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Fotos Elenize Dezgeniski |
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Fotos Elenize Dezgeniski |
Na próxima semana, começa em Curitiba a segunda edição da Mostra de Dramaturgia Sesi – Teatro Guaíra, com 16 montagens escritas e dirigidas por integrantes das oficinas do Núcleo de Dramaturgia e de Encenação, orientadas por Roberto Alvim, Ruy Filho e Antonio Rogério Toscano. As apresentações serão de 3 a 15 de dezembro, no Teatro José Maria Santos, com entrada gratuita. Veja a programação.
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Fotos de Paula Kossatz |
Julia Guimarães*
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“Entre Nós – uma comédia sobre diversidade”. Foto de Sora Maia. |
Tem certos espetáculos que, para além de serem bons ou ruins, são necessários. A considerar toda uma historiografia dramatúrgica brasileira que, recorrentemente, coloca o homossexual numa posição estereotipada, repleta de lugares-comuns e preconceitos implícitos ou escancarados, problematizar esse tema no teatro é, de primeiro sobressalto, um modo de subverter essa complicada tradição.
Nesse sentido, a montagem “Entre Nós – uma comédia sobre diversidade”, de Salvador (BA), não só traz novos questionamentos a esse universo como também adota uma linguagem bastante pertinente para convocar o público a partilhar a reflexão sobre o assunto. O espetáculo se apresentou no último domingo (10) em Três Rios, na programação do OFF Rio Multifestival de Teatro.
Pertencente a uma linhagem cênica que valoriza certa dimensão processual e metalinguística da encenação e da dramaturgia – e nesse sentido, poderia aproximar-se, por exemplo, de “Ensaio.Hamlet”, da Cia. dos Atores (RJ) – “Entre Nós” se constrói como uma grande pergunta, que, pouco a pouco, vai sendo respondida pelos personagens.
Numa espécie de peça-ensaio-debate, o texto de João Sanches, que também assina a direção, procura criar entre os atores Igor Epifâno e Anderson Dy Souza a sensação de que estão discutindo no calor da cena a maneira como deveriam encenar uma história homoafetiva no teatro.
A dimensão de jogo está presente também na opção deles representarem 12 personagens distintos na peça, construídos a partir de pequenos e precisos códigos corporais. Alguns deles são emblemáticos para traduzir a atualidade das questões tratadas. É o caso da diretora do colégio, que afirma apoiar a diversidade sexual desde que as demonstrações de afeto entre os colegas não adentrem o interior da escola ou da mãe moderna que já assimilou de tal forma a homossexualidade do filho a ponto de desenvolver um preconceito às avessas: teria pavor que ele, um dia, trouxesse uma namorada em casa, encarada como a rival do mesmo sexo.
Sem cenário e coxias, a atmosfera das cenas fica a cargo da iluminação, manipulada pelos próprios atores, e, principalmente, pela trilha sonora, executada ao vivo pelo músico Leonardo Bittencourt, com pérolas bem-humoradas do universo pop.
E é sobretudo ao conferir leveza cômica à abordagem, seja ao brincar com os clichês, seja ao escancarar dúvidas e inseguranças tanto dos personagens-atores quanto dos personagens da história encenada que a montagem os humaniza e, assim, possibilita ao espectador a identificação ou, pelo menos, a adoção de um olhar mais sensível para aquele universo.
Nesse esquema da peça-debate, cabe inclusive ao público de cada noite decidir se o casal se beija ou não ao fim do espetáculo. Para uma sociedade que acostumou a ver em novelas um tratamento de casais gays quase casto, no qual eles mal se tocam, a decisão sobre o ato de consumar ou não um beijo gay ao vivo ajuda a criar no espetáculo uma camada a mais de complexidade, e serve como reflexo sobre quais são os limites de aceitação e intolerância da plateia a cada apresentação.
*A jornalista viajou a convite da produção do OFF Rio Multifestival de Teatro.
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Foto Rodrigo Silva (divulgação) |
por Luciana Romagnolli
Os absurdos do ambiente de trabalho estão em pauta no teatro. Em Belo Horizonte, são a obsessão criativa do ator, dramaturgo e diretor Daniel Toledo, como visto em seu primeiro espetáculo, “Fábrica de Nuvens”, e em outros escritos esparsos que evidenciam a insignificância e a insensatez da rotina de funcionários de uma empresa fictícia.
Marco Nanini também se embrenhou pelos labirintos empregatícios no solo “A Arte e a Maneira de Abordar seu Chefe para Pedir um Aumento”, baseado na obra do francês Georges Perec, que critica a desumanização dos procedimentos empresariais. A história do empregado cujo desejo é paulatinamente minado no decorrer dos anos encontra humor na espiral acumulativa de redundâncias na qual ele submerge, sem saída. Essa estrutura textual rígida, contudo, domina a cena e lhe impõe limites. Um deles pode ser o inexistente espaço de ação e conscientização de um personagem reduzido à caricatura do bom subalterno: aquele que não indaga nem contesta.
