– Por Julia Guimarães
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Crítica a partir do espetáculo King Kong Fran, de Rafaela Azevedo (RJ), visto no 3º Arranha-Céu – Festival de Circo Atual, em Brasília.
No livro de 10 anos do Horizonte da Cena que será lançado esta semana, comento sobre certo interesse recorrente em dialogar, nas minhas críticas, com obras que se apresentam para mim como um problema. Obras que tocam em certos lugares dissensuais das questões abordadas, nos chamados nós-cegos de um determinado assunto, geralmente atual. Que nos convidam a “experienciar o dilema”, como nomeou certa vez a diretora alemã Helgard Haug[1] a respeito de seu próprio trabalho. Criações que colocam em xeque a questão do “gosto”, justamente porque embaralham e complexificam o binarismo do juízo crítico reduzido às máximas do “gostei” ou “não gostei”.
Lidar, no âmbito da crítica, com essas obras, não é tarefa muito simples, justamente porque um dos principais desafios reside no ato de traduzir em palavras certos sentimentos difusos e contraditórios produzidos pela recepção desses trabalhos. No caso do espetáculo sobre o qual me proponho a refletir aqui hoje – o fenômeno de público King Kong Fran (2022), da artista Rafaela Azevedo, escrito e dirigido em parceria com Pedro Brício –, a proposta é delicada também pelos afetos intensos e, por vezes, polarizados que o espetáculo e a personagem Fran têm produzido, no teatro e na internet, sobre seu público.
Embora a montagem esteja em circulação pelo Brasil desde que estreou no fim de 2022 – lotando teatros (já foi vista por mais de 50 mil pessoas) e abrindo sessões extras por onde passa –, só tive a chance de assistir a King Kong Fran no fim do mês passado, em Brasília, dentro da programação do 3º Arranha-Céu – Festival de Circo Atual, no teatro Galpão Hugo Rodas/Espaço Cultural Renato Russo. Portanto, chego algum tempo depois de sua estreia para conversar com essa criação que tem furado várias bolhas e se inserido como fenômeno cultural complementar à performance de Fran no ambiente do Instagram e, mais recentemente, do YouTube.
Fotos de Sarah Leal
Ciente desse “delay”, comecei a pesquisa para essa crítica tentando entender o que já foi dito sobre King Kong Fran nesse período todo. Para além das entrevistas dadas pela própria atriz Rafaela Azevedo – que também é palhaça e nos convida a olhar o espetáculo e sua atuação sob essa chave – as críticas que pude levantar de algum modo apenas aludiam aos pontos polêmicos da montagem, sem discuti-los/problematiza-los, se limitando a elogiar a popular persona “Fran”, criada originalmente no Instagram e, posteriormente, levada ao teatro por meio de campanhas de financiamento coletivo.
Parto, portanto, da premissa de que uma recepção não muito fértil de King Kong Fran é aquela que apenas destaca suas qualidades sem considerar certa complexidade contextual que as atravessa. Dentre as várias polêmicas que a montagem potencialmente sugere, está aquela – que, de algum modo, tangencia a lógica das redes, dos algoritmos, da chamada “cultura da lacração” ou da “cultura do cancelamento” – voltada a denunciar a violência de gênero (mas também poderia ser de raça ou classe) sob a perspectiva estética e retórica da inversão de papéis: de oprimido a opressor.
Em cena, o alter ego de Rafaela Azevedo explora o imaginário do circo tradicional e da indústria do entretenimento para construir e apresentar a figura de Fran. Vestida como uma espécie de “mulher-gorila”, a personagem brinca de reinventar o clássico número circense. Nas entrelinhas dessa figura associada ao freak show, o lugar da aberração remete ao problema da normatividade de gênero, já que a mulher-gorila (ou barbada) é encarada como estranha e risível justamente por subverter, com sua profusão de pelos, certo padrão daquilo que é associado ao feminino. Aqui, porém, a famigerada mulher-gorila busca aterrorizar apenas uma fatia da plateia: os homens.
Portando um enorme dildo de borracha, com o qual Fran “entrevista” espectadores do sexo masculino, a protagonista faz de seu circo um show performático, interativo e metalinguístico, no qual costura uma série de outras referências culturais. Do clássico hollywoodiano King Kong à sérvia Marina Abramović, estrela icônica da arte da performance, passando pela trágica história da primeira mulher-gorila de que se tem notícia – a mexicana Julia Pastrana (1834-1860) –, a dramaturgia de King Kong Fran, ao expor seu processo de criação, propõe uma conversa mais direta com a plateia.
