Se as atrizes reais representam atrizes sem público, nós, público real, representamos nossa própria ausência, o que nos faz refletir sobre nossa condição de espectador (ou simulacro de), e, ainda mais, nosso lugar como consumidor de arte. Vivemos em uma democracia, o que no mundo capitalista se resume à liberdade de consumo: podemos escolher não ir ao teatro, ao museu, à exposição, à livraria, que competem de igual com um shopping (há teatros em shoppings, inclusive). As pessoas trabalham muito, ganham pouco, e precisam gastar seu dinheiro naquilo que realmente consideram atrativo e prazeroso. Neste mercadão, o artista precisa fabricar suas vitrines, seus pódios, seus rankings, a fim de tornar seu produto atraente, legitimar sua importância, criar as iscas para pescar público, patrocinador, curador e crítico. E se por sorte e muito marketing, atinge o “sucesso” e causa a idolatria, desafio maior é se manter, pois este canhão de luz não é um canhão seguidor.
Fotos: Anaís Della Croce
Por Marcos Coletta
Eu sou um artista. Eu sou um artista de teatro. Eu sou um artista de teatro no Brasil. Eu sou um artista de teatro no Brasil tentando produzir minha arte de alguma forma digna. E por isso eu desejo: espaço para trabalhar, tempo disponível, parceiros interessados, dinheiro para financiar minha produção, dinheiro para pagar o meu trabalho e o trabalho da minha equipe, alguma divulgação da imprensa, algum reconhecimento da crítica, público espontâneo, pelo menos meia casa todos os dias, e, claro, liberdade criativa. Parece óbvio, elementar mas, infelizmente, sou visto como um exigente, um ganancioso. “Não reclame, você já tem o privilégio de fazer o que gosta em um país com 8 milhões de miseráveis”.
Eu sou um jovem artista. Um estudante de teatro. E quando eu me formo, ultrapasso os muros da escola para enfrentar um “mercado de trabalho” um tanto quanto sombrio e indefinido. De imediato me deparo com dois caminhos quase sempre opostos: o do teatro de grupo, influenciado pelas trajetórias de uma dúzia de companhias longevas e sólidas espalhados pelo Brasil; ou o das produções de elenco, onde posso ter a sorte de emplacar um espetáculo em cartaz ad infinitum, abrir minha própria produtora ou conquistar um papel de destaque na TV. E no meio destas duas sombras tem os testes de comercial, as animações de festa, teatro empresarial, dublagem, stand-upem bar… E, claro, há também a carreira acadêmica. Ah, a Academia… Não importa, estou atrás de dignidade, na sombra ou no sol, no palco, na rua, no espaço alternativo, no estúdio, no salão de festas, no salão da igreja, na sala de aula, ou na sala da minha casa recebendo os direitos autorais pelas minhas criações. O artista não é necessariamente um ser especial, mas no fundo do seu coração ainda habita aquele velho modelo romântico do gênio criativo e incompreendido, que precisa conviver com o conceito contemporâneo do artista empreendedor/gestor/lobista. É a partir destas e de outras angústias que acompanham toda a vida do artista, que as atrizes Fabiana Brasil, Cristina Ladeira, Mariana Teixeira e Patrícia Teles (também diretora), integrantes do Coletivo NU, criaram a cena curta “Nem o Pipoqueiro” em 2011, que agora se transformou em peça longa e pôde ser vista no Festival Cena Espetáculo do Galpão Cine Horto. (Aliás, vale comentar o peso do Festival de Cenas Curtas do Cine Horto como incubadora de grupos e coletivos teatrais em Belo Horizonte, o que já se tornou uma tradição, uma grande aposta para tantos jovens artistas).
