– Por Felipe Cordeiro –
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
(Motivo, de Cecília Meireles)
Meu projeto de crítica nasce marcado por uma contradição metodológica: nunca quis ser crítico de teatro. Mas, como sabemos, na vida nem sempre você elege todos os seus caminhos, alguns aparecem e você embarca.
Entrei no Horizonte da Cena (marco que me estabiliza como crítico) no segundo semestre de 2018, há 3 anos. Anteriormente, colaborei com o site em 2014, ocasião em que fiz um curso de crítica teatral com Luciana Romagnolli, no qual uma das propostas era acompanhar a programação do Circuito Liberdade e produzir um texto a partir de uma análise daquelas obras (logo, uma crítica). Em 2018 recebi o convite para ser colaborador do projeto – o que pouco tempo depois tornou-se uma entrada efetiva no corpo crítico.
No momento do convite para ser colaborador eu estava em Buenos Aires, para um congresso sobre teatro, e havia assistido a um espetáculo que me marcou muito na noite anterior. Assim, decidi unir ambas coisas: assistir novamente à obra e escrever a partir daquele universo.
Como nunca direcionei minha formação para a crítica teatral, como percebo que é o projeto profissional de muitas colegas, entendi de antemão que minha colaboração só poderia advir de um lugar que me trouxesse alguma autenticidade e fluência analítica. Nesse caso, a interpretação teatral e principalmente seus processos pregressos, basilares e das permanências desses arquivos e repertórios (seguindo a teoria de Diana Taylor). Tenho ciência que me falta a eloquência crítica tradicional que sempre admirei (principalmente nas colegas de Horizonte), mas a partir do momento em que me puseram na gira, caberia a mim aceitar os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir (como já cantou minha conterrânea Adélia Prado).
Olhando meu percurso dentro do universo crítico, que, graças ao Horizonte, se expandiu nos últimos anos, percebo que meu trabalho, principalmente os que escolhi analisar e não os que me foram sugeridos como pauta do próprio HC ou de festivais e artistas, se debruçam essencialmente em:
1) trajetórias já estabilizadas dentro da opinião pública; uma vez que, como artista de teatro, sei que é extremamente mais laborioso manter um grupo por décadas do que levantar uma obra ou coletivos efêmeros. Interessa-me esse exercício político da coletividade e de todas as “partilhas do sensível” existentes numa peça que é levantada num sistema que diz mais sobre a democracia do que uma autarquia ou um ímpeto criativo/revolucionário momentâneo.
2) grupos que trabalhem com um lugar de enunciação de caráter explicitamente latino-americano.
3) trabalhos com forte implicação intermidiática. Como minha formação acadêmica é um híbrido entre teatro, cinema, literatura e edição, sinto-me sempre impelido a colocar meu corpo e meus pensamentos à disposição das relações fronteiriças criadas por tais obras. Nessa esteira, cheguei a escrever para o HC uma crítica sobre a última exposição de Bjork que esteve em cartaz no Brasil, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. Esse trabalho não só permitiu-me exercitar outras vertentes da crítica, e da liberdade temática que tenho dentro da editoria do site (realizada de forma cuidadosa por Luciana Romagnolli e Clóvis Domingos), como percebo que antecipou muito do que pouco tempo depois passou a ser o prato do dia de nossas produções teatrais e analíticas: o tecnovívio (conceito emprestado do crítico argentino Jorge Dubatti).
Neste momento em que o Horizonte convida seu corpo crítico a planejar suas próprias estratégias de continuidade, encontro-me disposto a seguir pensando nos três tópicos elencados acima, porém a partir de outras abordagens. Deixando um pouco o texto crítico, ipsis litteris, pretendo enveredar nas trajetórias de artistas (locais, nacionais e internacionais), a partir de entrevistas (em variados formatos), propondo outras formas de intervenção e interlocução crítica que não apenas o texto redigido após a fruição de um espetáculo – tendência que me pareceu bastante efetiva a partir das reconfigurações de produção e visibilidade impostas pela pandemia da COVID-19. Com isso, interessa-me ouvir os artistas, criar tais espaços de fala (visto o atual sucateamento dos antes tão expressivos cadernos de cultura), produzir material paradidático (uma vez que alunos de teatro dificilmente têm acesso às falas de determinados criadores para além de sua obra). Tais movimentos, que não consigo pensar apartados de um compromisso crítico com o debate público que o teatro suscita, permitirão que eu siga mapeando meu improjetável desejo de não ser um crítico de teatro.