Crítica a partir do espetáculo “Salomé”, da Madame Teatro e Colectivo 84
– Por Bremmer Guimarães e Igor Leal –
Este texto é um beijo. Um beijo desses que tentam concentrar e sintetizar todos e tantos desejos de um corpo no movimento único de lábios e línguas. Apenas tentam? É também um beijo de encontro. Encontro entre artistas que se permitiram um desafio: a escrita crítica coletiva. Um beijo cheio de paixão, aberto ao diálogo e ao aprendizado, tateando uma experiência nova, pela primeira vez, como um primeiro beijo ou uma primeira transa.
Na entrada do Teatro 2 do Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte, uma voz macia e firme caminha pelo ar e vai ao encontro dos nossos ouvidos. Uma voz emitida por caixas de som. No público, algumas pessoas pedem silêncio. O aviso de “Ei, a peça já começou!” é uma espécie de terceiro sinal performatizado por espectadoras e espectadores. É preciso escutar essa voz. Trata-se do início do espetáculo “Salomé”, criação coletiva da plataforma artística Madame Teatro com o Colectivo 84, de Portugal.
Logo após esse epílogo, vemos Diego Bagagal em cena assim que entramos na sala teatral. Homem branco, de cabelos lisos e longos, presos, se aquecendo num território escurecido, com pouca luz, situação que estabelece um ambiente de suspense, de presságio. Diego se alonga. Anda. Pula corda. Pega um vestido. Solta os cabelos. Uma transição que nos revela um corpo lido, inicialmente, como feminino. A partir desse instante, Salomé, a personagem histórica, se presentificará na montagem. Contudo, ou por isso mesmo, não se tomará a representação como virtude nesse procedimento. O ator estará presente. Ele sempre estará.
Essa é uma explicitação do fazer teatral que reforça o caráter épico e performativo da encenação. Se os estudos queer propõem uma desnaturalização das identidades de gênero, numa leitura comparada, a linguagem épica também busca uma desnaturalização da cena e de suas convenções. Enquanto o estranhamento no teatro propõe uma desconstrução do naturalismo, da ideia de representação, o “estranho” referente ao termo “queer” é justamente uma abertura para outras possibilidades de subjetividades além das ditas predominantes, é uma subversão da norma natural, do previsível.
É potente perceber como “Salomé” é um beijo desafiador e desafiante na trajetória da Madame Teatro. A montagem é um aprofundamento das pesquisas artísticas da plataforma, cujos espetáculos aproximam sexo e política, propondo novas lógicas de pensamentos em oposição às normas de gênero e sexualidade hegemônicas de nossa sociedade e que reverberam na arte. Se predomina na chamada cena cultural LGBT de Belo Horizonte uma possível espetacularização de nossas vivências, em que a lacração e a montação são tomadas como referenciais, o espetáculo aqui analisado busca outras abordagens.
É uma obra construída com olhares queer, que provoca o público e abre lacunas para questionarmos inclusive a ideia de uma estética definida pelo termo queer. Sem ter a pretensão de ser moralizante ou fechativo, o trabalho se concebe enquanto experiência compartilhada. Em “A Arte Como Procedimento”, o crítico Viktor Chklovski discorre que “a finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento”, e esse é um dos caminhos que “Salomé” parece tatear. Lacunas. A experiência teatral proporcionada pela montagem é uma experiência de risco, de um processo em construção, e é importante dizer que assim também são as sexualidades. A performance de gênero é processual, não se cristaliza, assim como o experimento cênico não é uma obra fechada.
“Salomé” é uma afirmação do desejo. De desejos que muitas vezes nos custam a vida. E, se na versão de Oscar Wilde, Salomé parece fazer um caminho em busca da realização de seu desejo, na montagem com direção e dramaturgia de Diego Bagagal e Mickäel de Oliveira, o artista que também está em cena expõe seu singular trajeto criativo para a realização de sua versão da história. Diego acrescenta uma camada autoral ao texto, numa relação excitante com as versões de “Salomé” de Wilde e Strauss, criando uma tessitura cênica que evidencia as relações de poder vinculadas ao sexo e ao prazer. Um trajeto criativo sexo-poético que aciona nas espectadoras e espectadores diversas concepções de erotismo e fazem emergir novas dimensões sociais, políticas, estéticas e epistemológicas do sexo, do teatro e da vida.
Na história bíblica, ao afirmar seu desejo num mundo governado por homens, Salomé é executada. Herodes a executa. Herodes: homem heterossexual privilegiado. Uma relação de poder que detém não só os corpos, mas também os desejos das mulheres e das bichas. Segundo o sociólogo Carlos Figari, é a partir do senhor, no seu domínio mais amplo de outros corpos, que se assenta a masculinidade. Durante a fruição do espetáculo, temos a percepção de que a masculinidade se instaura, muitas vezes, por meio da violência, a partir das relações de opressão. É importante perceber como construímos nossas masculinidades e o que colocamos em jogo para desconstruí-las. Não é apenas o poder do soberano, mas também o poder patriarcal que está em evidência, assim como o terror contido no ambiente divino cristão, fundamental para a regulação dos corpos.