O espetáculo tem como mote o fracasso de uma apresentação teatral em que ninguém apareceu para assistir, nem o pipoqueiro. Nos cinco minutos iniciais vemos três atrizes seminuas e imóveis tentando sustentar uma falsa postura cênica, esperando que alguém apareça. Tais figuras já deixam clara a alusão à arte transformada em vedete da sociedade espetacular. Durante a espera e diante da constatação de que aquilo é um fracasso, as atrizes desconstroem suas imagens artificiais e iniciam uma série de comentários e questionamentos bem humorados sobre o ofício. Qualquer sugestão ficcional iniciada é rompida para acompanharmos um jogo de representação performático e metalinguístico, em que as atrizes são as personagens e vice-versa. As entradas frequentes da diretora Patrícia Teles como “Diretora” frisam ainda mais a estética e o discurso proposto. Por trás de uma comédia aparentemente inofensiva, se pretende uma discussão sobre a posição da arte e do artista na sociedade contemporânea afinada ao conceito de “Indústria Cultural” (ADORNO).
Muitos torcem o nariz para espetáculos metateatrais que abordam a dificuldade em se fazer teatro, e os rotulam, quando sérios, de vitimistas ou autoindulgentes, e quando cômicos, de um truque superficial e batido de identificação a partir de clichês e rótulos. Mas, no caso de “Nem o Pipoqueiro”, a ironia e a busca por um humor mais refinado, causa mais um efeito crítico e reflexivo, sem abrir mão do divertimento. As três atrizes (e a diretora) proporcionam cenas quase autobiográficas, no entanto, não caem no ranço contemporâneo e puramente formal do depoimento pessoal. Não é um espetáculo sobre suas próprias figuras, mas sobre desejos e fracassos, ou sobre como um sonho inocente de criança se transforma em um jogo perverso a troco do reconhecimento, ou sobre o desencantamento do mundo, ou a visão poética da vida versus a realidade que nos violenta e nos obriga a fazer o que nem sempre queremos. As atrizes falam sobre os motivos pelos quais estão ali, relembram seus sonhos de criança em ser famosa, criam pequenas querelas sobre a arte engajada versus o entretenimento vazio, satirizam prêmios teatrais, patrocínios, veículos de comunicação, e trazem à tona a ideia distorcida de que o que é “bom” merece fama, e que só este tipo de reconhecimento sustenta a qualidade de um trabalho artístico. Neste sentido, a cena “Como ser uma boa atriz em um sistema capitalista de emoções efêmeras da sociedade do espetáculo? Ou… como comover o espectador?” é alegoria perspicaz das contradições absurdas vividas pelo artista contemporâneo, e traz consigo todo um debate sobre a crise do teatro na cultura contemporânea espetacularizada, sua utilidade, sua pertinência, sua impopularidade, suas táticas de guerra em uma sociedade hiper-real, em que o simulacro deixou de ser apenas uma falsa representação de algo, para substituir legitimamente este algo. Um mundo organizado em torno da simulação (BAUDRILLARD).
O totem de papelão em tamanho real das atrizes, que chega a substitui-las em cena, sugere mais uma vez o simulacro e a reificação da figura do artista, sua “coisificação”. Ao mesmo tempo, o papelão expõe a fragilidade e a precariedade de uma aparência perecível. A situação e o ambiente decadentes armados e escancarados pela peça deixam patente nosso projeto falido de cultura, e comprova a “falsidade do real”, pois “num mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso” (DEBORD). Todo o tratamento intencionalmente amador e trash dado à cena é um contraste ao “valor de exposição” (BENJAMIN) que nossa cultura capitalista exige de uma obra de arte ‘bem sucedida’. Assim, ao mesmo tempo em que as ‘atrizes fictícias’ buscam sua inserção alienada na indústria cultural, as ‘atrizes verdadeiras’ oferecem ao público um elogio à subjetividade contra a função do mero objeto.
Vale citar ainda as inserções muito acertadas de vídeos que complementam a cena e dialogam com a realidade. Como na montagem de trechos de falas de artistas consagrados como Fernanda Montenegro e Maria Bethânia sobre a arte, em uma colagem de efeito contraditório e dialético. Ou no vídeo final em que elogios de artistas famosos de televisão usados como estratégia de marketing de espetáculos teatrais são montados de forma a fazer falsa referência à peça.
“Nem o pipoqueiro” não ganha o Prêmio Shell, nem estampa a capa da Bravo. Pelo contrário, nos seduz com humor e lingerie para justamente repensar a importância disso tudo.
27 de março de 2013.
Referências:
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas.
BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulações.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo.