
— por Daniel Toledo —
Crítica do espetáculo “Woyzeck”, de Andriy Zholdak (Ucrânia).
Estamos em Cherkazy, na Ucrânia. O ano é 2008, e a estátua de Lênin – imponente vestígio da dominação soviética – acaba de ser retirada de uma das principais praças da cidade. Ao contrário do que se poderia pensar, entretanto, não é a liberdade que ganha espaço no país, mas sim uma nova corrida de diferentes impérios igualmente interessados em dominá-lo, a partir de ações que se estendem desde a política internacional até a vida cotidiana de seus habitantes.
Não por acaso, certamente, foi esse o contexto escolhido pelo diretor ucraniano Andriy Zholdak para recriar, à sua maneira, a trajetória de Woyzeck, personagem que dá título à peça mais conhecida do alemão Georg Büchner. Apresentada pela primeira vez em 2008, mesmo ano da remoção da estátua, a montagem de Zholdak vai ao encontro de uma cidade cuja história é marcada por cruéis experimentos sociais e econômicos do estado soviético – experimentos que em muito se aproximam da dieta de ervilhas à qual Woyzeck é submetido no drama de Büchner e que acaba lhe provocando algumas visões apocalípticas. “Woyzeck vê coisas demais”, escuta-se, em certo ponto do espetáculo.
Como se tivéssemos sido submetidos à mesma dieta do personagem, também nós, que assistimos à montagem de Zholdak, vemos coisas demais. Dispostos ante uma encenação permanentemente marcada por justaposições e simultaneidades, temos acesso a três casas de vidro e três grandes telas de projeção onde múltiplas imagens se dão a ver. Constitui-se, então, uma paisagem cênica e dramatúrgica bastante perturbadora, em que sobressaem a qualidade performática das interpretações e a criação de sentidos a partir de contrastantes composições entre cenas e imagens digitais.
Por meio de alegorias mais ou menos diretas, vemos, por exemplo, as obscenas relações estabelecidas entre a nação ucraniana e os impérios que a ela ainda hoje se impõem. Em um complexo trânsito entre as escalas da nação e do cidadão, imagens documentais e ações cênicas igualmente chamam atenção às precárias e violentas condições de vida dos habitantes do país – dentre os quais figuram, ali, Woyzeck, sua esposa e seu filho. Mas não é somente a esta família que se refere a peça, alerta o diretor, logo no início da montagem. “São 15 milhões de pobres”, lê-se em uma das telas de projeção, revelando estatística que corresponde a cerca de um terço da corrente população ucraniana.
Com ares de ficção científica (talvez inspirados pelos próprios experimentos aos quais o personagem é submetido), parece interessante ressaltar que o espetáculo se apresenta ao público exclusivamente em tons de preto e branco, chamando atenção a uma realidade dura e fria em que a graça e a beleza estão bem longe do primeiro plano. As únicas cores que temos ali vêm das pálidas peles dos atores e de alguns animais empalhados que ornamentam o cenário.
A animalidade, aliás, é outro elemento que rapidamente se alastra à cena, a partir de personagens que roncam, uivam e coaxam, ostentando, em alguns momentos, chifres e orelhas animalescas. Se a caça é apresentada como um hábito bastante comum na Ucrânia, também as relações humanas parecem ter sido contaminadas: tanto Woyzeck e sua esposa quanto outros personagens apresentados com menor detalhe frequentemente cruzam o palco, traçando diferentes rotas de fuga daqueles que parecem querer capturá-los.
“Eu quero ser livre. Quero viver em um país livre. Quero ter uma vida noturna”, afirma Maria, a esposa de Woyzeck, pouco antes do anúncio do início do segundo ato do espetáculo. Usando capacetes de moto, os dois desdobram os delírios de Woyzeck a outras alturas. Ao silenciar por alguns instantes as permanentes negociações políticas no gabinete do governo e nos espaços da elite, vislumbram uma possível fuga a partir de um encontro romântico em que novos horizontes, ao menos instantaneamente, parecem se abrir. Se as fronteiras territoriais parecem sitiadas e dominadas por outros impérios, a fronteira com o céu lhes parece mais amigável e promissora. “Não fique em silêncio. Fale algo”, pede a mulher. Mas Woyzeck nada pode prometer em meio a uma realidade social na qual tanto o amor quanto a liberdade não passam de utopias tão distantes quanto o céu e as estrelas.