Esta não é a postura da funcionária interpretada por Débora Falabella em “Contrações“, espetáculo dirigido por Grace Passô, com o Grupo 3 de Teatro e assistência de Ricardo Alves Jr. Às primeiras e menores demandas descabidas da chefe de RH (Yara de Novaes), ela reage com descrédito e alguma desobediência. O potencial desestabilizador do texto do britânico Mike Bartlett reside justamente nessa resistência previamente apresentada e no modo como as solicitações desmedidas da chefia pouco a pouco solapam qualquer resquício de racionalidade da protagonista, envolvendo-a em um processo irrefreável de desumanização no qual as exigências se tornam cada vez mais insanas, como é crescentemente identificável em relações de trabalho contemporâneas.
Outra vez, o texto determina as linhas de ação e sobressai aos demais elementos cênicos, os quais surgem como desdobramentos dos sentidos expostos ou subentendidos nos diálogos. Marca da diretora Grace Passô desde “Por Elise” e levada adiante neste trabalho pós-Espanca!, a materialização de metáforas sublinha esses sentidos e reverbera-os além da apreensão intelectual, dando um salto poético e fazendo com que afetem sensorialmente. Enquanto em “Os Ancestrais” a sensação de fazer parte de uma tragédia é sentida pelo espectador ao ter a perna alcançada pelas mãos dos soterrados em busca de sobreviventes; em “Contrações”, o espectador percebe na pele a metáfora climática da frieza requerida no ambiente corporativo.
Bartlett organiza o tempo por uma lógica própria, comprimido entre as sucessivas visitas da funcionária à sala de RH; ao que a direção e atuação respondem com uma partitura de ações centrada num simples por e tirar de casaco, que absorve as contrações do título e metaforiza a dor gerada pelos sacrifícios feitos pela carreira, cuja consequência é o encurtamento de seu horizonte pessoal. Essa lógica singular ditada pelo tempo torna-se motor das ações e põe a máquina textual pra funcionar, forjando uma atmosfera opressora. Débora Falabella delineia a gradual perda de tônus da personagem à medida que cede às pressões, em contraste à figura inabalável de Yara de Novaes.
Há um horizonte claro de sentidos evocados em cena, em direta comunicação com o espectador. Entre eles, o descontrole parece ser o mais difícil de ser representado formalmente dentro de uma estrutura arquitetada como é a da peça. Descontextualizada na cena, a bateria surge como estratégia de escape para a raiva e o desequilíbrio da protagonista, permitindo somente um descontrole controlado, a salvo de maiores riscos.
*Espetáculo visto em outubro de 2013, no CCBB São Paulo.
por Luciana Romagnolli
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“Viúva, porém Honesta”. Foto de Danilo Galvão. |
Desprendidos das verdades e absolutismos fixados pelo vasto repertório de reflexão crítica sobre as obras desses dois autores, tanto “Viúva, Porém Honesta”, do Magiluth (PE), quanto “Vazio É o que Não Falta, Miranda”, do Teatro Inominável (RJ), carregam um entendimento profundo do que é o essencial nesses escritores – ou, ao menos, do que é essencial para cada um dos grupos na relação com esses escritos. Além disso, ambos fazem da apresentação um momento de jogo no qual a representação é apenas um dos procedimentos possíveis; o endereçamento das falas e ações à plateia valoriza o encontro; e os personagens são coadjuvantes em meio à relação mais ampla que se estabelece entre atores, diretor e público.
A presença do diretor em cena, aliás, é sintomática do aspecto de construção. Seja operando luz e som, como um olhar de fora que em momentos específicos entra realmente no jogo, como Pedro Vilela faz em “Viúva”, representando o padre ou tirando a roupa; seja interferindo de fato no desenvolvimento da cena com direcionamentos às atrizes de acordo com cada apresentação, como faz Diogo Liberano em “…Miranda”, a presença criadora do diretor se materializa como uma interferência visível para o espectador. O fazer eleva-se a primeiro plano e as escolhas se denunciam enquanto escolhas.
Assim, abandona-se a ideia de peça benfeita e a ilusão de reprodução da vida, tal qual se ambicionava no drama clássico com uma história verossímil que comovesse à medida que nela se embarcasse esquecendo seu caráter ficcional. Se há indistinção entre teatro e vida, aqui, ela se dá no modo como o teatro se constrói como uma atividade de seres viventes elaborando ficcionalmente o real num espaço de convívio e liberdade criativa.
Nos dois espetáculos, reage-se com liberdade e leviandade às amarras culturais. O desrespeito é um valor imprescindível. Os atores são, afinal, indivíduos diante de uma obra, dela independentes. E irreverentes, porque despojados de reverência tolhedora.
O Magiluth investe, então, na subversão do moralismo. Qual outra abordagem mais justa à “farsa irresponsável” escrita por Nelson Rodrigues contra o puritanismo, a crítica, a imprensa, a psicanálise e a família, em resposta às manifestações da opinião pública sobre sua peça anterior, “Perdoa-me por Me Traíres”? Permissividade: eis a atitude cênica com a qual reagem os atores recifenses, à sua vez, ao contarem a história de um pai em busca de um pretendente para seduzir sua filha porque ela (simbolicamente) se recusa a se sentar após a morte do marido.
