz completamente diferente.
“A intimidade implica uma total democratização do domínio interpessoal, de uma maneira plenamente compatível com a democracia na esfera pública. Há também implicações adicionais. A transformação da intimidade poderia ser uma influência subversiva sobre as instituições modernas como um todo. Um mundo social em que a realização emocional substituísse a maximização do crescimento econômico seria muito diferente daquele que conhecemos hoje.”
Pergunto: de qual intimidade estamos falando? Será que a intimidade se tornou uma mercadoria, revelando o aspecto perverso, flexível e fetichista do capitalismo? Aparentemente, torna-se crescente o desafio ético de fazer escolhas sobre o uso que fazemos da intimidade – própria ou alheia. É difícil ser imparcial diante do fenômeno da evasão de privacidade nos perfis das redes sociais. Assim como é difícil ser imparcial no teatro (por isso, pode ser uma experiência muito constrangedora para algumas pessoas). A imparcialidade foi denunciada, desmascarada, saiu do armário. Precisamos fazer escolhas, precisamos criar política, precisamos experimentar teatro.
O comum como acontecimento
A observação da crítica teatral Soraya Belusi durante o debate após as leituras coincidiu com o depoimento sincero de uma outra pessoa do público presente com relação aos engajamentos propostos por cada texto, para além da característica literária dos trabalhos propostos por Luciana e Guilherme. O texto Hoje propõe um pacto muito forte e muito firme com o espectador, de acordo com Soraya, no que diz respeito ao comprometimento implícito no texto de que a presença compartilhada no teatro potencializa o espaço comum e o encontro como aberturas de engajamentos políticos e afetivos. “A dramaturgia não te permite fugir”, disse.
Na Câmara Escura, diferentemente, “o texto é mais ensimesmado,” na opinião da jornalista. A dramaturgia de Dearo traz menos imagens, menos estímulos. A encenação não desenha, joga na penumbra, é menos explícita. E isso demanda do público um potente exercício de imaginação, um criativo desmanche de estereótipos. Fiquei pensando como é realmente interessante essa experiência da leitura de dramaturgias. O que vemos nessas ocasiões? O que imaginamos? Como lidamos com as imagens que chegam prontas para nós?
Durante o debate, Elisa Belém trouxe para a discussão a referência do livro “Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?”, de Judith Butler, em que a filósofa questiona a violência da normatividade. Segundo a autora, precisamos fazer a pergunta sobre como o poder enquadra nosso olhar sobre os corpos, seus significados e valores. Para Butler, a ontologia, a normatividade e a humanidade estiveram – e, a rigor, ainda estão – a serviço da preservação de determinadas vidas em detrimento de outras.
Diante desse quadro político, a filósofa acredita que hoje existem maneiras em que a performance é central para demonstrações públicas, o exercício da liberdade de gênero e também para a liberdade de reunir-se em assembléia. Em entrevista para uma revista brasileira, Butler foi questionada sobre o que iria falar em sua conferência no Brasil, realizada em 2015. Ela respondeu:
“Eu pretendo, sim, falar sobre política corporal, sobre a importância de corpos reunidos, o porquê de podermos pensar a performatividade não só como algo que uma pessoa faz, mas também como algo encenado no coletivo. (…) A meu ver, não existe democracia sem assembléia, e nenhuma assembléia sem uma forma plural e consubstancial de performatividade.”
No teatro, podemos vivenciar um tipo de intimidade performativa a partir da experiência que compartilhamos quando assistimos uma cena em presença de outras pessoas e de quem está propondo a cena. Nessa vivência artística, não só vemos, mas também escutamos. Como dramaturgias, Hoje e Câmara Escura provocam seus ouvintes para tentar imaginar seus quadros através de suas paisagens sonoras, como bem queria Gertrude Stein (citada por Elisa Belém). A escuta também é um tipo de intimidade com nós mesmos. E por isso, essa talvez também seja uma experiência cada vez mais desafiadora. No livro “À escuta” Jean-Luc Nancy diz:
“Escutar é entrar nesta espacialidade pela qual, ao mesmo tempo, sou penetrado: porque ela abre-se em mim tanto quanto em meu redor, e a partir de mim tanto quanto em direção a mim: ela abre-me em mim tanto quanto ao fora, e é por uma tal dupla, quádrupla ou sêxtupla abertura que um ‘si’ pode ter lugar. Estar à escuta é estar ao mesmo tempo fora e dentro, é estar aberto de fora e de dentro de um ao outro, portanto, e de um no outro. A escuta formaria assim a singularidade sensível que portaria, no modo mais ostensivo, a condição sensível ou sensitiva (aisthética) como tal: a partilha de um dentro/fora, divisão e participação, desconexão e contágio.”
