– Por Guilherme Diniz –
Crítica do espetáculo Desfazenda – Me enterrem fora desse lugar, d’O Bonde (SP), apresentado no SESC Avenida Paulista entre os dias 2 e 17 de dezembro de 2022 e entre os dias 5 e 15 de janeiro de 2023.
Foto: Noelia Nájera
A artista e pesquisadora Castiel Vitorino Brasileiro afirma que um dos grandes efeitos da colonialidade e da escravização, implantadas em nossos territórios, foi não apenas o de exterminar vidas, mas também o de produzir esquecimento. Tal esquecimento, aludido por ela, se manifesta, entre outras coisas, nos modos como esta sanguinolenta ficção chamada Brasil insiste, há séculos em controlar emoções, mentes e gestualidades das populações negras e indígenas; em estabelecer o embranquecimento como horizonte existencial e em apagar as ancestralidades, as fugas e as insurgências dos povos das florestas e dos povos de pele preta, encaixando-nos unicamente em narrativas que nos tomam como objetos. Castiel nos diz que, historicamente, o mais poderoso resultado destes processos é nos impedir de gozar nossos corpos livre e abundantemente.
O espetáculo Desfazenda – me enterrem fora desse lugar, do coletivo paulistano O Bonde, caminha na contramão desse esquecimento que, para o caso de corpos negros, nos torna estranhos ou distantes de nossas próprias vidas. As quatro figuras em cena – três homens negros e uma mulher negra – enfrentam a angústia de existirem tão somente a partir daquilo que falaram sobre eles. Todos, de um modo ou de outro, se esforçam para elaborar suas histórias e ao mesmo tempo delinear suas identidades em um ambiente habitado por silêncios, vazios e incógnitas. A busca por reconstruir suas memórias não é uma atitude meramente individual. Ao realizar isso as quatro personagens descortinam os violentos mecanismos que sustentam um mundo racista, reinterpretam a sociedade em que vivem e, assim, reconfiguram suas relações com o coletivo. Naquele espaço, lembrar (ou ao menos arriscar fazê-lo) é um ato de insubordinação, um gesto para fabular outras realidades possíveis.
O documentário Menino 23: infâncias perdidas no Brasil (2016), dirigido por Belisário Franca, foi o principal ponto de partida para a concepção dramatúrgica de Desfazenda. O cortante filme aborda um fato sinistro na história do país: entre as décadas de 30 e 40, cerca de cinquenta meninos negros foram escravizados em uma fazenda, no interior de São Paulo, na remota Campina do Monte Alegre. A propriedade rural pertencia à poderosa família Rocha Miranda, cujos membros mais influentes compunham a cúpula da Ação Integralista Brasileira, aderindo radicalmente ao ideário nazifascista de aniquilamento e superioridade racial. As crianças negras, tomadas de um orfanato no Rio de Janeiro, foram exploradas e consequentemente tratadas como experimentos sociais para o lucro, o deleite e as fantasias eugênicas de um projeto de nação. Por muito tempo esses acontecimentos permaneceram ocultos. Desfazenda, portanto, investiga não apenas as fundações coloniais e escravocratas do Brasil, mas especialmente o seu período pós-abolição, incluindo o abandono do povo negro à própria sorte, as políticas de embranquecimento instituídas e, paralelamente, a violência racial cada vez mais truculenta ao redor do globo.
Na peça, quatro pessoas negras trabalham exaustivamente em uma fazenda. Isto é, existem em função daquele mundo rural, executando toda sorte de atividade agropecuária e doméstica, sob a égide de um regime praticamente escravagista. Como elas chegaram ali? É dito que um insólito padre branco (nunca visto em cena) os salvara de uma guerra que permanentemente acontece alhures, abrigando-os em sua propriedade. Entretanto, essa versão dos fatos, ao longo do espetáculo, ruirá. Acompanhamos a saga de Vinte e Três – Filipe Celestino; Doze – Jhonny Salaberg; Quarenta – Ailton Barros e Treze – Marina Esteves. Não sabemos nem mesmo os seus nomes. As alcunhas numéricas são peças de um enigma meticulosamente calculado para abafar a cruenta face da verdade. Há ainda uma outra personagem crucial, a saber, o Zero, cuja existência é apenas mencionada, ou seja, ele também não adentra o espaço cênico. Das pessoas que ali labutam, ele é o único a já ter visto a face do sacerdote. A sua presença desperta ora medo e indignação, ora curiosidade e paixão, pairando sempre uma aura insondável em torno de si. Se a princípio ele soa um tanto como o “negro da Casa Grande” (papel próximo àquele desempenhado por uma das crianças – a número dois – do documentário Menino 23), seremos mais tarde confrontados por um quebra-cabeça mais escorregadio (e complexo!).