Não tarda, contudo, até que a opressora realidade social novamente se imponha aos personagens, e Maria, tal qual a própria Ucrânia e seus chefes de estado, se deixe envolver por fios vindos de impérios políticos e econômicos que desde o início da peça rondam sua trajetória. Antes de ceder, contudo, ela oferece ao filho um sábio conselho: “Feche bem os olhos”, diz, em possível referência aos riscos de se enxergar demais.

– por Daniel Toledo –
“De planos emergindo, mas não planejada; movida por propósitos, mas sem finalidade”: se tais palavras compõem, aos olhos do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), um justo retrato da civilização que construímos juntos, visão semelhante parece ser compartilhada pelo diretor e dramaturgo Carlos Rocha quando consideramos sua mais recente criação, o espetáculo “O Urro”. Realizada em parceria com o músico Gil Amâncio (também codiretor da montagem) e o ator André Senna, a obra estreou em agosto de 2014, em Belo Horizonte.
Tendo a grande cidade como universo de experiência, observação e constante estranhamento, o espetáculo apresenta ao público a emergência de uma epidemia que leva habitantes de grandes metrópoles a emitirem urros cada vez mais intensos. Se no clássico “O Rinoceronte”, de Eugene Ionesco (1909-1994), a metamorfose significa a rendição violenta dos personagens a um sistema social de opressão e anulamento, o que se verifica, em “O Urro”, é o processo inverso: aqui, a sonora epidemia surge, em certo sentido, como uma espécie de recusa civilizatória e afirmação da animalidade humana.
Logo nas primeiras falas de Dilermando, único personagem em cena, já se percebe um discurso claramente crítico em relação à grande cidade e às condições de vida que nela se mostram possíveis. “Coisa curiosa de se notar era que nenhum deles parecia irritado com o que os oprimia – como se já considerassem o peso que carregavam, parte de si mesmo”, diz o personagem, em referência aos habitantes da fictícia Urbanus, metrópole onde parece ter chegado há pouco tempo. É sob o ponto de vista desse personagem, portanto, que acompanhamos o alastramento de uma inusitada epidemia entre os habitantes de Urbanus.
Habitante de um pequeno quarto de pensão, à qual vez ou outra se refere como “espelunca”, Dilermando escreve à maquina suas impressões sobre a recém-descoberta metrópole e os urros que, dela, começam a fazer parte. A partir de um gestual minuciosamente elaborado e executado, mais interessado na sucessão de imagens típicas e marcantes do que em algum tipo de progressão realista, o personagem narra ao público os sintomas de uma cidade – e uma sociedade – `a beira de um colapso.
Em cena, tais impressões são desdobradas em sucessivos letterings, peças de áudio previamente gravadas pelo mesmo ator e, principalmente, expressivas ilustrações que traduzem à linguagem dos quadrinhos a detalhada narrativa apresentada pelo personagem. Projetados em uma grande tela, letterings e ilustrações muitas vezes assumem o protagonismo da cena, conferindo ao personagem a função de reforçá-los ou comentá-los, sempre a uma certa distância e, recorrentemente, com certo humor, como se, em certo sentido, tanto ele quanto aquele quarto de pensão estivessem imunes à tal epidemia.
Essa característica narrativa do texto – e da montagem, como um todo – permite construir uma análise ao mesmo tempo sofisticada e poética da problemática urbana, destacando aspectos como a violência das relações interpessoais e institucionais (“cada um desses homens parecia carregar a mochila de um soldado quando vai para o front de guerra”) e a própria aceleração da vida (“possuídos pela incontida necessidade de andar sem parar”).
Por outro lado, a aparente separação entre a narrativa e os acontecimentos da cena por vezes dá impressão de que se trata de uma história já encerrada e plenamente conhecida pelo personagem, que não se vê em perigo e muito pouco se afeta pelos fatos narrados. Enquanto a cidade apresentada no telão e no texto do espetáculo parece estar em plena revolução, o quarto de pensão que vemos no palco permanece quase inalterado ao longo do espetáculo, tal qual os estados de ânimo do personagem, quase sempre imerso na escrita e na leitura de seus relatos.