No caso de Hoje, percebemos uma abertura para a relação com o público, através de perguntas e jogos fotográficos. Mas no geral, as duas dramaturgias indicam pouca ou nenhuma interação entre aqueles que estão no primeiro plano da cena, que realizam as vozes do texto. Seria o fim da intimidade ou estamos diante de um desafio de dramaturgia? Nos textos, quase não há indicações de como as personagens podem ser afetadas por aqueles que as acompanham em cena. Que tipo de contágio eles permitem? O que eles fazem de si além de falar? Como eles escutam? O relacionamento é um tipo de encenação?
O fim como começo
No fim de Hoje a personagem convoca a todos do público para vivenciar um dilema atual: o mundo está acabando e não devemos mais sair. Ela evoca o acontecimento de um tornado lá fora, voltando ao tema do medo, do isolamento, da violência, da morte, da guerra generalizada que começamos a perceber em escala global, mas também cotidiana. Somos convidados a experimentar a possibilidade do fim do mundo como o conhecíamos. E a imaginar como ele pode acontecer ou como já está acontecendo. A cineasta Béla Tarr, diretora do filme “O cavalo de Turim”, propõe uma reflexão interessante:
“O apocalipse é um acontecimento enorme. Mas a realidade não é assim. Em meu filme, o fim do mundo é muito silencioso, muito fraco. Assim, o fim do mundo chega como eu o vejo chegar na vida real – lentamente e silenciosamente. A morte é sempre a cena mais terrível, e quando você vê alguém morrer – um animal ou um humano – é sempre terrível, e a coisa mais terrível é que parece que nada aconteceu.”
O que acontece quando alguém morre (real ou afetivamente)? Há funerais, cerimônias, ritos? Que estado tem um corpo desabitado de vida ou de afeto? Apesar ou devido às intensas experiências diante das leituras dos textos, de suas urgências e denúncias, senti falta de pausas e de silêncios. Como demonstrar a perda inenarrável e definitiva? Que gesto tem o luto? É possível percebê-lo na aceleração? Como ele se torna acontecimento? Quando ele se torna potência de ação? Como falar do acaso em caso de morte? Segundo ensinamentos de Kazuo Ohno, compartilhados pelo livro “Treino e(m) poema” não devemos ter receio do nada, pois o espaço vazio é um espaço cheio e é nele que precisamos submergir.
“Um enterro está sendo preparado para você. Seguir o instinto, porque essa é a característica da alma. É melhor eliminar a consciência. Sua mão era uma mão surgida da alma. (…) O instinto, não somente expirava, ele respirava – e havia momentos em que ele inspirava. Quando se entristece, parece estar contente; quando se alegra, aparenta tristeza. Por quê? Essa é a característica do instinto. (…) Vejam, Chagal está suspenso no ar, viram? Aquelas mãos são Chagal. Voando livremente pelo céu, todas as vidas estão contidas naquelas mãos. Mas não havia um porto de chegada para o instinto. Mesmo depois que o corpo se transforma em cinzas, o instinto, até o próximo mundo, se metamorfoseando sem parar. Era uma terra profunda.”
No livro “Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins”, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro buscam mapear uma série de leituras sintomáticas do estado de alarme atual. Ao longo da obra, os autores analisam vários mitos e narrativas sobre o fim do mundo, em suas mais diversas versões científicas, filosóficas ou ficcionais. Refletem sobre a suspensão das maneiras como o tempo costumava passar antes da presente crise política, ambiental e civilizacional.
O mundo está acabando e eu estou aqui, escrevendo? O que devo fazer com essa sensação de que estamos vivendo em guerra? Afinal, o que está em jogo? Como posso contribuir? Como conviver com a idéia de que a humanidade está destruindo o planeta? Segundo Danowski e Viveiros de Castro, inspirados pela obra de Bruno Latour, o caminho de paz só poderá ser trilhado se começarmos por uma atitude de resistência: um múltiplo e combinado repúdio do presente agenciamento cosmopolítico instaurado pela modernidade:
“[Uma] recusa, então, da unificação precoce do multiverso (ou seja, recusa da unificação do ‘mundo’, esse espaço multinatural de coexistência dos planos de imanência traçados por inumeráveis coletivos que o percorrem e o animam); recusa da anterioridade do fato ao valor, do dado ao construído, da natureza à cultura; recusa do poder de polícia atribuído à Ciência como intermediário autorizado exclusivo da primeira Natureza; recusa do único ‘verdadeiro’ fetichismo, a saber, a pretensa referencialidade da Economia como ciência da segunda Natureza (…). Recusa, por fim, da idéia do anthropos como entidade prematuramente unificada, figura que eclipsa, em nome, mais uma vez, de uma Natureza (…), a pluralidade contraditória e heterogênea de condições e interesses dos coletivos que se vêem diante da terrível teofania de Gaia.”
Nesse caso e no espaço dos textos de Luciana e Dearo, o luto é uma condição sensível. O luto é um instinto de intimidade com nós mesmos. E por isso, talvez, seja tão difícil demonstrá-lo como um gesto de duração da morte, da guerra, da solidão. E só podemos vivenciá-lo a partir de sua provocadora constatação. O luto é um tipo de luta.