– Por Guilherme Diniz
Mais uma noite do Festival Cenas Curtas. É possível ler os acontecimentos por inumeráveis óticas, apontando conexões, similitudes, particularidades, concordâncias e discordâncias temáticas, formais, político-ideológicas etc. A riqueza deste festival, ao conjugar tantos universos distintos, é a abertura de caminhos possíveis para acessar e debater os caminhos curatoriais (tópico de uma das cenas!). Escolho, nestas breves linhas premidas pelo reduzido tempo do Calor da Cena, destacar um fato constatável nas cenas e fora delas: as vivas presenças trans, em suas pluralidades, na paisagem do Galpão Cine Horto. Os teatros e seus sentidos têm sido repensados, disputados e redimensionados, há muito por estas corporeidades, vivências e pensamentos. Possibilidades dramatúrgicas, visuais, performáticas e relacionais se desdobram a partir de tantas transgeneridades que, habitando cada vez mais o Festival, o remodela, ampliando públicos, profissionais e modos estéticos de viver os teatros.
Cena 1: Apocalípticas curadorias
Leitura de Portfólio, investida de inclementes ironias, mira em um dos elementos mais contraditórios de uma expressiva parte do circuito contemporâneo das artes: os espúrios jogos de poder político-econômicos presentes em certos processos curatoriais, incluindo, acima de tudo, a arbitrariedade de critérios de seleção que, no fundo, atendem a interesses mercadológicos, midiáticos e consumistas. Quem possui o poder de decisão? A quem pertence a palavra final? A partir de quais perspectivas? De que modo os personalismos, as vaidades e as relações hierarquizadas estruturam instâncias curatoriais? Nesse sentido, a cena instiga-nos a repensar os dilemas estéticos e éticos das curadorias, evidenciando o caráter ideológico de noções, aparentemente neutras, tais como qualidade artística ou originalidade, isto é, termos bastante presentes em editais e nos mais corriqueiros juízos de valor.
No trabalho, idealizado pelo TeAto do Amanhã, presenciamos a reunião de três importantes pareceristas responsáveis por escolher os afortunados artistas que irão integrar a próxima exposição de uma reputada galeria. A tal leitura, referida no título da cena, é uma mera e distante formalidade. Sobre a mesa de decisões, entre brindes e gargalhadas, desfilam cinismos, leviandades e conservadorismos que, em síntese, apenas reafirmam a posição de privilégio ocupada por aquelas pessoas. Ninguém lê nada. As determinações levam em conta, sobretudo, modismos, gostos pessoais e a escorregadia lógica do tokenismo. A cena carrega no escárnio ao desenhar personalidades a um só tempo ridículas e violentas, displicentes e estúpidas. Além disso, problematiza as sedutoras artimanhas empregadas por entidades e eventos artístico-culturais em que a exploração comercial das representatividades se converte em moeda de troca para um sistema econômico ávido por transformar pautas, nomes e lutas em mercadorias inéditas.
Pelo menos para mim, a cena, quiçá indiretamente, deixa algumas perguntas suspensas no ar: diante desse estado de coisas qual é o papel político e coletivo da classe artística? Aceitar ou rejeitar (e de que maneira?) as regras do jogo? Uma artista vultosa como Jota Mombaça, por exemplo, há muito observa a postura de uma parcela considerável do sistema artístico: de um lado a criação de espaços de visibilidade e discussão antirracistas, do outro a apropriação (não raro consumista) das inventividades negras. A performer, portanto, articula seus modos próprios de agir nas frestas, nos interstícios, sem deixar de questionar as contradições dessas estruturas. Ainda nesta senda, penso: quais possibilidades outras de curadoria podemos, ainda, reinventar? O horizonte alinhavado por Leitura de Portfólio apresenta somente um beco sem saída ou dá margens para retraçarmos rotas?
Cena 2: Moventes encruzilhadas de uma vida em expansão
Em Ü Menine acompanhamos, por entre breves quadros, os anseios, as alegrias, as pequenas e as grandes aventuras de uma pessoa, acima de tudo, desejante. Em cena, Black Rose reelabora as vivências e as aspirações, tanto pessoais quanto coletivas, de existências que transbordam os binarismos de gênero historicamente impostos. Elu se aproxima de uma energia brincante e lúdica, almejando driblar, como no futebol, essencialismos, expectativas e determinações sexistas que, de uma forma ou de outra, insistem em aniquilar suas múltiplas e variáveis possibilidades de viver, tentam, diuturnamente, minar sua capacidade de pintar futuros. Nesta conjuntura, Black Rose não deixa de questionar as violências transfóbicas que lhe atravessam, porém, sua presença reafirma, sem titubear, a necessidade de nutrirmos os sonhos, isto é, aquilo que ainda pode vir a ser, o indeterminado, os projetos fabulados para muito além da nossa realidade aprisionadora.