Breves situações dramáticas são inseridas em cena a partir de telefonemas da mãe do personagem, que por duas vezes atravessa a encenação, criando um produtivo contraste entre os grandes acontecimentos da cidade e as pequenas preocupações domésticas e familiares que, alheias à grande narrativa, reivindicam sua importância. O desenvolvimento dessa dimensão íntima do personagem, no entanto, acaba perdendo destaque ao longo do espetáculo, progressivamente ofuscada pelas funções de narrar e comentar os últimos acontecimentos de Urbanus.
Espetáculo aberto a múltiplas leituras, “O Urro” é fruto de um projeto antigo de Carlos Rocha. A montagem, entretanto, estreou há pouco mais de um ano após as manifestações de junho de 2013, em meio a uma clara crise civilizatória que persiste até os dias atuais. Ainda que não esteja em sua raiz, o contexto presente certamente atualiza o sentido da obra, dentro da qual se defende, de modo poético e contundente, uma urgente necessidade de reorientação da atividade humana. “Diante a uma iminente catástrofe da raça, estamos de alguma forma apertando o imaginário botão genético interno… e dando início ao processo de reiniciar a espécie!”, sentencia Dilermando.
Mesmo que vislumbrada à certa distância pelo público, que, tal qual o personagem, assiste à revolução como se dela não fizesse parte, a experiência da fictícia Urbanus estabelece claros diálogos com o momento presente, reunindo em si reflexões construídas desde o surgimento das primeiras metrópoles por sociólogos como Georg Simmel (1858-1918) e Walter Benjamin (1892-1940), assim como pelo pioneiro Charles Baudelaire (1821-1867), não por acaso apontado pelo personagem central de “O Urro” como seu poeta predileto.

— por Luciana Romagnolli —
Entrevista originalmente publicada na revista Urdimento, v. 2, n. 23, dez. 2014.

Em seu empenho por traçar uma filosofia do teatro, o ensaísta, crítico e teórico argentino Jorge Dubatti reconhece que, assim como a arte em geral, o teatro passa por um processo de “desdefinição” com a emergência de acontecimentos artísticos fronteiriços desde o início do século XX; contudo, apesar dessa desdelimitação com outras artes e com a vida, Dubatti identifica ainda “uma singularidade na teatralidade que é sua estrutura matriz” (2007, p. 14) e que o diferencia de outras manifestações culturais também fundadas na representação, como o cinema, a televisão e o jornalismo. Essa singularidade é “o resgate do convívio”, ou seja, “a reunião sem intermediação tecnológica – o encontro de pessoa a pessoa em escala humana” (Dubatti, 2007, p. 20) em uma “encruzilhada espaço-temporal cotidiana” (2007, p. 43).
(…) Na entrevista abaixo, realizada em fevereiro de 2014, no Centro Cultural de la Cooperación, localizado no centro da cidade de Buenos Aires, o teórico argentino relaciona sua ontologia teatral às possibilidades de dramaturgias conviviais, à crítica de teatro e à necessidade de uma mudança de paradigma na pesquisa sobre teatro cartografada que o entenda não como linguagem tão-somente, mas também como acontecimento
Luciana Romagnolli e Mariana Muniz – Se pensarmos a dramaturgia fora do logocentrismo como um conceito expandido que inclui a articulação de sentidos e efeitos num espetáculo, é possível pensar o convívio como elemento que pode ser trabalhado pelo dramaturgo e pelo diretor, de modo que se possa evidenciar a relação de convívio no espetáculo?
