– Por Júlia Guimarães-
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Agora Crítica, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Crítica a partir do espetáculo Não me entrego, não, de Othon Bastos (RJ), visto no 25º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília
O que o teatro, como lugar de composição de uma imagem efêmera, presencial e corporificada, pode nos dizer sobre a memória? Que conhecimentos ele é capaz de produzir quando se aproxima de uma escrita e elaboração do passado? E o que surge quando tensiona a memória com o espaço/tempo da atualidade?
Estas são algumas perguntas que me atravessam depois de vivenciar, ao longo de 10 dias, a programação do festival Cena Contemporânea, realizado entre 5 a 17 de novembro, em Brasília. Moradora da capital do país há menos de um ano, esta foi a primeira vez que acompanhei o festival. E, na minha estreia um tanto atrasada (o Cena Contemporânea celebra em 2024 longevas 25 edições), o que mais me mobilizou na mostra foi perceber as variadas formas com as quais o tema da memória – que rege a curadoria de Guilherme Reis, com colaboração de Daniele Sampaio – se materializa em cada obra presente na programação.
Já faz alguns anos que tem me interessado entender como teatro é capaz de “performar a memória” ou, em outras palavras, fazer dela um conceito “encenado”, “posto em cena”. Trata-se de um questionamento relacionado, por sua vez, com a pergunta mais ampla sobre que qualidade é essa de conhecimento que a linguagem corporal e territorializada das artes cênicas pode oferecer às representações da memória e da história, sejam estas individuais ou coletivas.
Por conta dessas questões que frequentemente me acompanham, meu modo de olhar para os espetáculos assistidos no Cena Contemporânea parte de perguntas semelhantes: Quais são os arranjos estéticos, poéticos, políticos e conceituais que cada criação encontra para performar a memória? E de que maneira essa performance colabora para produzir uma espécie de memória pública, coletiva e presencial a respeito dos temas abordados? Imersa nessas inquietações, pretendo dialogar, em dois textos distintos*, com algumas das obras vistas nesta 25ª edição.
Memória, história, desejo e atuação
Dentre os vários espetáculos que assisti no festival, possivelmente o que mais me emocionou, nesse lugar de uma aproximação poética e performática com a memória, foi Não me entrego, não (2024), do ator Othon Bastos. Apresentada no auditório da ADUnB (Associação de Docentes da UnB) durante o Cena Contemporânea, a obra revisita a trajetória do ator de 91 anos no teatro e no cinema (curiosamente, a dramaturgia ignora seus trabalhos na TV), sob a direção do colega e amigo Flavio Marinho, que também assina o texto da montagem.
Em cena, Othon Bastos não apenas relembra, em ordem cronológica, as obras e artistas mais significativos que atravessaram seu percurso, como também reperforma trechos de montagens teatrais emblemáticas em que participou, como O Jardim das Cerejeiras (do russo Anton Tchekhov) e Um grito parado no ar (do brasileiro Gianfrancesco Guarnieri). No palco, Bastos contracena com uma espécie de “memória” auxiliar, representada pela atriz Juliana Medela (também diretora assistente da montagem), que atua a meio caminho entre um “ponto” e uma “Alexa” do Google. Alguém que tanto ajuda o ator a relembrar seu texto cênico quanto atua no sentido de explicar fatos, resumir episódios, contextualizar uma lembrança, em uma dramaturgia que poderia aludir ao formato do hiperlink, comum à linguagem da internet.