A concepção cênica reverencia o saber dos terreiros, evoca o axé que se materializa no cotidiano, realçando, destacadamente, a simbologia dinâmica de Exu, o senhor das encruzilhadas. Esta escolha, pelo menos a priori, pode gerar experimentações bastante potentes, posto que este é um orixá por excelência múltiplo, ambivalente, disparador de sentidos plurais. Ora, Leda Maria Martins nos ensina que Exu “é jogo, é signo, é estrutura”, e, sendo um movente mediador entre planos, espaços e tempos distintos, a sua atuação instaura processos de transformação que desloca entendimentos normativos e reducionistas. Exu não é isto ou aquilo, mas situa-se no entre, nos interstícios, nos movimentos entre dimensões diferentes. Em termos performáticos, tal orixá, como fundamento filosófico, pode apresentar chaves de leitura instigantes para a concepção cênica e para as reflexões construídas pelo trabalho cênico de Black Rose.
A cena nem sempre apresenta uma estrutura dramatúrgica e espetacular capaz de articular, em uma composição firme e fluida, os variados fragmentos, narrativas e deslocamentos pelo espaço. Nesse contexto, a atitude brincante de Black por vezes mostra-se menos vívida. De todo modo, o experimento dá-nos uma singela lufada de delicadeza e de frescor. No fim, ouvimos ruídos que aludem a tiroteios. A brutalidade contra vidas negras e trans, como a delu, infelizmente se avizinha. Mas não é sobre isso. É, uma vez mais, sobre sonhos. O teatro como um espaço de reinvenção sensível da vida. As balas não são de chumbo, mas são guloseimas doces e coloridas. Abre-se a possibilidade para festejar a existência. E este não é um gesto somente individual, mas também coletivo. Então, várias pessoas adentram o palco e lançam os doces para o público. Uma fugaz brincadeira se estabelece. É tempo de viver!
Cena 3: Imprevisíveis amores
A terceira cena da noite, Obrigado, Deus, por menos um dia de vida, me pareceu, no primeiro momento, a mais difícil de adentrar. Muito pouco ouvi da fala proferida por Nadja Kaikai, em virtude, principalmente, do baixo volume de sua voz. Somado a isso, o desenho de luz, marcado por uma vasta penumbra, também na primeira parte da cena, não potencializou, de modo mais preciso, a construção de uma atmosfera ou o delineamento de uma situação mais específicas. Por um bom tempo permaneci desorientado, tentando compreender o que exatamente estava a ser proposto. Uma intensa conversa ao telefone, entrecortada por apartes e comentários, é o que a encenação apresenta. Quem fala o que para quem? Por vezes surge uma indiscernível tensão, contra-argumentos, incompreensões… Mas, de fato, o desenho cênico não conseguiu evidenciar, concretamente, o contexto do diálogo inicial.
A segunda parte da cena já se mostrou ligeiramente mais apreensível. A artista dirige-se ao público e, ao que tudo indica, convida alguém para um encontro. Uma pessoa corresponde, pronta e decididamente, ao flerte, aceita o convite e, ainda por cima, retribui, com visível doçura, as carícias. A interação foi surpreendentemente viva, contudo não me parece que Nadja Kaikai tenha construído bem, do ponto de vista dramatúrgico, este diálogo tão direta com os espectadores. Tudo me pareceu um tanto abrupto, imediato, sem um desenvolvimento mais cuidadoso. De toda forma, a sua interlocutora (as coisas já teriam sido combinadas previamente?) embarcou de peito aberto na proposta, brindando-nos com respostas ágeis, irreverentes, sagazes.
O que há de mais palpitante na cena é o modo imprevisível, um pouquinho acidentado, pelo qual um encontro se erige. Destes esbarrões da vida, destas faíscas eventuais que, de repente, surgem. Há sempre algo de fortuito e inopinado no surgimento do amor, uma dimensão que, a despeito de todas as discussões, permanece incalculável. Qual ideia de amor faz mais sentido para Nadja? A convencional e burguesa imagem do amor, repleta de idealizações, apresenta possibilidades concretas para todos os corpos e corpas? Portanto quais amorosidades queremos, ela e nós, ainda inventar? Aí talvez a cena possa aprofundar melhor seus anseios artísticos, desenhando, com mais precisão, suas zonas de interesse, suas atmosferas e, sobretudo, suas relações desejantes com o público.