Diante desse panorama, o principal desafio daqueles condenados da terra não é exatamente (ou apenas) fugir dali. A tarefa maior é reconstituir suas trajetórias, tornando-se narradores de suas vidas, e não objetos da narrativa alheia. O ato de narrar em Desfazenda é fundamentalmente um contradiscurso, um processo de escavação da história. Aí está o núcleo duro da montagem: a narratividade por meio das palavras.
A encenadora Roberta Estrela D’Alva, também responsável pela direção musical, ao lado de Dani Nega, imprime na peça as suas investigações poéticas acerca da palavra. Os universos performáticos do poetry slam e da spoken word orquestram os modos como o elenco encara a oralidade. Não importa apenas o que é dito, mas como é dito. As cadências, as prosódias, as entonações e as musicalidades da palavra conduzem a estrutura rítmica do espetáculo, além de delinear os estados emocionais e as relações afetivas/conflitivas entre as personagens. O trabalho verbal dos quatro atores nos faz lembrar dos versos de Conceição Evaristo:
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar,
o âmago das coisas
O verbo é tratado em sua concretude, como matéria a ser saboreada, mas, sobretudo, burilada, esculpida, trabalhada artesanalmente. Justamente por isso, em diversos momentos a relação entre o elenco e a palavra não é definitivamente baseada no conforto, mas no risco. É angustiante para aquelas vidas expressar suas dúvidas, seus medos, suas frustrações… Quebrar o silêncio para alcançar, como nos diz Evaristo, o âmago das coisas exige vigor. Falar (certos assuntos, certas vezes, etc) pode doer. Treze, a única mulher, é quem mais agudamente vive isso.
Filipe, Jhonny, Marina e Ailton, os quatro corpos sobre o palco, incorporam intensamente as possibilidades criativas do ator/atriz MC, experimentando modos variados de lidar com a palavra e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma atuação que não se mistura totalmente com as personagens. Em primeiro lugar, o quarteto cênico explora suas próprias qualidades vocais, incluindo as velocidades, alturas, inflexões, ressonâncias, intensidades e harmonias. Os pedestais com microfones amplificam vozes-reivindicações singulares e coletivas. Aliado a isso, todos os cânticos, beats, samples, salmodias, murmúrios, gritos e suspiros projetam a dimensão sonora como uma das bases do espetáculo. O som também como matéria, força e energia que desenha os tempos, os espaços, as personagens e suas relações externas e internas.
Em segundo lugar, os atores não se fundem com suas respectivas figuras ficcionais. Aberta ou reservadamente analisam as suas personagens. Não estamos diante de uma interpretação ultrarrealista ou interiorizada – pelo menos não o tempo todo. Se por um lado é possível associar tal recurso a um expediente do teatro épico, em que a distância entre ator e persona dramática evidencia uma atitude crítica do ponto de vista estético e social; por outro lado essa estratégia dialoga (e muito) com o princípio da autorrepresentação do MC que, por sua vez, não pretende ocultar a sua pessoalidade e se dirige ao público abertamente, provocando-o, mobilizando-o. De uma ponta a outra, Desfazenda não esconde a sua natureza de jogo cênico. Além disso, há uma outra camada no trabalho atoral. Como espectadores nós vemos as personagens pelo lado de fora e pelo lado de dentro. Acompanhamos os seus conflitos externos, interrelacionais e as suas angústias internas, expressas em tiradas mais longas, como fluxos de consciência que vão descascando as luzes e as sombras interiores de cada qual. Aquelas subjetividades negras estão também lidando com um mundo que a todo tempo tenta homogeneizá-las, enquadrá-las. Embates éticos, existenciais e políticos, entre raça e gênero, se multiplicam.
Tudo na montagem concorre para aprofundar a tensão entre atores, palavras e público. A cenografia extremamente despojada de Ailton Barros, somada ao figurino – criado por ele também – que unifica sem deixar de particularizar os indivíduos, não visa nenhuma espetacularização berrante. Até mesmo o sofisticado desenho de luz de Matheus Brant, que em seus momentos mais inspirados produz recortes, zonas cromáticas e modulações espaço-temporais muito fluidas, destaca acima de tudo a concretude dos corpos em suas formas no palco, acentuando aqui e acolá as suas solidões.