Enquanto assistia ao espetáculo, me deparei, por diversas vezes, com a sensação de ser cúmplice de uma espécie de “história viva” do teatro e do cinema brasileiro dos últimos 70 anos. Ao contrário da história impressa em livros, aqui a memória ganha corpo, timbre e materialidade. Podemos acompanhar, por exemplo, o florescimento do teatro amador no Brasil na passagem em que Bastos relata sua convivência e atuação com Paschoal Carlos Magno, como no episódio em que o diretor e agitador cultural levou um grupo de 18 estudantes para passar uma temporada na Inglaterra – financiada por ninguém menos que o magnata das comunicações Assis Chateaubriand – a fim de aprender teatro nas terras de Shakespeare. Ouvimos também o depoimento sobre sua participação no grupo Teatro Oficina, nos anos 1960, quando Othon Bastos atuou em montagens históricas, como Galileu Galilei (1968), ou de sua reação ao que podemos entender como certa “virada performativa” do Oficina, quando o diretor de Zé Celso incorpora a nudez como gesto fundamental de sua estética, prática que Bastos conta, em tom cômico, que preferiu refutar.
De fato, é possível dizer que Não me entrego, não elabora uma espécie de historiografia do teatro e do cinema brasileiro. Não uma história que aspira a qualquer tipo de neutralidade, universalidade ou oficialidade e, sim, um recorte historiográfico possível, dentre vários outros. Um modo de narrar que valoriza a subjetividade, ao selecionar e editar passagens a partir de um percurso afetivo e pessoal. Uma história que se inscreve no corpo do ator ao mesmo tempo em que é escrita cenicamente por ele.
Para dialogar com a terminologia usada pela crítica Daniele Avila Small (2019), acredito que seria possível enxergar na performance de Bastos uma certa “historiografia de artista”. Pensada pela autora como uma espécie de “prática corporalizada da história pública, história feita com o público e pelo público, em regime de autoridade compartilhada” (SMALL, 2019, p. VII), trata-se de uma historiografia que não esconde, ao contrário de certa tradição epistêmica do campo da História, as marcas de sua subjetividade e parcialidade.
A longevidade e a relevância profissional de Othon Bastos também aparecem como elementos significativos a esse ato de performar a história com o próprio corpo. Assistir, presencialmente, um ator tão emblemático para o teatro e o cinema brasileiro narrando os diferentes episódios que protagonizou nessas sete décadas de profissão não deixa de ter algo de aurático, em sentido semelhante ao proposto pelo filósofo alemão Walter Benjamin, quando alude a certa “autenticidade” da obra de arte (no sentido de sua existência única) como um dos fatores responsáveis por projetar sua “aura”. Uma aura que diz respeito, primeiramente, a alguém que participou da construção dessa história por meio de seu corpo e sua atuação. Um corpo que, por sua vez, se eternizou em performances icônicas, como a de seu famoso personagem Corisco no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.
Por essa relação entre tempo e memória, o espetáculo pode ser visto ainda como uma espécie de manifesto poético antietarista. Nele – assim como em outra bonita montagem presente na programação do Cena Contemporânea, A Escultura, com as artistas da dança Yara de Cunto e Giselle Rodrigues – a frase que dá nome ao título, “Não me entrego não”, fala de certa pulsão de vida necessária para fazer da existência algo estimulante, como o gesto de festejar uma trajetória longeva que segue sendo muito bem aproveitada, a despeito de todas as suas adversidades e mesmo em uma idade na qual a finitude passa a ser uma realidade cada vez mais palpável.
E aí talvez resida a maior beleza do espetáculo: o que vemos em cena é um intérprete ávido por atuar, um ser desejante que irradia essa vivacidade para nós, da plateia, em uma conexão difícil de ser colocada em palavras, dada a sua dimensão muito mais energética do que propriamente comunicativa. O crítico de teatro argentino Jorge Dubatti (2014) nomeia esse tipo de conexão, de forma igualmente abstrata, como “teatralidade singular do teatro”, marcada pela “intensidade de percepção” em quem vivencia o acontecimento teatral. Algo semelhante ocorreu comigo em algumas passagens de Não me entrego, não, possivelmente pela combinação entre a relevância histórica da obra e a “produção de presença” (para usar outro termo que tenta dar conta daquilo que o ‘sentido não consegue alcançar’, este último de autoria do filósofo Hans Gumbrecht) construída pela performance de Bastos,.