Jorge Dubatti – Como você disse, o conceito de dramaturgia se ampliou enormemente, do ponto de vista do sujeito produtor, do sistema de referência, da edição etc. Acaba de sair no Chile um trabalho meu sobre esse tema. Dentro dessa ampliação, entraria o que podemos chamar de dramaturgias conviviais. São aquelas dramaturgias que, seja pela liberdade que tem o ator para interagir com os espectadores ou pela imposição do convívio sobre o material da cena, produziriam um caso particular. Digamos que o ator deixa de ser uma simples tecnologia do diretor para transformar-se em um gerador de acontecimento convivial, que implica produção de dramaturgia. Nesse sentido, creio que a dramaturgia convivial é vivida todo o tempo, inclusive nos espetáculos em que o ator está determinado a cumprir com um determinado protocolo de representação do texto ou a cumprir com as instruções de um diretor, porque o convívio produz modificações. Se alguém medir a duração de uma obra em cada sessão, verá que nunca é a mesma. Por outro lado, há mudanças na ordem dramatúrgica não só pela dinâmica de convívio, mas também pela dinâmica de produção de poiésis – a poiésis produtiva, segundo a terminologia da Filosofia do Teatro. Nesse sentido, há de se distinguir dois tipos de dramaturgias conviviais. Um tipo seria aquela que é natural do acontecimento convivial e vai acontecer sempre, mesmo que o ator trabalhe com quarta parede e se isole do mundo, essa dramaturgia vai estar em funcionamento. Outro tipo são casos muito particulares de distintas poéticas que trabalham com o que podemos chamar de uma “dramaturgia do ator em convívio”, no qual o ator interage permanentemente ou aproveita os estímulos. É como na Commedia dell’Arte ou no teatro de rua ou em algumas poéticas particulares. Na Argentina, temos a poética do clown, da improvisação e da comicidade, que são muito abertas à dramaturgia da produção de convívio a cada noite. Há vários grupos que têm essa poética instaurada. Um caso que eu nomearia como exemplar é do La Banda de la Risa, que trabalha com uma margem muito forte de dramaturgia convivial, modificando permanentemente as apresentações com estratégias que são muito parecidas com as da Commedia dell’Arte, como o canovaccio e a construção de lugares inesperados dentro dessa dramaturgia.
Luciana e Mariana – O segundo tipo de dramaturgia convivial, você relaciona ao ator. Com outros elementos, como luz e cenário, também seria possível criar esse tipo de poética da dramaturgia convivial?
Jorge Dubatti – Sim. O que creio é que o específico do teatro, seu núcleo central, é o ator. Há cenas neotecnológicas em que se produzem combinatórias, mas o que não se pode subtrair é o ator. Ele verdadeiramente é o gerador da ação, da poética e do acontecimento. Isso seria a refutação da teoria de Josette Féral. Féral diz que a dramaturgia é o olhar do espectador. Então eu poderia, neste momento, estar olhando para você e pensando nesta entrevista como uma obra de teatro. Não. A poiésis teatral diz que se trata de uma ética dialógica, uma política dialógica. Quando alguém vai ao teatro, vai compartilhar com outro. Não está fechado em seu próprio crânio. Uma ética dialógica seria entrarmos em acordo de que eles (os atores) vão produzir poiésis e nós vamos observar e nos integrar numa poiésis convivial. Essa é a grande diferença entre uma definição geral de poiésis e uma definição específica do teatral. Caso contrário, o teatro perde sua singularidade. É claro que existem zonas de liminaridades, cruzamento e perda de limites. Mas a singularidade (do teatro) é haver uma “figura de ação” que comece a produzir poiésis e, a partir daí, detonar todo o mecanismo. Essa figura é o ator.
Luciana e Mariana – Faz sentido dizer que, quando o teatro evidencia a poiésis convivial, reitera sua importância na atualidade?
Jorge Dubatti – Absolutamente. É claro que há uma grande variedade de poéticas e, dentro de uma ética do científico (estou trabalhando muito esse tema), tenho que valorar e respeitar todas as poéticas.
Luciana e Mariana – Ou seja, ser um espectador “politeísta”, como você diz em “Filosofia do Teatro I”.
Jorge Dubatti – Exatamente. Chamo de cânone da multiplicidade. Um artista pode dizer o contrário: só é arte o que eu faço. Mas um cientista não pode fazer isso. Se sou investigador, tenho que reconhecer tudo que está acontecendo e aceitar que há muitas formas de fazer teatro. Mas há algo interessante que é um núcleo de teatro, com estabilidade, que provém da Antiguidade e segue vigente. O acontecimento é efêmero, mas a memória não. Há uma memória do teatro que segue funcionando e teria a ver com esse núcleo central. O núcleo fundamental, como disse Grotowski e também Peter Brook, estaria dado no sistema de convenção do século V a.C, com a tragédia e a comédia gregas e os mimos romanos. Nesse sentido, gosto muito de usar a palavra teatro. Muitos perguntam por que não falar em “artes cênicas”. O problema com as artes cênicas é que todo mundo se apropriou da palavra cena: a sociologia, a literatura, as artes digitais. Eu teria que separar artes cênicas conviviais e não conviviais. A palavra teatro, usada no sentido de origem, não o moderno, implica todos os elementos dessa estabilização da linguagem teatral que continua vigente até hoje. Teatro significa lugar, um mirante, onde alguém vai ver algo que aparece. Por outro lado, há a atividade de olhar. Portanto, na palavra teatro estão inscritos o território, o objeto observado e o observador. Voltando ao núcleo, as combinatórias são infinitas, especialmente depois do choque das vanguardas, muito estimulante para se ler a História [do teatro]. Por que não sustentamos que o primeiro ator foi Homero? Ali havia convívio, poiésis e expectação. Se fizermos todo esse protocolo de regresso à História e voltarmos a pensar nos processos, além da multiplicidade aparece um elemento irrenunciável, que é o ator. Há um grande dramaturgo argentino, Mauricio Kartun, que diz: o teatro é um corpo. O que está dizendo é: o teatro é um corpo de um ator que produz acontecimento e estabelece uma ética dialógica com o espectador. Nesse sentido, creio que as luzes, a cenografia, a música, são todos elementos muito importantes, mas são acessórios porque, como diz Grotowski, poderíamos tirá-los e o acontecimento se produziria. Então, eu instalaria dois corredores teóricos. Um seria de quantas possíveis combinatórias há dentro das linguagens teatrais: infinitas. E outro corredor teórico seria o que não pode faltar no acontecimento teatral: a reunião dos corpos viventes produzindo poiésis em convívio, onde haja geração corporal de poiésis e expectação. Seriam duas pertinências diferentes, como dizem os estruturalistas. Por isso, no fundo, a dramaturgia convivial é constitutiva do teatro. Em alguns casos pode ser sistêmica, porque se busca estimular esse convívio, em outros casos não, mas ainda assim está presente.
Luciana e Mariana – Falta se pensar mais sobre o espectador e a experiência de expectação na teoria de teatro?
Jorge Dubatti – Você está tocando em um tema que, para mim, é um tema-chave. Nós temos armado uma epistemologia do teatro baseada na ideia do teatro como linguagem. Uma ideia da linguagem como um corpo que produz signos e que são expectados por outro corpo que produz sentidos através desses signos. Toda a teoria básica é a da comunicação. Mas há outra coisa que é importante e é justamente a convivialidade. O grande problema em que nos encontramos é que há de se armar uma epistemologia da convivialidade, não da linguagem, porque a linguagem não necessariamente é o que ocorre no acontecimento. Se estou observando um corpo que produz acontecimento, de golpe me abstraio porque o relaciono com alguma coisa e deixo de perceber os signos. Onde fica a teoria de que houve comunicação ou que esse signo produziu recepção em mim? Nesse sentido, temos que reinstalar um campo epistemológico, que muitas vezes foi tapado pela vontade de certeza da semiótica. Por exemplo, leio um texto, analiso os signos desse texto e os projetos ao funcionamento do espetáculo, pensando que foi isso que se passou. A epistemologia do convivial implicaria ver como fracassa a linguagem. Beckett disse: tenta de novo, fracassa de novo, fracassa melhor. Tenho que ver onde fracassa a teoria semiótica porque é aí que estou entendendo a singularidade do teatro.
Luciana e Mariana – O que não é texto, mas é acontecimento.
Jorge Dubatti – Sim. Tenho que poder pensar o acontecimento pelo que ele é, não pelo que deveria ser enquanto linguagem semiótica. Não digo que não há linguagem, mas que, no acontecimento, há muito mais que linguagem. E o acontecimento, como pertence à cultura vivente, implica categorias epistemológicas muito importantes, como a categoria do perdido, da ignorância – porque há coisas que vou ignorar. Trabalho com espectadores todas as segundas, na Escola de Espectadores, de março a novembro, e estou disposto a não saber o que se passou porque o acontecimento é muito mais intenso do que os relatos posteriores ou uma estatística. Uma coisa que me parece muito importante – e estamos tratando de aprofundá-la – é aceitar que o acontecimento teatral nos enfrenta com um limite. E que esse limite não se pode negar nem se pode tapar. O que a semiótica fez foi negar e tapar os limites, pensando que se estudamos as cadeias de signos, estudamos o acontecimento. Estamos nas portas de uma nova maneira de entender as coisas, onde nos colocamos num lugar de reconhecimento e de fracasso.
Luciana e Mariana – Essa é uma tarefa para o pesquisador e uma tarefa para o crítico?
Jorge Dubatti – Totalmente.
Luciana e Mariana – Como fazer isso? Como falar do acontecimento?
Jorge Dubatti – Uma coisa importantíssima é começar a ter categorias que reconheçam a realidade do acontecimento, como a categoria do “teatro perdido”. Quando vou falar do teatro como crítico, eu falo no passado, não no presente. Estamos falando do perdido, mesmo que o tenhamos visto há dez minutos. Isso implica em primeiro lugar que, a partir dessas categorizações, formulemos do que podemos falar e do que não podemos falar. Quando reconhecemos aquilo do que podemos falar, aparece um monte de questões que se instalam em certos parâmetros. Eu tenho, como crítico, dez grandes parâmetros que têm a ver com um trabalho sobre auto-observação e observação do acontecimento. Trabalho muito com a ideia de auto-observação, o relato do que passou comigo. O acontecimento em princípio é um laboratório de auto-observação tanto para o artista quanto para o espectador e para os técnicos. Há de se habilitar o lugar do técnico. Na Argentina, agora chamamse técnicos-artistas, porque se reconhece que estão fazendo algo muito importante para a poiésis. A técnica é tão protagonista quanto o trabalho do ator e do espectador. Então, auto-observação e construção de discursos sobre essa auto-observação, tanto pelo espectador, quanto pelo técnico e pelo artista. Começam a aparecer categorias, observações históricas, regularidades, reflexões de todo o tipo sobre as conexões com a história e o comportamento. Mas tudo isso baseado no reconhecimento de uma ignorância. A ignorância qual seria? O objeto se perde. Estudar um vídeo não é estudar um acontecimento. Tem-se que estar dentro do acontecimento. E outro tema muito importante é a excepcionalidade do acontecimento. Posso entrar no teatro drogado, feliz no meu mundo, e o espetáculo me parecer maravilhoso porque estou disposto a que seja maravilhoso. Ou o contrário: entro após uma má notícia, de que estou doente, não sei, estou desesperado e odeio o espetáculo porque o relaciono a isso. São muito importantes as categorias da auto-observação, da autodisciplina, da autoconfiança. E algo tão importante quanto é alcançar um lugar trans-subjetivação como espectador, não apenas o subjetivo. Está muito relacionado à ideia da morte: se eu não estivesse hoje aqui, a apresentação igualmente estaria acontecendo. Posso abstrair a minha própria presença e pôr em jogo a observação, não como um sujeito afetado por ela, mas como algo que está acontecendo na minha ausência. Isso implica um exercício epistemológico. No teatro nem tudo é subjetivo. Se estou sentado e a meu lado uma senhora está morrendo de rir, posso observar isso como uma instância objetiva do acontecimento. Simultaneamente, na ordem subjetiva, posso dizer que não me interessa, me incomoda, posso valorar o que está acontecendo. São muitas estratégias distintas — passei o verão escrevendo sobre isso. Outra estratégia é uma espécie de diálogo com pessoas ausentes no acontecimento. Sabe quando Eugênio Barba diz que pensa o espetáculo para seis espectadores – uma criança, Borges, um músico, um cego etc.? Essas pessoas não vão ao acontecimento, mas Barba o está construindo a partir de um lugar de pergunta, tirando-o da instância estritamente subjetiva dele. Eu sempre fantasio que vou ao teatro com dois amigos – que obviamente não vão -, o Martin Esslin, crítico criador do conceito de teatro do absurdo, e Susan Sontag, a intelectual americana. Sempre me pergunto o que estariam vendo eles que eu não estou vendo. Trata-se de pensar não só o que estou vendo, mas o que poderia estar vendo e o que deveria estar vendo. Então, abre-se um monte de possibilidades à pergunta sobre os convívios, relacionadas à auto-observação, à observação do outro e a instâncias imaginárias que permitam fazer ao acontecimento perguntas que não se faria por sua própria subjetividade.
Luciana e Mariana – Se pensarmos na processualização de espetáculos, característica do pensamento de vanguarda nas artes, pela qual se traz elementos do processo criativo para a obra, há uma relação entre essa prática e o convívio?