É, no entanto, por meio da interação com o público masculino que o espetáculo desenvolve suas cenas mais famosas e controversas. Recurso bastante comum no contexto de denúncias da opressão de gênero, a inversão de papéis pode ser pensada como um grande lugar-comum que depende, em larga medida, dos modos de sua construção estética para alcançar, uma vez mais, alguma dimensão crítica e, por que não dizer, ética. No espetáculo, três homens da plateia são tratados como objetos sexuais de Fran. Enquanto examina, em cada um, se a roupa está provocativa ou se vieram para o teatro com a “mala” devidamente “marcando” (conduta estimulada pela performer), a protagonista os coage a realizar ações potencialmente constrangedoras, por exemplo, convidando-os a se tocarem e se beijarem de forma sensual, numa inversão do clássico fetiche masculino com a bissexualidade feminina. Em outra cena, a humorista parodia o famoso número circense da mulher e o atirador de facas, desta vez tendo um homem da plateia seminu como alvo.
O lugar da mulher no circo, aliás, é abordado na dramaturgia da peça como um emblema bastante significativo para aludir à posição do feminino na sociedade em geral. De um lado, temos um protótipo circense da mulher sensual e objetificada, cujo corpo surge constantemente exposto ao risco, como nos casos da já citada mulher do atirador de facas, da assistente “partida ao meio” pela caixa mágica, da contorcionista ou da equilibrista. De outro, a mulher-aberração (gorila ou barbada), condenada ao escárnio, como dito antes, por desviar-se das normativas de gênero.
Entre esses dois polos, Fran assume o papel historicamente vetado pela tradição do circo às mulheres: a figura do palhaço. Responsável por fazer rir através da subversão das habituais relações de poder, a fim de ridicularizar justamente aqueles que possuem o status mais alto, o palhaço é, de fato, um mediador excepcional para brincar com inversões de gênero. No caso de King Kong Fran, essa construção de uma persona feminina que é, simultaneamente, uma aberração do circo e alguém responsável por agenciar o riso da plateia – ao mesmo tempo em que escancara sua sexualidade e seu desejo de forma explícita, despudorada – faz com que a figura de Fran funcione, na obra, como um poderoso contradispositivo, responsável por implodir e desarmar (ou, na linguagem filosófica, profanar) a lógica patriarcal de controle dos corpos e dos gêneros.
No entanto, como ocorre em toda inversão (especialmente aquelas que flertam com limites morais e éticos, como é o caso de King Kong Fran ) há sempre o risco de que a premissa de se valer das mesmas armas (e princípios) presentes nos dispositivos de opressão acabe por esvaziar o potencial crítico dessa inversão, ao operar sob semelhante gramática opressora. Ciente desses territórios movediços, a crítica ao mecanismo da inversão surge antecipada na dramaturgia pela própria palhaça, em diferentes passagens da peça: “Aaahh, porque a Fran é misândrica”, “ah, a Fran tá objetificando o rapaz”, comenta, ironicamente.
De fato, boa parte do incômodo e de certo mal-estar que o espetáculo suscitou em mim como espectadora tem a ver com os afetos projetados sobre a plateia feminina, quando somos convidadas a rir e a nos deleitarmos com o constrangimento desses participantes, agora objetificados. Esse lugar de risco e radicalidade, que faz parte de certo repertório tanto da estética clownesca quanto da arte da performance, é o que também nos estimula a reagir, autorreflexivamente, sobre o próprio lugar que ocupamos com nossa reação. Pois ao mesmo tempo em que ri do ridículo a que os escolhidos da plateia são submetidos, também me perguntei, em chave dialética, sobre a legitimidade desse riso.
Trata-se de um humor que surge, de algum modo, ‘protegido’ pelo enquadramento teatral (ou seja, lido como ação que não deve ser tomada em sua literalidade, mas inserida em um contexto artístico), ao mesmo tempo em que o caráter performático da obra, em sua interação com a plateia, acaba por embaralhar os limites entre arte e vida, realidade e ficção e, assim, intensificar as problematizações éticas e morais do trabalho.