Seria omisso, por outro lado, deixar de problematizar o recorte de gênero, classe e raça dessa historiografia de artista que se apresenta para o público em Não me entrego, não. Uma historiografia que é eminentemente branca e masculina, focada em diretores e dramaturgos, na qual, vez por outra, alguma atriz é até mencionada, mas que não avança não muito além disso no que se refere à adoção de uma mirada crítica para as ausências que caracterizam o teatro brasileiro do século XX. Não tenho certeza se é realmente justo cobrar de um monólogo biográfico, pessoal, afetivo e parcial esse tipo de olhar, uma vez que toda a sua narrativa traz as marcas do ciclo de convivência do próprio Othon Bastos. Mas, talvez, ao menos um aceno à consciência das lacunas presentes nesse relato ajudaria a posicionar de forma mais (auto)crítica as memórias do ator.
Também havia, na encenação, um discrepante contraste entre certa cenografia pouco original e quase amadora em sua concepção/confecção – um grande painel de plástico onde se vê imagens significativas para a trajetória de Othon – com a sofisticação da performance deste que é considerado por muitos o maior ator vivo do Brasil. Sem dúvida, a encenação, como um todo, poderia investir em um tratamento estético que valorizasse mais a trajetória e atuação de Bastos. O mesmo se poderia dizer da personagem feminina do espetáculo que, embora de fato seja necessária como memória auxiliar do ator, por vezes acabava por infantilizar a dramaturgia com suas intervenções didáticas.
Tais aspectos, no entanto, não parecem ofuscar a intensidade dessa memória performada de forma tão vibrante por Othon Bastos, traduzida, por exemplo, pela alegria que vemos em seu ato de contar a própria história. Ao contrário da experiência de ler uma biografia de artista em um livro, aqui há uma continuidade entre o que se conta e como se conta. Não por acaso, há todo um bloco do espetáculo no qual a dramaturgia se vale de textos consagrados para homenagear a linguagem teatral. Passagens nas quais a dimensão de efemeridade das artes cênicas surge exaltada – e, novamente aqui, sua conexão com a dimensão aurática das artes que acontecem “ao vivo” –, assim como a intensidade de seu acontecimento no aqui-agora do teatro. Afinal, nada mais coerente com a trajetória de Bastos do que contar sua história nos palcos dos teatros, sob refletores e diante de uma plateia cúmplice. Na melhor das perspectivas, só posso desejar que o gesto de Othon inspire outros atores e atrizes de sua geração a nos oferecer semelhante presente.
*Obs.: a reflexão sobre a memória nos espetáculos do Cena Contemporânea será dividida em duas críticas; a próxima será publicada em breve.
Foto de capa: Rômulo Juracy.
Referências:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política 10. ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1996.
DUBATTI, Jorge. A poética teatral em marcos axiológicos: critérios de valoração. Trad. Luciana Romagnolli. Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais. 2014. Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/author/jorge-dubatti/>.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio, 2010.
SMALL, Daniele Avila. Historiografias de artista – Escritas da história no teatro documentário contemporâneo. 2019. 289 f. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
FICHA TÉCNICA:
Elenco: Othon Bastos
Texto e Direção: Flavio Marinho
Diretora Assistente e Participação Especial: Juliana Medela
Direção de Arte: Ronald Teixeira
Trilha Sonora: Liliane Secco
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Programação Visual: Gamba Júnior
Fotos: Beti Niemeyer
Visagismo: Fernando Ocazione
Alfaiataria: Macedo Leal
Coordenação de Produção: Bianca De Felippes
Consultoria Artística: José Dias
Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê Comunicação
Assessoria Jurídica: Roberto Silva
Coordenador de Redes Sociais: Marcos Vinicius de Moraes
Assist. de Diretor de Arte: Pedro Stanford
Assistente de Produção: Gabriela Newlands
Administração: Fábio Oliveira
Desenho de Som e Operador: Vitor Granete
Operador de Luz: Marco Cardi
Contrarregra: Paulo Ramos
Realização: Marinho d’Oliveira Produções Artísticas