— por Julia Guimarães —
Crítica de “15th Extraordinary Congress – Lisbon”, de Vlatka Horvat (Croácia).
Como analisar acontecimentos que estão no meio do caminho entre uma prática artística e uma atividade social? Como refletir sobre uma experiência performativa na qual os participantes, não necessariamente artistas, variam de acordo com a cidade onde o trabalho é apresentado? E qual o potencial do teatro para fazer contrastar certa História oficial com histórias subjetivas e cotidianas, narradas “cara a cara” com o espectador?
Essas são algumas questões que surgem nas entrelinhas de 15th Extraordinary Congress – Lisbon, criado pela artista croata Vlatka Horvat e apresentado em outubro no Espaço Alkantara, em Lisboa, como parte da programação do Teatro Maria Matos. Atualmente em turnê pela Europa, o trabalho se pauta pela combinação de dois formatos que têm gerado potentes desdobramentos nas práticas cênicas atuais: a performance-palestra, que mescla essas duas formas; e o city-specific, termo usado para criações que trabalham com moradores das cidades/regiões onde são apresentadas.
No caso de 15th Extraordinary Congress, os habitantes convidados são sempre mulheres que, assim como Vlatka, nasceram na antiga Iugoslávia e atualmente vivem fora dos países formados depois da separação do território. O próprio título do trabalho faz referência ao 14º e derradeiro Congresso Extraordinário, realizado em 1990 pela Liga dos Comunistas da Iugoslávia, que resultou no desmantelamento do país. Em comum, são mulheres de gerações próximas que testemunham a experiência da diáspora e de serem “órfãs” de uma nação apagada do mapa.
Reunidas em uma mesa de frente para o público, as participantes (em Lisboa, eram sete) falam durante quatro horas sobre suas próprias vivências, entrelaçadas com informações e fatos do país. Em contraponto à “narrativa oficial” que a intertextualidade do título pode sugerir, o que aparece em cena são relatos pautados pela subjetividade e a dimensão biográfica da experiência. Olhares sobre um passado e uma noção de mundo que em parte desapareceu com a redivisão das fronteiras.
O gatilho para gerar as narrativas são palavras-chave, sorteadas e lidas por uma mediadora, sobre as quais as participantes podem discorrer em até 5 minutos. “Escola”, “Gerações”, “Morte de Tito”, “Tensões Étnicas” são alguns dos temas propulsores, refletidos sempre em forma de falas individuais, diretamente dirigidas para os espectadores, tal qual em uma palestra.
No decorrer da performance, a experiência proporcionada por aquele formato híbrido faz jus ao seu título. É, de fato, extraordinária. Não somente pelo jorro de lembranças de um país cujo imaginário que temos foi construído por narrativas quase sempre “tendenciosas”, dada a tensão política que o cercava; mas também pela qualidade de partilha potencializada pelos dispositivos cênicos escolhidos.
Sobre esse aspecto, seria interessante destacar algumas características que contribuem para intensificar a experiência testemunhal do público diante do encontro daquelas sete iugoslavas em Lisboa. Como, por exemplo, o diálogo com os formatos elegidos, seja o da palestra-performance, seja o do city-specific.
Embora à primeira vista a ideia de palestra possa ser considerada um tanto fria e formal para aliar-se à da memória afetiva, sua estrutura trazia certas particularidades ao projeto. Por um lado, favorecia que as singularidades das participantes viessem à tona, potencializando relatos menos uniformes e consensuais. Embora todas as mulheres ali pertencessem a um contexto sociocultural semelhante – algumas artistas, outras formadas em Letras, muitas delas vinculadas à universidade – também traziam visões sobre aspectos da vivência no país que nem sempre coincidiam. Por exemplo, em relação às guerras. Sobre o reconhecimento de um aprendizado e de uma força extraídas do contexto ou, ao contrário, de quererem a qualquer custo deixar o país por conta da situação trágica.
Além disso, o formato palestra parecia colaborar para que estabelecessem uma relação mais direta com o público e mais oblíqua entre elas – pois, dada a configuração espacial, raramente se olhavam. Em suma, como se uma suposta “objetividade” que cerceia a ideia de palestra as protegesse da própria situação de exposição proposta pela performance. E também que a performance, por não privilegiar a forma dialógica, evitasse um encontro muito cerrado entre elas.
A simplicidade da estrutura – na mesa, apenas copos e abajures dividiam espaço com as participantes – também colaborava para que o foco do acontecimento estivesse em suas presenças, muitas vezes para além dos discursos.
