– por Ana Luisa Santos –
Posfácio do texto Por uma performance queer de Janeiro/2019 (leia antes).
Essa crítica me encontra em um momento diferente de presença na cidade. Volto a BH depois de um período de exílio em SP. É importante registrar a alegria de rever amigos, sentir abraços e poder conversar intimamente. Conversar inclusive sobre o desejo de pesquisar o cansaço através do estudo da pós-performance[1].
Foi muito bom também conhecer trabalhos, peças que estrearam em 2018 e que eu não pude ver porque estava em SP. Foi uma temporada interessante com GLÓRIA, PROJETO MARAVILHAS, JORNADA, além de ÓPERA BRUTA. Eu agradeço esse abraço também.
Nem se eu quisesse eu poderia tentar elaborar aqui as experiências de encontro nesses outros trabalhos (GLÓRIA, PROJETO MARAVILHAS, JORNADA). Fiz uma escolha por ÓPERA BRUTA pela interseção do tema de pesquisa artística e a colaboração durante o processo. GLÓRIA, PROJETO MARAVILHAS e JORNADA são trabalhos muito intensos e complexos, que demandam aprofundamentos específicos, pelas suas densidades de temáticas e estratégias narrativas. Mas o que não está denso para a percepção hoje?
Já que estamos no pós-fácil, esse depois do fim, poderia arriscar algumas linhas sobre os finais dos trabalhos, quer dizer, de como as ideias dos finais de GLÓRIA, PROJETO MARAVILHAS e JORNADA podem apontar para esse pós-fácil, esse pós nada fácil que estamos experimentando agora.
Como terminar uma crítica? Finais são sempre difíceis. Muitas vezes nem são finais. Mas no teatro, como muitas vezes na vida, finais podem significar rompimentos. E rompimentos não são necessariamente ruins. De um modo ou de outro, precisamos mudar de espaço, tentar expandir. As portas se abrem, quando se abrem e você não precisa arrombar, as portas se abrem e você pode deixar o espaço e sair do teatro.
Geralmente todo mundo sai imediatamente logo depois do fim. Eu, às vezes, preciso ficar um pouco mais, olhando o vazio do palco, pleno de imaginação. Eu geralmente estou também retomando o fôlego, depois um encontro profundo, pelo menos para mim.
E, claro, o fim muitas vezes não quer dizer o fim. Tanto porque o fim às vezes veio primeiro. Mas também poque ele pode vir disfarçado de começo. Depois que acaba pode ser que aquela experiência continue reverberando e apontando novos inícios, outros encontros.
Mas eu poderia tentar falar de uma leitura sobre os finais de GLÓRIA, PROJETO MARAVILHAS e JORNADA. Obviamente precisamos tratar, primeiro, dessa carência de conclusão, essa demanda de elaboração do que não passou, esse vácuo do trabalho da memória que é simultâneo da chegada do fim antes do que a gente imaginava (o que pode e tem gerado muito medo, muita tristeza, muito ressentimento). Em um livro sobre a doença como metáfora, Susan Sontag observa sobre a epidemia que se abateu sobre o mundo em 1980: “A Aids é um dos arautos distópicos da aldeia global, aquele futuro que já chegou e ao mesmo tempo está sempre por vir e que ninguém sabe como recusar.”
Como terminar uma peça? Como se despedir? Como finalizar um encontro? Tem horário para fechar? Tem que acabar? Eu não sei. Mas em GLÓRIA, PROJETO MARAVILHAS e JORNADA, compartilhei essa sensação com algumas pessoas que eu conversei. Sim, são situações muito distintas para os três trabalhos, que são, entre sim, bastante diferentes. Eu começo a pensar, eu tento lembrar de como eu sai dos trabalhos e, claro, o que fiz depois, o que consegui fazer depois, além de voltar para casa e tentar dormir.
Eu acredito que, do ponto de vista narrativo, não sou uma pessoa sedenta de fechamentos, conclusões ou linearidades, até mesmo por trabalhar com a arte da performance e seus tempos dilatados. Talvez eu esteja me sentindo muito sozinha e aquele momento ali de encontro, de assembléia e de constrangimento mútuo do teatro seja muito importante para mim agora, na verdade, sempre foi. Então eu percebo os finais sim, eles são um grande movimento, não como encerramento de uma ou mais narrativas, mas principalmente como gesto, como jogo proposto pelo trabalho, como ambiente energético em que as pessoas saem, como elas deixam o espaço.
No teatro há esse código de aplauso que não existe necessariamente em outras linguagens artísticas. Eu percebo que para muitas pessoas, em vários sentidos, o aplauso é um alívio. Um signo de que aquela situação bem ou mal acabou e que poderemos todas(os) nos reunir de novo em um gesto único, muitas vezes automático, de aplaudir e/ou interagir com o celular. Sim, há esse novo alívio no aplauso, a liberação do celular, para quem conseguir ficar por 60 a 120 minutos sem olhar para a tela de seu smartphone.