Em um contexto social em que a cultura do cancelamento incentiva, de fato, atos de constrangimento e linchamento moral nas redes (como forma de inverter seculares relações entre oprimidos e opressores) ou a produção incessante de críticas simplistas, apressadas, taxativas (ou, no jargão corrente, lacratórias); no qual a performance (e seus efeitos sob a forma de “curtidas”, engajamento e, no limite, monetização) interessa mais do que a discussão em si, parece importante perguntar-se, mais de uma vez, em que medida os lugares de “terror” e “constrangimento” presentes no espetáculo King Kong Fran conseguem de fato subverter – e não apenas reiterar – os lugares-comuns da violência de gênero.
Nesse sentido, tendo a concordar com a própria atriz Rafaela Azevedo, quando ela defende a necessidade de um certo “direito à violência”, por parte das mulheres, ao menos no plano simbólico. Trata-se de um ato que pode ser lido como um modo de lidar com o peso de violências seculares, a partir da descoberta de outras possibilidades para se narrar e elaborar determinados lugares traumáticos. A considerar os efeitos produzidos pela palhaçaria perversa e radical da personagem Fran (e, nesse sentido, quase próxima a de um bufão), é possível enxergar neles uma dimensão, de fato, catártica. E, ao que parece, a catarse vincula-se justamente a certa mescla de liberação de energias e afetos poucas vezes associadas à condição feminina.
Teatro x Instagram
“A primeira vez que vi a Fran no Instagram não entendi. Me irritou. Voltei. Vi de novo. Gostei. De novo não gostei. E isso me fez gostar. Ela me incomodou. Falou a partir de um lugar que eu não acessava, não reconhecia em meu arquivo”, comenta a poeta, filósofa e psicanalista Viviane Mosé, no posfácio da edição da dramaturgia da obra publicada no ano passado pela editora Cobogó.
Embora teatro e Instagram sejam territórios muito distintos de atuação da personagem Fran (como será comentado abaixo), me identifico com a recepção de Mosé por concordar que essa fruição ambígua e incômoda é o que mais interessa na obra, pois logra renovar o campo reflexivo mesmo diante de um assunto (a opressão de gênero) que, de tão onipresente na esfera pública brasileira da última década, passou a ser tratado, em muitos contextos, de forma repetitiva, banalizada e, por isso mesmo, com baixo potencial de estímulo ao pensamento e aos afetos.
Em chave oposta, ao funcionar como uma espécie de “estética do limite ultrapassado” (Ardenne, 2006)[2], King Kong Fran se apresenta como forma cênica que logra renovar a mirada – e aprofundar-se – na desnaturalização das violências mais sutis de gênero. Ou, em diálogo com a escritora e artista visual brasileira Jota Mombaça, em seu provocativo convite a redistribuir a violência histórica, colonial e patriarcal aos quais corpos femininos, negros e trans foram secularmente submetidos, é possível projetar sobre King Kong Fran a seguinte pergunta: “Que tipo de ética devemos elaborar para abraçar a nossa própria violência sem com isso reestruturar o design global de pura violência contra o qual nos mobilizamos?” (Mombaça, 2016, p. 14).
Para dialogar com a pergunta de Mombaça, me parece interessante analisar os enquadramentos, sentidos e efeitos do jogo de inversões da personagem Fran no Instagram e no teatro. Ainda que não seja possível aprofundar-se na análise do Instagram (o que demandaria um novo texto), vale dizer que o próprio desenho da plataforma se alimenta de um engajamento gerado na lógica do amor e do ódio. A própria “narrativa” de Fran presente em sua página se alimenta disso, ao chamar, por exemplo, seu espaço de “igreja” (com seus “mandamentos” e seguidoras “fieis”), ou ao fazer humor com questões masculinas relacionadas à idade e, portanto, lidas como “etaristas” (por exemplo, com a calvice e/ou a dificuldade de ereção).
Trata-se de provocações que, a despeito do caráter explicitamente irônico e hiperbólico com que são proferidas na rede, acabam por gerar, com frequência, reações baseadas em recepções literais e descontextualizadas do conteúdo ali produzido. De fato, ao ler comentários de perfis do sexo masculino que reagem ofendidos às máximas de Fran no Instagram, há, em alguns casos, tamanha misoginia e violência simbólica presente nas frases, que o caráter hiperbólico da inversão de gênero explorado por Fran torna-se, diante daquelas reações, um procedimento quase realista. No entanto, esse território difuso entre a “brincadeira”, a “ficção”, a “realidade” e o “jogo” de violências mútuas que, no fim, estão condicionados a questões de engajamento nas redes, não colabora muito, a meu ver, para que tais discussões consigam de fato transcender as limitações do meio.