Cena 4: Explosivas confidências
A socióloga e professora Patricia Hill Collins, uma das vozes mais expressivas da intelectualidade negra dos Estados Unidos, discute, em seu antológico artigo Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro, a ambígua situação de marginalidade e de inserção encarada historicamente por mulheres negras em distintas esferas da vida social. A pesquisadora sustenta que as mulheres negras ao mesmo tempo em que integram certas instituições, recintos e espaços de poder não são vistas de modo igualitário, humanizado e digno. O exemplo mais emblemático, para Collins, é a trajetória das empregadas domésticas que trabalham por anos a fio em casas de família, residem, muitas vezes, em ambientes luxuosos, mas sentem, a todo momento, as hierarquizações, as demarcações espaciais, as subalternizações sutis e ostensivas. Diz Collins: “essas mesmas mulheres negras sabiam que elas jamais pertenceriam a suas ‘famílias’ brancas.” Porém, ao estarem dentro desses recintos elas têm a possibilidade de observar, a partir de uma perspectiva outra, crítica, externa, os discursos meritocráticos, as contradições éticas e ideológicas da branquitude, os privilégios raciais e político-econômicas das classes dominantes, etc. Tais mulheres encarnam, pois assim, pontos de vista desconfiados que, em alguma medida, desmistificam e desnaturalizam as relações de poder.
Instantaneamente o pensamento de Hill Collins me atravessa ao assistir à Segredinhos, o último trabalho da noite. Em cena, a atriz Ana Elisa Gonçalves dá vida a uma empregada doméstica, refletindo sobre as explorações trabalhistas e psicofísicas, os constrangimentos e os abusos impingidos a inumeráveis profissionais, majoritariamente negras, postas, forçadamente, neste ofício devido às sistemáticas desigualdades sociorraciais. As ocorrências de dor e tristeza inescapavelmente surgem em suas recordações. Ao lado disso, a personagem confidencia conosco alguns espinhosos detalhes da intimidade dos patrões, seus conflitos, suas hipocrisias e prejulgamentos. Pouco a pouco a dramaturgia acentua uma perspectiva crítica diante dos abismos naturalizados na realidade brasileira. Munida de vívida irreverência, Ana Elisa também mostra-se irônica e divertida, convida-nos a rir de certos maneirismos afetados dos ricos, experimenta, furtivamente, a geleia e o perfume da patroa, encarando debochadamente as discriminatórias estruturas de poder. Na gargalhada sonora daquela figura desponta uma vitalidade que não esmorece, não cede a fatalismos mesmo diante de um sistema truculento. O seu humor expansivo não está, do mesmo modo, desconectado de uma compreensão politizada. A luta por melhores condições laborais surge, convictamente, em seu discurso.
Há momentos em que os contornos cênicos e dramatúrgicos parecem resvalar mais fortemente na representação um tanto convencional, um tanto estereotípicas das empregadas domésticas negras (imagem explorada fartamente na teledramaturgia, por exemplo), mas Ana Elisa dá saltos inventivos especialmente ao delinear os desejos, as fantasias e as aspirações daquela figura. Ela também possui seus segredinhos, mistérios e particularidades só dela. Estes instantes não apenas complexificam a personagem, mas aprofunda suas complexidades subjetivas. Ainda assim ficamos com a vontade de conhecer mais os sonhos dessa mulher. Quais seriam os seus projetos de vida? Quais estratégias ela possui para realizar, entre as frestas, seus prazeres?
Já na derradeira parte da cena, a personagem retira a peruca de madeixas lisas e revela seus cabelos crespos, pulsantes, vivos, bem juntinhos no ori. E aí ela canta, solta a voz, deliciando-se no seu próprio tempo, um momento de deleite que dá outro tônus, outra significação para a sua vida. Estas potências de vida conferem uma dimensão sensível, renovada potente para a pesquisa estético-política de Ana Elisa. Para terminar, inspirado pela cena, lembro-me dos insubmissos versos da poeta Cristiane Sobral que diz:
“Não vou mais lavar os pratos. Nem limpar a poeira dos móveis. Sinto muito.
Comecei a ler.
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi. Não levo mais o lixo para a lixeira.
Nem arrumo mais a bagunça das folhas no quintal. Sinto muito.
Depois de ler percebi a estética dos pratos, a estética dos traços, a ética, a estática. Olho minhas mãos bem mais macias que antes e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.
Agora sinto qualquer coisa. Não vou mais lavar os tapetes. Tenho os olhos rasos d’água.
Sinto muito. Agora que comecei a ler quero entender o por quê, por que e o por quê. Existem coisas. Eu li,e li, e li… Eu até sorri e deixei o feijão queimar.
E olha que feijão sempre demora para ficar pronto…Considere que os tempos agora são outros…Ah, esqueci de dizer: não vou mais.
Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco. Você nem me espere, você nem me chame.
Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que entendi, você foi o que passou. Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto.
Desalfabetizou.
Não vou mais lavar as coisas e encobrir as sujeiras inteiras, nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para ali e de lá para cá.
Desinfetarei minhas mãos.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Sendo assim não lavo mais nada e olho a poeira no fundo do copo. Vejo que sempre chega o momento de sacudir, de investir, de traduzir. Não lavo mais os pratos.
Li a assinatura de minha lei áurea.
Escrita em negro maiúsculo, em letras tamanho 18, espaço duplo. Aboli.
Não lavo mais os pratos.
Quero travessas de prata, cozinha de luxo e jóias de ouro. Legítimas.
Está decretada a Lei Áurea.”