“Salomé” propõe ao espectador a quebra de estereótipos relacionados ao que é ou não ser gay, ao que é ou não parecer homossexual. A quebra desses estereótipos não apenas no cotidiano, mas também na arte. As homossexualidades divergem, mesmo marcadas pelos códigos da cultura LGBT hegemônica. É importante que diferentes subjetividades sejam encenadas. É necessário, ao perceber a potência política do teatro, buscarmos também o debate entre os nossos pares. Nos últimos anos, os casos de Aids entre jovens gays voltaram a crescer no Brasil. Por que ainda falamos tão pouco sobre esse tema e sobre a prática sexual sem camisinha? Ao introduzir esse assunto como elemento dramatúrgico, o trabalho amplia e densifica a abordagem sexo-política presente em sua pesquisa e construção.
Isso se evidencia nas cenas em que Bagagal narra uma relação afetiva e sexual com um soldado do exército. Friccionando realidade e ficção nesse relato, o artista nos coloca diante de uma dramaturgia fragmentada na qual a dúvida nos acompanha durante seu desenvolvimento, alimentando o suspense do público. Ao apresentar a experiência entre um homem que tem sua sexualidade reprimida num ambiente homofóbico e machista e um jovem de 18 anos, até então virgem, a atuante aborda diversas temáticas importantes no debate queer, como a solidão, a falta de empatia e o sexo bareback.
Além disso, sob o olhar da Madame Teatro e do Colectivo 84, a história de Salomé produz uma ressignificação performativa das técnicas de violência e opressão, gerando deslocamentos críticos sobre as formas de poder. Isso acontece, por exemplo, na cena em que a atuante relata suas sensações durante uma residência artística na Polônia. Numa experiência com dois mestres, na qual Diego deveria apresentar uma dança, o artista não se sentiu à vontade para executar sua proposta e não dançou. A cena pode ser lida como uma evocação da figura de Salomé e de sua dança para Herodes. É Salomé que nega a dança a Herodes? O ator e diretor confidencia sua intimidade com o público e nos possibilita também refletir sobre como a prática da arte é, em diversas circunstâncias, hierarquizada de forma opressora, sendo as vivências não-heterocentradas ainda hoje reprimidas na educação e no fazer artístico.
Diego Bagagal quer sair desse domínio. Ao longo da montagem, ele se propõe a dançar diante da plateia, a romper esse desafio. Para isso, utiliza-se de um travestismo que transborda a aproximação com uma identidade considerada de mulher. Em “Salomé”, a performatividade vai além da produção paródica de gênero e borra as transições entre a performance do ator e as performatividades ditas femininas. Uma batalha entre ele e as versões de “Salomé”, entre Salomé-personagem e Diego-Salomé, entre Salomé e Herodes, entre artista e sociedade, entre ficcional e real. A dramaturgia se potencializa ao inserir o erotismo e o prazer, possivelmente autobiográficos, como metáforas na construção do beijo fatal da personagem título. Podemos perceber essa estratégia na cena em que a boca vermelha e santa de João Batista é traduzida pelo desejo da atuante de beijar o pênis daquele mesmo soldado que conheceu aos 18 anos, sendo esse o seu primeiro beijo.
Vale também destacar a presença da iluminação e do cenário no espetáculo. O design de luz de Allan Calisto, associado à cenografia de Martim Dinis, insere na cena uma instalação artística, que dialoga com a trilha sonora de Chico Neves, valorizando o espaço cênico enquanto lugar de experimento artístico, mais do que de representação de um território. É nesse espaço que o público também poderá performar, rompendo as barreiras entre palco e plateia, entre atuação, direção, luz, cenário e figurino. Todos esses elementos estão em relação e seus tensionamentos constroem a dramaturgia do espetáculo.
É importante ainda perceber o uso do microfone na encenação de “Salomé”. O filósofo Paul Preciado aponta o gênero como tecnologia, enfatizando as diversas intervenções e técnicas que produzem o efeito de gênero, dos hormônios às cirurgias, do artesanal ao hightech. No artigo, “Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais'”, publicado em 2003, o pesquisador apresenta o sexo como tecnologia biopolítica no capitalismo contemporâneo e, dessa forma, nos permite visualizar as práticas sexuais, os órgãos sexuais e também os códigos de masculinidade e feminilidade como agentes de controle da vida, e como elementos fundamentais nas estratégias do poder e da governabilidade. O instrumento constrói não apenas uma atmosfera sonora de mistério, mas é também uma técnica que produz e amplifica uma voz de características femininas. A voz, que tem tanta importância para Salomé e é seu primeiro contato com João Batista. A voz, considerada local de identidade, mas que nada tem de natural.
Em seu material de divulgação, “Salomé” nos é apresentada como uma ode ao Amor. Uma ode que se diz feminina. Que começou a ser escrita antes da Bíblia e que é sobre uma mulher descrita nos textos bíblicos. Uma ode simples, pura, selvagem, molhada e beijada. Após a experiência proporcionada pelo trabalho, a impressão que fica é a de que “Salomé” é também uma ode às sexualidades singulares. A performance de Bagagal é uma “paródia bíblica viada”, um ritual no qual o artista intervém em nossos modos de olhar heterossexistas, ampliando as nossas subjetividades.
Gostei do espetáculo. Incômodo e incomum para os costumes mineiros no CCBB. Valeu por isso também, por trazer a diversidade, a singularidade numa proposta coletiva e no teatro. Experiência de arte milenar e por isso ainda tão rica em possibilidades e linguagens!
Gostei do texto também! Inspirado, provocativo e sensível ao que precisamos ter contato enquanto leitores! Bravo!