Já no teatro, o fato de a peça acontecer numa situação de copresença, em que corpos devem lidar com interações realizadas in loco e ao vivo, faz com que a equação entre contextos, sentidos e efeitos seja bem diferente daquela presente na plataforma do Instagram. Aqui, a dimensão de jogo e o emolduramento cênico acabam por redimensionar também o aspecto ético de seus significados e consequências, uma vez que há, no teatro, margem para alguma “distância” possível, alguma mediação; aspecto este que, por sua vez, colabora para intensificar o caráter reflexivo da proposta. Trata-se de uma bem-vinda distância que se dilui quase completamente na temporalidade acelerada de uma plataforma como o Instagram, na qual o imperativo da reação imediata é, muitas vezes, o que favorece os ruídos, leituras apressadas e literais, do jogo de inversões presentes na página de Fran.
Soma-se a isso algumas importantes contribuições da própria dramaturgia do espetáculo, especialmente nos momentos finais do espetáculo (e, a partir daqui, trago um alerta de spoiler). No teatro, os contornos éticos relacionados à inversão de papéis surgem atravessados por, pelo menos, duas ações complementares. A primeira é o depoimento de Fran/Rafaela sobre o estupro sofrido pela atriz, aos 18 anos, por um médico, em sua própria clínica. Fran/Rafaela nos conta do episódio precisamente na cena do espetáculo em que se questiona – e leva esse questionamento também à plateia – se deveria “enrabar”, com seu imenso dildo, um dos espectadores escolhidos para a interação e, assim, “vingar-se” da violência sofrida na juventude. O encerramento do espetáculo ocorre, na sequência, com a “decisão” de Fran de não levar a cabo a ação justamente por considerar o espetáculo sua melhor “vingança”. Uma ação simbólica, artística, vinculada à elaboração do trauma vivido, que expressa uma recusa que diz respeito aos limites éticos (de fato, existentes) quanto ao seu próprio jogo de inversões.
Trata-se de um desfecho que surge complementado pela icônica imagem final da artista vestindo uma calcinha que lança luzes de raio laser sobre a plateia. Do dildo à vulva, as imagens construídas em King Kong Fran não deixam dúvidas quanto ao teor das questões de fundo do espetáculo, que dizem respeito a um necessário reposicionamento das relações de poder, aqui viabilizado pela linguagem teatral.
No limite, é possível pensar essa espécie de terrorismo freak-cômico-poético do espetáculo como manifestação de uma certa autodefesa diante do peso e do terror das tantas história de violência de gênero vividas diariamente por mulheres de todo o mundo (e especialmente por mulheres brasileiras, sobretudo na mesma semana em que o Congresso Nacional discute o indigesto Projeto de Lei 1904/24, também conhecido como “PL do estuprador”, que equipara a interrupção da gravidez fruto de estupro ao homicídio).
Em outras palavras, é exatamente pelo que poderíamos chamar de autonomia artística, que a violência, dentro do teatro, tem o potencial de funcionar como poderoso mecanismo simultaneamente catártico, dialético e emancipatório, rumo a uma liberdade cada vez maior por parte de nós, mulheres, em nossa própria autonomia sobre os papeis que desejamos performar.
Referências:
ARDENNE, Paul. Extrême: Esthétiques de la limite dépassée. Paris: Flammarion, 2006.
AZEVEDO, Rafaela; BRÍCIO, Pedro. King Kong Fran. Rio de Janeiro: Editora Cobogó (Edição do Kindle), 2023.
MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. Oficina de Imaginação Política. In: FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO, 2016. Disponível em: < https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi/19>. Acesso em: 14 jun. 2024.
[1] Helgard Haug é uma das diretoras do coletivo alemão Rimini Protokoll, especialista em teatro documentário. Fonte: https://mitsp.org/2016/1015-2/
[2] Na teoria de Ardenne, a chamada “estética do limite ultrapassado” seria aquela responsável por ultrapassar e transgredir determinados marcos artísticos e culturais – seja no campo da representação ou dos comportamentos.