Foto: Noelia Nájera
Espetáculos como Desfazenda, possuidores de complexas arquiteturas rítmicas, além de compassos rígidos, têm um preço: qualquer hesitação dos performers, por menor que seja, um retardo ou um adiantamento ínfimo, podem se tornar bastante nítidos, pois a orquestração tão precisa é, por excelência, exigente e, assim sendo, dificulta (embora não impossibilite) certas improvisações. A missão é sempre fazer essa intrincada engenharia soar leve, macia e imperceptível, ou, em uma só palavra, orgânica. Por debaixo do flow tão gostoso há um mecanismo de tempos e pausas operando a todo vapor. Se individualmente são observáveis pequenos desníveis técnicos no elenco – esta ou aquela pessoa parece deter um domínio vocal mais expressivo – a sensação global é de fortíssimo entrosamento, especialmente nas cenas coletivas.
A dramaturgia de Lucas Moura maneja uma miríade de símbolos e imagens que edificam as atmosferas soturnas e misteriosas, ao passo que adensa camadas de suspense e agonia no enredo. O mar e as águas são presenças que evocam as travessias atlânticas, as transformações e as tensões entre morte e vida no contexto daquelas negras existências. É também dito que o sacerdote branco cultiva uma árvore de cujos frutos pretos produz-se um adocicado néctar. Logo descobriremos que a árvore, regada, em verdade, por sangue e suor, é metáfora de uma engrenagem de exploração e aniquilamento de vidas negras. A imagem vai se aproximando – e a dramaturgia assume isso sutilmente – dos strange fruits (frutos estranhos) entoados dolorosamente por Billie Holiday (1915-1959).
Do documentário Menino 23, Lucas Moura aproveita um elemento determinante: a presença das crianças negras. Se no filme (e no fato histórico) elas foram aprisionadas, tendo suas infâncias drenadas pelo trabalho forçado; na peça, o menino preto é força libertária, irreverente que, traquina e matreira, brinca, com tempos e espaços a fim de construir seu próprio futuro. De algum modo, a dramaturgia evoca a dimensão mito-poética dos ibejis, dos erês que transbordam alegria, energia criativa e vitalidade. É a criança preta que, caminhando lepidamente por entre as vegetações e os sonhos, conduz as personagens à mais profunda liberdade. A manifestação do menino, sugerida pela saturada luz vermelha, que se apodera do espaço, e pela nervosa trilha, se dá de modo explosivo. Nessa ambiência, as quatro personagens dançam, como em um vívido transe, explorando gesticulações e qualidades de movimento instáveis. Uma pulsão algo exusíaca parece tomar conta deles, subvertendo os limites que almejam encarcerar corpos e sentidos.
Nessa mesma elaboração simbólica, o Padre não é unicamente uma pessoa, mas uma ideia – ou uma ideologia para sermos mais exatos -, uma miragem do poder branco que, se infiltrando nas mentes e corações, atordoa, seduz e castiga. Também remete ao mito do bom senhor que pretende guiar e redimir os negros desesperados. Não ignoramos também o modo como ilustra as responsabilidades do cristianismo, com todo o seu exército de missionários, jesuítas e catequistas, na construção das estruturas coloniais mundo afora.
De resto, a dramaturgia confere a Zero um papel instigante e contraditório. Já na derradeira parte do espetáculo somos assaltados pela morte da personagem. O seu corpo estava ladeado por uma arma e por um diário. Parte dos seus escritos, lidos em cena pelo elenco, revelam não só a atroz realidade que sustenta aquela fazenda, mas igualmente os seus dramas íntimos, o abandono e os abusos pelos quais passara. De todas as crianças que ali chegaram, Zero foi a primeira. Desde então – e não sabemos precisamente quanto tempo – fora explorado, internalizando, nesse processo, as incumbências e as fantasias do Padre Branco. Porém, não nos parece que a brancura tenha se assenhorado, em absoluto, da sua mente tão labiríntica. Ele legou ao futuro um diário no qual registrou, no subsolo da história oficial, uma ótica crítica, desestabilizante e, para todos os demais que estão na fazenda, libertadora. Ainda que tenha flertado com o poder, Zero, nas entranhas dessa estrutura opressora, desenvolveu um olhar analítico, expressando, nas letras grafadas, observações que rasuram o status quo. O seu diário, é retrato de uma consciência ferida, ambígua, mas não menos crítica.
É instigante notar como a montagem apresenta a força não apenas da palavra proferida/performada, da oralidade (ou da oralitura, se quisermos seguir os caminhos conceituais de Leda Martins), mas também da escrita que nada contra a maré das hegemônicas narrativas, explicitando uma visão expressiva e analítica. Os diários, por exemplo, de Carolina Maria de Jesus caminham nesse sentido, registrando, com invulgar potência literária, um cotidiano iníquo. A personagem de Marina Esteves parece ter uma relação singular com a escrita, embora isso não seja suficientemente aprofundado no desenrolar do espetáculo.