Nem as interações mais imediatas propostas pelos finais ou como finais de PROJETO MARAVILHAS e JORNADA configuram garantias de retirar as pessoas de seus lugares, de suas cadeiras na platéia ou seus lugares de fala. Terminaremos todas(os) juntas(os) ou separadas(os)? Terminaremos sozinhas(os)? Sentimo-nos sozinhas(os) quando terminamos?
Acredito que do ponto de vista da dramaturgia, da performance, os finais são extremamente desafiadores. Há que articular a energia (ou não) para que as pessoas possam perceber uma indicação da finalização daquela situação da cena. E a gente pode até continuar conversando depois, aqui ou no bar, mas ali, no teatro, é preciso mostrar, dizer que acabou (ou não). Claro, sempre é possível sair de cena. Mas isso pode ter outros e difíceis significados no atual contexto político.
GLÓRIA, PROJETO MARAVILHAS e JORNADA propõem finalizações com códigos mais ou menos claros: é um blackout, um apagão de luz ou um gesto já anunciado anteriormente de que aquele momento estava mesmo para acabar. Talvez eu esteja com dificuldade de terminar por aqui também e por isso vou tentar ser mais breve. O que gostaria de perguntar é como a energia do fim é dispersada em cada trabalho.
Acho que quando um trabalho artístico como uma peça de teatro acaba (e não é só o teatro), quando o trabalho acaba, a responsabilidade daquele sensível segue com o público, segue com quem testemunhou aqueles gestos, palavras, presenças, memórias, entregas e encontros. Claro que segue com quem quer seguir partilhando o sensível. Não é, nunca foi uma experiência unânime entre as pessoas. Eu que geralmente imagino que quem sai de casa ou do trabalho para ver uma peça ou outra ação artística deve estar muito interessada(o) naquilo a ponto de prestar atenção e, quem sabe, até comentar depois consigo mesma(o) e/ou com outras pessoas sua impressões sobre aquele tipo de vivência, o que ela(ele) acha que aconteceu.
Eu sei que o teatro dificulta um pouco porque não pode fotografar ou filmar a peça com o celular. Eu acho isso ótimo. E então por isso também que eu imagino que pode ser, quem sabe, uma experiência em que a pessoa está realmente interessada. Até porque, muitas vezes, ela(ele) comprou ingresso, pagou para estar ali e isso conta muito, o bolso, a bolsa. Mas, afinal, GLÓRIA, PROJETO MARAVILHAS e JORNADA terminam? O que esses finais mobilizaram tanto em mim a ponto de eu me propor escrever sobre isso?
Talvez eu esteja resistindo aos finais, às ideias de fins, tantos fins que já temos que lidar, como aponto em outros momentos desse texto. Talvez eu esteja ainda mais sensível a eles, os fins, os fins que supostamente justificam os meios. Pronto, estou implicada mesmo com a ideia de fim. Ao mesmo tempo que algo acaba, outra coisa pode continuar. A memória resiste aos fins, tenta resistir. O que combinamos mesmo de fazer depois que tudo acabar?
Voltando aos trabalhos, acho bastante curiosa a diferença de textura entre os jogos propostos durante as cenas e as situações derradeiras, aquelas que anunciam o fim nas três peças. Me chamou muita atenção essa diferença, por vezes um contraste mesmo de emanação de energia, tipo de presença do elenco ou jogo de contato com a platéia entre quando chegou o fim e o que foi antes. Sim, isso pode ser uma estratégia, uma estratégia que é de esvaziamento (e não de corte ou saída, por exemplo). Eu entendo. Mas acredito que há outras maneiras de terminar. Há de se inventar outras maneiras, outros fins. É possível desejar o fim?
É possível desejar outros fins? É possível confiar no fim? O que esperar do fim? O que imaginar depois do final? Eu não sei, mas acho que o teatro, como uma linguagem em que essa ideia de encerramento fica tão evidente, no teatro é possível se ater a mais essa pergunta: como saímos juntas(os) de uma situação difícil?
Acho que GLÓRIA, PROJETO MARAVILHAS e JORNADA são potências vivas e fortes, que precisaram construir algumas possibilidades de final. Sim, são peças de teatro, precisam encontrar um fim para a apresentação, um fim para a cena. Mas isso não precisa significar que a gente não continue em cena.
Talvez não precisa indicar um fim, não sei. Talvez criar uma maneira de sair junto, de dividir os aplausos, de manter teso o arco da promessa. Talvez eu goste muito de finais e tenha uma expectativa grande com relação a eles, principalmente quando o durante foi tão profundo. Como criar espaço para as intensidades continuarem reverberando? Como fazer os poros permanecerem escancarados mesmo depois da peça e com o celular ligado? Como ouvir o que o público tem a dizer depois? Como lidar com o que ouvimos? O que o silêncio para além dos aplausos pode nos dizer? O que é ausência em teatro?
Agora estou finalizando mesmo e aproveito para agradecer ao HORIZONTE DA CENA, especialmente Luciana Romagnolli, por esse espaço, por esse convite, por essa acolhida. Estou faminta por espaços de encontro e percebo essa perspectiva também aqui.
[1] Mais informações sobre a pesquisa aqui.