Por outro lado, a ideia de performance, em sua dimensão de não reversibilidade, ou seja, não repetição, era outro fator importante para transformar o público em testemunha daquele encontro. Ao optar por sortear as palavras-chave e permitir que elas fossem formuladas no instante da cena, surgiam certas qualidades de presença próprias dessa imediatez. Por exemplo, o pedido para não responder determinada pergunta, certo rubor no rosto com a situação de exposição, uma crise de riso fora de hora, e, por que não, também expressões de tédio e fadiga pela longa duração da palestra-performance.
Também nessa proposta da não reversibilidade, o próprio formato city-specific colaborava para criar um encontro possivelmente inédito e irrepetível entre as participantes de cada cidade onde a performance acontece. Como se a ideia de efemeridade, do aqui-agora teatral, fosse também transposta aos próprios performers, que variavam a cada apresentação.
No caso de 15th Extraordinary Congress, a única participante fixa é Vlatka Horvat, idealizadora do trabalho. Por ser uma espécie de guardiã ambulante do que foi partilhado nas outras cidades por onde o trabalho passou – Bruxelas, Londres, Berlim e Poznan (Polônia) – a artista aproveitava algumas de suas respostas para revelar também o caráter processual da proposta. Assim, por vezes comentava respostas dadas por participantes nessas outras cidades ou então refletia sobre respostas que já havia dado antes sobre as mesmas questões.
Havia ainda outro elemento no dispositivo criado por Horvat que colaborava para fazer o trabalho tornar-se acontecimento no lugar de evento, experiência no lugar de fruição. Trata-se da proposta de fazer da ‘palestra’ uma sessão contínua de longa duração.
No decorrer das quatro horas em que as participantes falavam diante de nós, iluminadas por abajures, com quitutes e café na mesa ao lado para os espectadores, a passagem do tempo também as modificava. Se nas primeiras horas comportavam-se mais como se estivessem realmente em uma palestra, aos poucos o cansaço e o próprio acostumar-se com a situação de exposição liberava-as para uma postura mais espontânea.
Assim, o tecido dramatúrgico que nascia da sessão contínua era marcado por falas fragmentadas e significativas sobre a antiga Iugoslávia. Relatavam, por exemplo, o orgulho que sentiam sobre o sistema de ensino ali – uma delas destacava a variedade de línguas que aprendiam desde cedo na escola; ou sobre a lembrança do pai desligar a tevê no dia em que a guerra começou e nunca mais voltar a ligá-la. Da simpatia que muitas delas – e boa parte da população, especialmente as crianças – tinham pelo emblemático presidente Josip Broz “Tito”; do carisma que emanava do seu timbre de voz. Das histórias de dragão contadas pela avó de uma delas. De viver em um país onde as religiões eram proibidas. De como foi a experiência de assistir na televisão ao 14º congresso que resultou no fim da Iugoslávia. Ou da necessidade constante de explicar para o resto do mundo o que foi, afinal, esse país que não existe mais.
Além dos aspectos mencionados, havia um outro que igualmente singularizava a experiência da palestra-performance. Trata-se do diálogo daquela proposta com as instituições que a acolhiam. A apresentação fazia parte da programação de um importante teatro de Lisboa, conhecido por abrigar obras cênicas de arte contemporânea. Isso para dizer que, talvez nesse caso, o chamado “marco artístico” da obra estivesse mais no imaginário de quem chega ali preparado para “ver teatro” ou “performance”, do que na cena em si.
E como essa espécie de ‘estrutura invisível’ interfere no nosso olhar sobre a cena? Certamente a resposta é variável. No meu caso, era como se essa estrutura colaborasse para dilatar pequenos detalhes da presença daquelas mulheres diante de nós: a maneira como uma delas olhava para o alto enquanto escutava as outras; o prazer que a participante do meio tinha em contar casos do seu país e o carisma que nos transmitia ao narrar uma piada sobre o ego inflado de seus conterrâneos; a maneira como uma delas mexia com o cabelo ou a postura de alheamento de uma outra diante daquela situação.
Assim, era como se essas mulheres não somente apresentassem nuances de um país muitas vezes visto como enigmático, mas também nos convidassem a fabular ou decifrar – por meio de suas vozes, posturas e pequenas ações – o que afinal significava a experiência de ter vivido na Iugoslávia.
E é também nesse emaranhamento entre discurso e presença, expectação e experiência, que a nação extinta se fazia viva, e possivelmente reinventada a cada apresentação, em cada cidade por onde o projeto passa. Uma maneira de ressignificar não só o teatro, como também as possibilidades de diálogo entre macro e micro-história.
Ficha técnica:
Concepção: Vlatka Horvat
Com: Anamarija Marinović, Jelena Bakić, Jelena Savić, Lidija Kolovrat, Marija
Pavlovic, Mateja Rozman, Vlatka Horvat
Moderadora: Cristina Peres