![]() |
“O Quadro de Uma Família”, do Pigmaleão Escultura que Mexe (Foto Guto Muniz) |
![]() |
Nadja Naira e Rodrigo Bolzan em “Taubira” (Foto Guto Muniz) |
Por Soraya Belusi
Por Soraya Belusi
Na revista em que registra os processos criativos vivenciados com Eid Ribeiro, o Grupo Trama ressalta que, em “John e Joe”, lhes interessava particularmente o obstáculo que a palavra falada lançava. Desafio elevado à potência do jogo textual na obra, até então, inédita no Brasil , de Ágota Kristof, que marcou o terceiro espetáculo da parceria entre o coletivo e o diretor mineiros.
![]() |
O ator Epaminondas Reis (Foto de Paulo Teotônio) |
Composta quase que matematicamente, a dramaturgia de “John e Joe” encontra ecos evidentes da linhagem de autores do teatro do absurdo, que reconhecidamente colocavam em crise, na forma e no conteúdo, as percepções de linguagem. Em um momento histórico em que a humanidade repensava radicalmente suas fundamentações, crenças e valores, a inadequação da linguagem deixa de se tornar apenas tema para ganhar dimensões também estruturais dos textos dramatúrgicos.
Não é de se espantar, portanto, não apenas que estes dois vagabundos que levam a vida a pisar em cacos, curtidos pelo álcool e pelo peso do tempo na mesa de um bar, tragam a herança de Vladmir e Estragon, que agora já sabem o que fazer enquanto esperam: tomar dois goles de conhaque. Assim como no “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, autor pelo qual Eid notadamente nutre grande admiração e com o qual Ágota Kristof dialoga diretamente nesta obra, o texto é composto por frases curtas, sequências de perguntas e respostas, repetições com pequenas variáveis, criando um jogo permanente com a noção de tempo e de espaço.
![]() |
O ator Chico Aníbal (foto de Paulo Teotônio) |
A exuberância do trabalho físico e cômico que marca a trajetória do Trama abre espaço para a contenção. Eid, sabiamente, opta por trazer à cena o humor que reside no próprio absurdo da situação, no jogo de palavras, na contenção dos movimentos e na precisão de seus silêncios. A herança do circo tradicional, tão cara à linguagem do diretor, aqui volta a aparecer, mas não como elemento lúdico e, sim, como característica da relação e da característica dos personagens, que não se permitem serem lidos pelo psicologismo e, sim, pela relação entre eles.
A concepção do espaço nos remete a um bar de qualquer época, em qualquer lugar, entregue ao abandono, assim como os personagens que o habitam. O único sopro de vida parece vir de uma antiga jukebox. O garçom, que parece ser mero espectador da imobilidade e da resignação de seus clientes, funciona habilmente como uma comentador da cena, estabelecendo uma relação direta (e discreta) com os espectadores, como se os lembrasse o tempo inteiro de que eles também estão ali.
Por Soraya Belusi (*)
Para experimentar, é preciso ir além do conhecido, do confortável e do familiar. No sentido estrito, experimento carrega no dicionário a noção de ensaio científico para a verificação de fatos definidos, experiência ou experimentação. Em arte, tal conceito nos leva a trazer essa noção para a instalação de novos mundos, deslocamentos de linguagem, outras proposições estéticas. Mas, em seus dois trabalhos apresentados na programação do Fentepp, a Trupe do Experimento, do Rio de Janeiro, parece contradizer essa pretensão ao se debruçar justamente sobre os formatos já padronizados.
![]() |
“O Que Podemos Contar” (Foto Fernando Martinez) |
A cena contemporânea é rica em experiências que problematizam as convenções teatrais já assimiladas, propondo pesquisas acerca da linguagem e configurações outras da ideia de representação, construção do personagem, dramaturgia. Também não são poucos os exemplos que radicalizam a perspectiva experimental no trabalho do ator, na relação com a plateia, com o espaço ou com a própria noção de arte. Não é este o referencial que parece nortear “O Que Podemos Contar” ou em “Sonho de Uma Noite de Verão – A Magia de Shakespeare para Todas as Idades”, ambos do grupo carioca. É em solo firme que o coletivo parece querer andar.
Em “O Que Podemos Contar”, são apresentados dois personagens, Nina e o homem Sem História que abandonou suas lembranças no passado e só pensa no futuro. Ao ter seu caminho cruzado pela menina, porém, ele retoma o desejo de voltar às suas memórias de infância. A direção, de Marco dos Anjos, recorre a ícones do imaginário infantil – como a boneca de pano, boneco de corda e o palhaço – para que os personagens da história ganhem vida. A peça apresenta a estrutura já tradicional de mesclar narração, representação e números musicais – as canções das duas montagens também são assinadas competentemente por dos Anjos. A dramaturgia se sustenta numa estrutura previsível, em que cada objeto encontrado na mala detona uma memória que é representada em flashback.
A atuação segue o registro insiste-se em repetir no teatro feito para crianças, pautado excessivamente na máscara facial e, em alguns momentos, na exacerbação do personagem-tipo de forma ilustrativa. O carisma, porém, da personagem Nina supera tais obstáculos para possibilitar a empatia do público infantil. O narrador aparece apenas como uma espécie de transmissor de mensagens morais – do tipo “leia para os filhos”, “cada dia a gente vive uma história”, etc – e não consegue atingir os predicados nem de contador da história a ser representada, nem de comentador da cena, tendo sua função um tanto injustificada a não ser pela cena final (da entrega do boneco).
![]() |
“Sonho de uma Noite de Verão” (foto de Paulo Teotônio) |
Já no início de “Sonho de uma Noite de Verão”, uma promessa de pesquisa de linguagem se apresentava: com trajes ocre, os atores recebiam o público ao som de versões para canções de domínio popular, executadas com violão, flauta, tambores e pandeiro. Numa espécie de prólogo, ao apresentar o universo de Shakespeare, o sotaque nordestino invade a cena, como se a encenação propusesse haver um diálogo com a cultura brasileira. Mas isso não se esparrama (em consonância ou divergência) pelos outros elementos, exceto nas canções, tornando-se apenas um elemento fácil em busca do riso (como se as confusões da trama do bardo não fossem cômicas o suficiente e fosse preciso carregar a tinta).
A fisicalidade ancorada no trabalho corporal dos atores, aqui, porém, gera um vigor à atuação e possibilita mais unidade ao conjunto do elenco, que se demonstra potencialmente com recursos, além de apontar para uma possibilidade de assinatura, identidade do grupo. É também o caso de alguns elementos recorrentes nestas duas produções da trupe – como a figura do narrador, a potência das canções, a busca pela comicidade, a teatralidade e fisicalidade da cena (principalmente na versão para a obra de Shakespeare) – com os quais ela pode, de fato, fazer seu experimento.
Por Soraya Belusi (*)
![]() |
Foto Renato Shizido |
Por Soraya Belusi (*)
![]() |
Fotos Renato Shizido |
Por Soraya Belusi (*)
Não seria exagero afirmar que a Cia. Noz de Teatro, Dança e Animação faz jus às três formas artísticas que carrega em seu nome no espetáculo “100 + Nem Menos”, apresentado na programação do FENTEPP XX. Elementos de cada uma dessas expressões convergem em uma coreografia de cores, formas e sons pelo espaço, que, como diz o próprio título da peça, são criadas e transformadas diante do espectador sem nenhuma razão (ou explicação) especial.
![]() |
Foto Fernando Martinez |
A montagem abre mão da fábula, tão recorrente nas encenações para crianças, para propôr uma viagem a um mundo de abstração. Esta ausência inicial de uma dramaturgia mais evidente possibilita ao público infantil estabelecer sua própria narrativa. Tubos de borracha são transformados ora em carrinhos e bicicleta, ora em números e operações matemáticas, referências mais cotidianas rapidamente assimiladas pelo público infantil.
Mas em meio a essa brincadeira de adivinhação de formas e brincadeiras infantis, como pular corda e contar amarelinha, estão incluídas referências a imagens de artistas como Joan Miro e Paul Klee, informação artística que, embora as crianças em sua maioria não possuam, amplia o leque estético de sua percepção, efetuando uma espécie de alfabetização no universo da arte para uma plateia de pequenos espectadores, funcionando principalmente os mais novos, entre 1 e 3 anos.
A criatividade na utilização de materiais simples é outro elemento potente no trabalho. Em cerca de uma hora, praticamente um único material é reelaborado permanentemente em cena, quando seria uma armadilha cair no esgotamento. A utilização de barracas para dar forma a seres que remetem a animais como aves e peixes segue a lógica do resto do espetáculo, com ideias simples, mas de grande efeito.
A ausência da palavra (exceto nas canções que abrem e encerram o espetáculo) é ancorada na forte presença da trilha musical, assinada por Daniel Maia e Dr. Morris, e que, como nos desenhos animados, pontua cada movimento dos atores e das formas que manipulam no palco e permitem que o ritmo da encenação se mantenha dinâmica, mesmo que, em alguns momentos, a repetição de formas e movimentos comece a soar, para os espectadores um pouco maiores, um tanto redundante.
(*) Texto originalmente publicado no site do XX Fentepp.
Por Soraya Belusi (*)
O teatro do século XX assistiu a uma verdadeira revolução no que concerne ao trabalho do ator e à sua função na construção da cena. De mero cumpridor dos desejos de outrem, fosse este o autor do texto ou o encenador, assumiu seu lugar como proponente, como mais uma voz criadora dentro do emaranhado de discursos que compõem a obra teatral. As consequências dessa “emancipação” reverberam ainda hoje na cena contemporânea em diferentes investigações e estão presentes, de maneiras distintas, em duas experiências apresentadas na programação do XX Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente – FENTEPP: “Estrelas”, de Marilyn Nunes, e “Outro Lado”, do Quatroloscinco.
![]() |
“Outro Lado” (Fotos de Fernando Martinez) |
De Minas Gerais, o Quatroloscinco trouxe ao festival o espetáculo “Outro Lado”, segundo trabalho do coletivo que vem pautando sua criação na construção de uma dramaturgia própria. Neste percurso, a companhia parece optar por retomar questões de seu trabalho de estreia, “É Só Uma Formalidade”, mas agora combinadas em uma outra lógica. Em “Outro Lado”, quatro pessoas estão em um bar enquanto uma guerra acontece do lado de fora. Esta situação inicial detona uma série de questionamentos filosóficos-existenciais sobre o que acontece entre o dentro e o fora, entre o privado e público, o real e o ilusório.
Estas indagações já haviam aparecido na primeira empreitada do grupo, mas em um contexto de intimidade e de afetividade que neste novo trabalho não têm lugar. No livro que publicou com seus dois textos, o grupo afirma estar buscando sua “própria arquitetura” dramatúrgica. Nesta nova edificação, a palavra sustenta todo o concreto, fazendo com que a linguagem se sobressaia às relações (entre os próprios personagens e entre os atores e o público).
A dicotomia de “É só uma Formalidade” abre espaço para o polifônico, para a diversidade de discursos que parecem não propôr uma única solução. É a imagem do cubo mágico e suas múltiplas combinações possíveis que vai nortear a condução da dramaturgia, buscando desestabilizar o espectador toda vez que este parece estar convicto do que vê. É como se o caos instalado transbordasse para a linguagem, tornando impossível gerar um ordem.
A relação de causa e consequência parece não mais fazer sentido, à medida que nada impede, de fato, aqueles personagens de sair, a não ser a escolha em ficar. E, quando um deles sai, nada de diferente acontece quando volta. Porém, a situação de esperar que algo mude do lado de fora para que façamos algo do lado de dentro não assume um tom absurdo ou surreal de um “Esperando Godot” ou de “O Anjo Exterminador”.
Outro componente retomado neste trabalho é o jogo com as próprias convenções teatrais, que, ao contrário do que acontece em “É só uma Formalidade”, em que a relação com a plateia é pautada pela cumplicidade e integração, em “Outro Lado” ganha ares de distanciamento e frieza, mesmo que, em alguns momentos, os personagens se refiram diretamente à plateia. É como se no primeiro trabalho o público virasse parte da cena e, neste, o próprio ator se torna espectador da atuação do outro.
Com “Outro Lado”, o Quatroloscinco reafirma suas opções na construção de uma linguagem a(u)toral, recombinando e problematizando elementos de seu primeiro trabalho, com a convicção de que acertar todas as faces do cubo mágico depende de combinações aleatórias e preferindo nunca terminar o jogo.
Do coletivo para o particular, “Estrelas”, trabalho solo da atriz Marilyn Nunes, nos leva a investigar a questão do ator-criador por outras perspectivas. Neste caso, a herança de toda uma tradição na busca de um repertório do ator, sintetizada principalmente nas pesquisas de Eugenio Barba, aparece como elemento central. Fruto de uma residência da atriz com Julia Varley, do Odin Teatret, o trabalho traz para cena todo o vocabulário de procedimentos do grupo dinamarquês, como as partituras corporais e vocais e a construção de imagens. E é justamente na evidenciação dessa técnica que reside os principais méritos e também as inconsistências do trabalho.
“Estrelas” debruça-se sobre depoimentos e a obra de Clarice Lispector. Marilyn faz a opção de contar a história de Macabeia pelos olhos da autora, como se esta estivesse criando o romance no momento da representação. Com isso, a performance transita entre apresentar Clarice e seus pensamentos acerca desses personagens e dar vida a cada um deles em cena. Para isso, Marilyn recorre a uma certa construção tipificada dos pesonagens de Clarice, tornando-os menos misteriosos e um pouco mais óbvios, unifacetados.
![]() |
“Estrelas”, de Marilyn Nunes (Fotos de Fernando Martinez) |
Os recursos a que a encenação recorre nesse jogo parecem simples demais para a complexidade da obra de Clarice, e, ao mesmo tempo, parecem estar aquém das possibilidades que a própria atriz apresenta em cena. Sintoma disso é que alguns recursos aparecem inicialmente potentes, como o uso do pandeiro, e se perdem quando utilizados em excesso. As imagens também aparecem carregadas de potência quando a técnica por trás da partitura não assume a dianteira.
O teatro proposto por Barba – e também pelo teatro essencial de Denise Stoklos, por exemplo – exige um repertório pessoal do ator e um domínio completo de todos os componentes da cena. É ele o detonador de todo o resto. Marilyn Nunes aceita esse hercúleo desafio em busca de uma linguagem a(u)toral, mesmo com as limitações ainda presentes no percurso.
(*) Texto originalmente publicado no site do Fentepp XX, a convite da organização do evento.