Despudoradamente, eles manejam o texto, o sexo e o escracho. Voam batatas chips, surgem um Senhor Batata, bonequinhas nuas e demais objetos prontos a surpreender e a fazer rir, mesmo que apelando a um senso de humor digno da “turma do fundão da quinta-série”, por assim dizer. No jogo proposto pelo Magiluth, o desbunde é permitido. O excesso e a piada ruim, também. E por que não seriam, se o alvo são justamente as instituições e tradições que atuam como censoras sobre a conduta alheia, donas do certo e do errado?
A desobediência no espetáculo não é menos que política. E seu potencial de afetação se eleva na medida da energia desprendida pelo grupo de atores – cabe dizer, todos homens e jocosamente oscilantes entre as explosões de testosterona e de feminilidade. Em alta voltagem e ritmo intenso – e entendendo o teatro como um jogo de ação e representação pactuado com os espectadores; falso como os pilares morais da sociedade de que debocha, porém capaz de desnudá-los aos olhos do público -, o Magiluth faz com que as provocações de “Viúva, Porém Honesta” atinjam, afiadas a carne do nosso bom gosto e bom senso.
“Como a morte, a indecidibilidade, o que chamo também de ‘destinerrância’, a possibilidade para um gesto de não chegar ao destino, é a condição do movimento de desejo, que de outra forma morreria antes do tempo”.
Em “Vazio É o que não Falta, Miranda”, o permissivo jogo com estímulos oriundos do universo beckttiano se torna possível a partir do sepultamento de “Esperando Godot”, encenado pelas quatro atrizes sob as vistas do diretor, também em cena. A leitura de uma sinopse falseada da peça escrita em 1952 já aponta para a infidelidade adotada como conduta pelo Teatro Inominável. Uma vez que foi descartada a origem e o fim tampouco é pretendido, importam o meio e seus rizomas: o processo.
“Miranda”, afinal, se configura como um antiespetáculo, forjado nos vazios e nas falhas de uma pretensa montagem da peça, que, à semelhança de Godot, nunca chega a se realizar. Assim, lança-se à distinerrância de desejos postos em movimento, ainda que nunca alcancem o que se pressuporia como destino. Cobrar-lhe os contornos de um espetáculo benfeito, resultados mais satisfatórios ou que faça algum sentido é negar-se a fruir a experiência proposta pelo grupo.
A fidelidade a Beckett reside justamente no modo radical como as questões por ele impressas na linguagem e na estrutura textual de Esperando Godot são experimentadas dramaturgicamente, isto é, de modo estruturante dos sentidos e afetações, na composição da cena.
A experiência de expectação de três apresentações permite, primeiramente, desfazer impressões iniciais sobre o que é representação, o que é acaso e o que é improviso, e perceber a desenvoltura das atrizes para transitar entre essas categorias. As quatro cumprem uma gama de jogos dos quais menos importa os resultados do que a falta de lógica inerente à espera que protagonizam – ou que o público protagoniza diante delas.
Há uma espinha de ações repetidas diariamente, mas sujeitas a uma ampla margem de improvisação, seguindo os humores delas mesmas, do diretor e do público. O improviso como técnica de criação teatral alcança estatuto pouco visto, retrabalhando dia a dia a matéria polissêmica do espetáculo, sensível aos estímulos e fluxos do instante. Assim, ata-se o momento de criação ao do encontro com os espectadores, e caberá a estes se deixar afetar e fazer sua própria leitura dos acontecimentos.
A direção de Liberano valoriza surtos individuais dele e das atrizes, expondo o frágil e o patético de cada um. E, se o diretor reage com veemência aos excessivos apelos cômicos de uma delas para render o público, é ele também quem continua a permiti-los a cada apresentação. O humor, afinal, é a estratégia de adesão em meio aos destroços de narrativa. Em algumas ocasiões, pode-se perder a medida e as complexas linhas de ação empregadas no espetáculo se diluem sob a comédia ligeira, na tentativa de manter a plateia entretida. Mas qual a medida? Experimentar diariamente. Correr o risco.
O que está posto em dúvida, enfim, é a própria noção de dar (ou não) certo, deslocando o foco para o processo. Tal qual uma redenção do grotesco perante o sublime, o Inominável realiza uma redenção do desacerto, do descuido, do deslize, do desvio, do equívoco, da falha, da falta, da imprecisão, da impropriedade, da incorreção e do desatino, mas também da tentativa, como inescapáveis à vida e à arte.
Liberto da lógica positivista ou mercadológica, se “Miranda” atinge algo de sublime em seus desfoques, é por restituir à vida o valor da experiência e da imperfeição. Como melhor escreveu Soraya Belusi: trata-se, aqui, não só da arte, mas também da existência como processo. Irresistivelmente incompleta e insatisfatória, uma provocativa disposição a estar vivo.
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Fotos Carolina Calcavecchia |
(*) Texto originalmente publicado no site do Feto 2013