Por fim, o público é convocado a realizar uma espécie de cortejo fúnebre, partindo da sala de espetáculo até a rua onde, sob os pés de uma árvore, são deixadas lembranças, oferendas, terra e o poderoso diário. O último pedido de Zero era ser enterrado fora daquele amaldiçoado local para assim descansar e (por que não?) germinar outras vidas, destroçando o vicioso círculo de violências. Além disso, neste ato performático, de caráter ritualístico, somos direta e indiretamente, instigados a relembrar o genocídio físico e simbólico contra as populações negras e, especialmente, a evocar tantos meninos e meninas pretas que, como no conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis, não vingaram, não floresceram devidamente.
Desfazenda, em seu final, se avizinha das palavras de José Fernando Peixoto de Azevedo: “Se o teatro é também esse trabalho de dar voz e corpo aos mortos, é porque os mortos ainda têm segredos a nos contar.”
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Esta é a segunda produção do jovem coletivo O Bonde, formado em 2017, por Ailton Barros, Filipe Celestino, Marina Esteves e Jhonny Salaberg, alunos egressos da Escola Livre de Teatro de Santo André. Desfazenda: me enterrem fora desse lugar estreou virtualmente, em junho de 2021, como uma peça-filme, em decorrência da pandemia da COVID-19. Lá, a equipe mergulhou na linguagem cinematográfica, explorando cortes, enquadramentos, planos e sequências. O espetáculo foi laureado com importantes prêmios e indicações. Nesta versão presencial, não se pretendeu simular recursos fílmicos, mas encarar as potencialidades do teatro em si. A despeito das numerosas e inescapáveis aproximações entre as duas montagens, a dramaturgia agora ganhou em concisão, suprimindo uma série de subtramas que deixavam, por vezes, o enredo truncado e confuso.
Imaginamos que a poética de Desfazenda seria vivamente acolhida e debatida nestas terras mineiras. Aqui em Belo Horizonte, somos brindados pela presença expressiva dos Slams, espraiados por batalhas de poesia falada que ocupam distintos pontos da capital. O livro Guia de Slams de BH e RMBH (2021), de Theresa Ciolete e Luiz Henrique Silva, dá-nos um pulsante panorama dos coletivos e eventos vigentes na cidade. Recentemente, o espetáculo Ópera Operária, montagem de formatura dos alunos do CEFART, se estruturou, em boa medida, a partir da estética dos slams e da poesia oral. E não poderia ser diferente: os dramaturgos deste espetáculo são Nívea Sabino, reconhecida poeta-slammer e Rogério Coelho, organizador do Slam Clube da Luta. Portanto, temos entre nós, um palpitante contexto cultural que dialogaria crítica e interessadamente com a produção do Bonde.
Aliás, a única vez que o coletivo em questão passou por BH foi no âmbito do Festival de Arte Negra em 2019, trazendo para cá o espetáculo infanto-juvenil Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus, cuja dramaturgia fora assinada por Maria Shu. Este é o primeiro trabalho do Bonde e integra, sucedido por Desfazenda, a Trilogia da Morte, na qual são investigadas a necropolítica, a marginalização/estigmatização dos corpos pretos, além dos seus inventivos modos de resistência e criação em um mundo antinegro. Um terceiro trabalho já está, por assim dizer, no prelo.
De todo modo, seguimos acompanhando as verdejantes cenas negras que, de há muito, constituem, em diversas localidades do país, uma das dimensões mais artisticamente radicais dos nossos teatros contemporâneos. Desfazenda é parte desse fervilhante mosaico político e artístico.
Foto: José de Holanda
Ficha Técnica
Direção: Roberta Estrela D’Alva
Dramaturgia: Lucas Moura
Elenco: Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves
Vozes Mãe e Criança: Grace Passô e Negra Rosa
Direção Musical: Dani Nega e Roberta Estrela D’alva
Produção Musical: Dani Nega
Músicas “Saci” e “Tocar o Gado”: Dani Nega e Lucas Moura
Sample “Menino 23”: Belisário Franca
Treinamento e Desenho de Spoken Word: Roberta Estrela D’Alva
Cenografia e Figurino: Ailton Barros
Desenvolvimento de figurino: Leonardo Carvalho
Desenho de Luz: Matheus Brant
Montagem de Luz: Alírio Assunção e Matheus Espessot
Operação de Luz: Alírio Assunção
Técnico de som: Hugo Bispo
Artista Gráfico: Murilo Thaveira
Cenotecnia: Douglas Vendramini
Um projeto do coletivo “O Bonde”
Produção: Jack dos Santos – Corpo Rastreado