– por Luciana Romagnolli –
[Imagem de capa: intervenção de Luciana Romagnolli sobre obra de Muhammed Salah.]
Tenho me perguntado sobre como sustentar o gesto crítico neste momento, neste país, neste contexto. Já adianto aqui a resposta que tenho me dado: sustentando a pergunta.
Nesses quinze anos de atuação como crítica, o modo de conceber e praticar essa atividade transformou-se algumas vezes. Compreendo que precise ser assim: a crítica é um olhar – um corpo – que se lança ao mundo em movimento. Move-se o mundo, move-se a crítica.
Há uma coreopolítica para um corpo crítico que se implica na cena do teatro, na cena do mundo: projeta movimentos, adere a coletivos, singulariza-se, encontra outras perspectivas, retorna, persiste, indaga… ainda.
A crítica produz discurso sobre/ a partir de/ com a arte. As perguntas sobre a crítica carregam perguntas sobre a arte. Quais as funções da arte no nosso tempo? Como a arte pode sustentar-se como espaço de invenção de modos de continuarmos vivas que recusem a necropolítica, a precarização das relações de trabalho e de afeto, as abordagens do mundo como consumo e exploração, a propagação de normopatias, a estruturação racista e patriarcal da sociedade?
Um trajeto crítico é um percurso de reinscrições do corpo na linguagem. O fio que atravessa o tecido da costura abre furos, afasta-se, reaproxima-se, alinhava o imprevisto. Cada pergunta é uma abertura.
Das perguntas que me faço, então, retiro aqui algumas consequências que possam projetar propostas para persistir. Lanço-as um tanto desalinhavadas, contando que as costuras estão por ser feitas.
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Na virada da década, cheguei de Curitiba a Belo Horizonte apostando no fazer crítico como um movimento de contato e ressonância com o fazer teatral. A proposição de “pôr em crise” uma obra ditava o caminhar, mesmo que eu experimentasse um não saber diante de cada novo acontecimento cênico, e fosse a mim mesma que colocasse em crise nessa relação: minha concepção de mundo, meu olhar, meu corpo, minha compreensão de arte e sociedade.
O que me movia – vejo agora – era uma atração irresistível por esse enigma da linguagem corporificada: como artistas modelam esteticamente (sensivelmente) o viver?
Uma pergunta sobre dramaturgia. Uma pergunta sobre a criação de mundos.
Da crítica, passei à curadoria, sempre ao passo do pensamento dramatúrgico, analítico, interessado nas composições e decomposições, nas tramas de sentido que tecem nossas realidades cotidianas e fabulares, e nos ecos fora do sentido que fazem vibrar os corpos.
A compreensão da estruturação racista, heteronormativa e misógina da sociedade não veio sem consequências. O insuportável, na melhor das hipóteses, nos lança à luta pela invenção de outros modos de vida, solo fértil para arte.
Hoje, o que sustenta esse campo, para mim, é o espanto diante da vida que a arte reinaugura a cada vez. O desejo de contato com aquilo que não se encaixa no capitalismo nem em uma visão utilitária e quantificável da vida, abrindo brechas para o que não cabe nas formalidades e identidades pré-fixadas nas relações sociais.
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Nos últimos tempos, tenho estado atenta aos modos de circulação de informações e afetos nas redes sociais, que se oferecem como novos espaços de “convívio” para o debate público, como uma suposta praça pública, regida por algoritmos privados. Tento desprender-me da rede que captura nossa indignação como mais um produto capitalista no mercado de trocas emocionais e morais projetado por esses algoritmos, que convocam os usuários à reatividade, ao medo, ao ódio, ao isolamento. Quem nunca se exaltou que atire a primeira pedra. Tornamo-nos facilmente manipuláveis por meias manchetes e memes mal lidos. Qualquer palavra é pólvora.
Não se trata de menosprezar a revolta, mas questionar sua efetividade quando se torna produção em série na máquina capitalista de embrutecimento dos corpos, na passagem da pulsão de vida para a de morte. Quando o efeito calculado da indignação é um tapar de olhos e ouvidos, mortificar o corpo e bloquear o diálogo.
Em que medida é preciso destruir para abrir espaço? E em que medida a fogueira infertiliza a terra e nos envolve em uma nuvem irrespirável?
Acontece que não existe um fora dessa estrutura social.
Então, indago-me: o que há de existir entre “o aliado não é uma categoria estável”, proposição com que Jota Mombaça esgarça o tecido da história única, e a questão sobre “como fugir do desejo de sempre construir um inimigo em comum?” trazida por Lorenna Rocha?
Buscar inimigos comuns perpetua uma lógica de extermínio da diferença?
Como construir uma sociedade plural, verdadeiramente plural, não somente para as diferenças com as quais concordamos?
E como reconhecer o limite em que a discordância extermina até a possibilidade da diferença?
Aqui, encontro ecos de falas e leituras do Juliano Gomes e da Sarah Ahmed, colocando em questão isso que separa o que chamamos de “nosso” do não nosso – o idêntico ao eu do “não eu”. Não somente para apontar quem cabe no “nós” e quem está excluído, mas para repensar essa lógica mesma de separação baseada na exclusão daquilo que não se espelha.
Como não se fechar diante do estranho a si?
Como combater as dicotomias que hierarquizaram os corpos sem erigir novas hierarquias?
Como fazer isso sem se limitar a aderir a discursos engajadores e a propagá-los repetidamente, desatentos ao gesto de repetir sem crítica?
“Que se diga é esquecido detrás do que se diz no que se ouve”, lembrou Lacan em O Aturdito.
Como sustentar a investigação da dimensão estética da experiência de estar no mundo, ali onde os discursos falham, onde nossos gozos se revelam, para além das rivalidades e maniqueísmos, nas frestas dos sentidos, nos encontros inesperados, onde se operem intervenções sutis?
E como fazer tudo isso sem nos implicarmos?
Não falo de heroísmos nem de salvacionismos. Implicar eticamente o corpo passa por uma experiência subjetiva de questionar ideais e o lugar que ocupamos nas idealizações.
Penso, por exemplo, na arte que “salva”. Salva quem? Não tenho dúvida de que a arte possa salvar aquele que encontra nessa expressão um espaço para existir (cada vez mais exíguo no modo de alta produtividade da vida colonizada pelo neoliberalismo e sua necropolítica). Mas não creio que o artista salve. Ainda bem.
Sem messianismos.
Como a arte pode manter-se próxima da política sem que o artista assuma a roupagem marketeira dos políticos? Próxima da criação (invenção) e longe da religião? Próxima do público sem submeter-se de todo à mercantilização?
A diferença que tento apontar aqui faz-se nos discursos e práticas. Quando a arte assume o discurso da salvação, da elevação moral, qualquer atrocidade (inclusive as trabalhistas) pode ser cometida em seu nome. Quando a arte assume o discurso da campanha política ou da publicidade, o público torna-se um grupo a ser convencido, sem dissenso nem autonomia.
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Foi traumático (no sentido daquilo que fixa um antes e um depois) na minha trajetória assistir a debates entre representantes de grupos extremamente marginalizados, alvos de extermínio, com dificuldades à escuta um do outro. Saí em silêncio. Era preciso outro tempo. Outra lógica que não a da disputa.
Demorar na escuta antes de voltar a dizer.
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Venho direcionando minha pesquisa para psicanálise e arte. Para o impacto da linguagem no corpo, suas consequências e aquilo que escapa. Para a lógica que não se encerra no universal: recusa decepar corpos para que caibam nas categorias e classificações.
Talvez já fizesse isso quando fui pesquisar dramaturgia e presença no mestrado, ou dramaturgia convivial no doutorado, sem saber ao certo o que procurava, movida pelos impactos corporais deixados pelas minhas experiências como espectadora. Aqui encontro outra questão cara à crítica, e difícil: despir-se dos saberes prévios no corpo a corpo com os trabalhos artísticos, para redescobrir o mundo com eles e, daí, construir algum sentido.
Entretanto, esse não saber, elevado à máxima potência pela singular combinação do inferno político brasileiro (coletivo) com a radical experiência da maternidade (particular, mas também social), pôs-me diante de impasses que nem as teorias do teatro nem da sociologia nem da filosofia podiam fazer mais do que roçar. Então fui cutucar as feridas da língua, do dizer e do indizível no campo da investigação das subjetividades, para além das racionalidades.
Daqui escrevo agora, recuperando a voz, ensaiando um bem-dizer ainda trôpego e ruidoso. Para isso, abandono muito do que compreendi como crítica ao longo de quinze anos. Busco os desvios.
Tenho atentado, especialmente, ao lugar de comitê moral em que nos investimos como as juízas, os/es juízes de nosso tempo. A esse império do supereu em que nos encontramos nas redes sociais: essa dimensão tão intrigante do ser que Freud desenhou com os contornos legislativos de um imperativo categórico (“é proibido!”, “você não pode!”…), e que Lacan repropôs como imperativo de gozo (“você deve!”, “faça!”, “mais!”…).
O que se espera de um crítico, uma crítica, ainda?
Como evitar que a crítica torne-se um discurso legislador, moralizante e esterilizante?
O que há para a crítica além dessa demanda de regulação social? Um desregular, atrevido, que faça um furo no tecido instituído da arte e da vida para alinhavar outra forma provisória até que outro fio o atravesse?
Meu projeto de vida agora lança-se a uma investigação sobre como os discursos incidem nos corpos, quais ressonâncias nos mortificam e quais brechas abrem-se para que inventemos soluções imprevistas. Lança-se a tecer laços impermanentes entre o singular e o comum. A contribuir com a construção de uma sociedade plural, sem delírios salvacionistas, sem a imposição de uma diferença sobre as outras, mas sustentando a pergunta: como coexistirmos? E compreendendo a arte como território deslimitado onde, insistentemente, fabulam-se respostas, uma a uma.
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Chego, então, a algumas propostas para persistir.
Mais fios soltos:
Recusar à crítica a função de legisladora ou juíza de um mundo-tribunal.
Recusar à crítica o lugar de saber autoritário, detentor de uma suposta verdade e do projeto ideal de sociedade, diante de um mundo a ser ensinado.
Procurar outro modo que não o imperativo para o laço social.
Implicar o corpo na linguagem, na cena, no problema e na proposição.
Fazer a crítica como quem faz dramaturgia.
Troçar os discursos prontos, reencontrar a palavra, revirar a palavra, repactuar a palavra.
Estar advertida de que não há fora desse mundo-mercado: as revoluções são capturadas, reprocessadas e vendidas em hashtags estampadas.
Recuperar um esforço de historicização, que encontre no recuo um impulso ao amanhã.
Trilhar uma luta social em que o plural não sucumba à afirmação autoritária da identidade como lei.
Não esquecer que, seja qual for o corpo que ocupe essa posição, a lei do Um é patriarcal.
Assumir um compromisso com a vida, entendida como existências plurais, dissonantes, dissensuais e desencontradas.
Um compromisso com a coexistência do que há de radicalmente diferente em cada ser vivente, a partir do que possamos transitar e inventar formas de laço.
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Talvez, aprender a gingar.
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Iniciei este texto com uma pergunta sobre o sustento do gesto crítico. A boca que diz também come.
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Nem tudo é manifesto.