Jorge Dubatti – A grande pergunta que se deve fazer é o que eu posso conhecer de um convívio. O convívio é um objeto de estudo evanescente, absolutamente imprevisível. Muitas vezes é difícil predicar algo sobre esse objeto. Então aparece uma pergunta epistemológica interessante: quais são os limites de conhecimento do convívio enquanto objeto? Dentro dessa grande pergunta há uma em particular que seriam os estudos dos processos de convívio. Podemos dizer que cada convívio é absolutamente diferente de outro. Posso encontrar regras de regularidade, mas talvez o mais interessante não seja a regularidade, mas aquilo que o convívio muda. Espetáculos que me interessam muito, vejo-os mais de uma vez. É impressionante não só como eu mudo na relação com o acontecimento já tendo visto o espetáculo uma vez, mas também como muda o acontecimento pela nova composição do público e pelo estado dos atores. Isso já foi muito dito: a apresentação nunca é a mesma. Mas há de se produzir categorias. Temos que partir da ideia de que estudar os convívios implica estudá-los micropoeticamente. Não vou estudar todos os convívios porque não poderei estar lá. Se, dentro de todos esses convívios, seleciono um, aí estarei estudando uma micropoética em particular. Questiono muito as observações dos críticos – e me incluo – valorando um espetáculo pelo que se passou numa apresentação com outros críticos [na plateia]. Há que se poder nomear certos critérios. Tenho pelo menos dez grandes critérios: efetividade, historicidade, poeticidade etc. Mas o mais importante é o micropoético: reconhecer cada convívio e cada acontecimento como único e singular e não necessariamente representativo dos outros. Há algo que contradiz a investigação: tratamos de generalizar algo que não se pode generalizar. A relação está dada por uma circunstância, um momento, uma tensão de relações absolutamente micro, não esse modelo abstrato. Por isso sempre que estudamos o convívio peço aos espectadores que digam que dia foi, em qual apresentação, se esteve presente ou não, sobre qual vídeo está trabalhando e que esclareça que está trabalhando sobre um vídeo porque é uma observação extremamente relativa. Sinto que, de tudo que se escreveu sobre teatro, trabalhou-se sobre generalidades, sobre sistemas. E a sensação é que nos acontecimentos essas generalidades não necessariamente estão presentes. Por exemplo, fui a uma apresentação em que espectadores aplaudiram de pé e depois ouvi de outra em que os espectadores dormiram, saíram na metade. Estamos falando do mesmo objeto? São dois objetos diferentes: um convívio e outro convívio.
Luciana e Mariana – Na Escola de Espectadores, são quantos anos de trabalho?
Jorge Dubatti – Quatorze anos.
Luciana e Mariana – E, nesses anos, o que você pôde sentir de como os encontros semanais podem mudar a relação desses espectadores com o teatro e a sua com esses espectadores?
Jorge Dubatti – É um fenômeno muito complexo. Comecei com oito pessoas na escola e há seis que continuam vindo em 14 anos. Neste momento, a escola tem 340 frequentadores. Encontram-se pessoas com respostas muito distintas, histórias diferentes de relação com teatro. Gente que vem com estrutura muito armada, vai ver teatro comercial e nega, vai ver teatro independente e mesmo que seja uma porcaria encanta-se. São cabeças muito diferentes, 340 tipos distintos. Mas o que eu vejo como função da escola é que possa construir o que gosto de chamar de espectador companheiro. É um ponto contrário ao espectador emancipado de (Jacques) Rancière. O espectador companheiro está disposto a dialogar com o que acontece, tomando a instância objetiva do espetáculo, de reconhecimento do que está acontecendo ao redor, e estabelecendo um diálogo entre o que se passa com ele, com os outros e com o artista, nessa instância trans-subjetivada de colocar-se em outro lugar. A escola multiplica a vontade de escuta, de atenção a outras pessoas do convívio e aos artistas. A escola gera conhecimento, o frequentador que vem há dois ou três anos está muito preparado para ler linguagens diferentes. Gera uma mudança muito forte no boca a boca. Se gostam do espetáculo, os 340 se multiplicam por dez rapidamente, há uma rede de oralidade. Gera um movimento de público para o espetáculo.
Luciana e Mariana – Como você desenvolve a pedagogia teatral na Escola?
Jorge Dubatti – O que eu sempre digo: é uma escola, não é um clube. Não é um lugar de debate aonde cada qual vem dizer o que lhe ocorre. Há uma franja educativa. Eu dou aulas com um critério construtivista, não condutivo. Não lhes digo o que têm que pensar ou fazer. Eu lhes dou ferramentas. Por exemplo, suponhamos que vejamos um “Hamlet” dirigido por Daniel Veronese. Na primeira hora da Escola, vou dar ferramentas para compreender o texto de Hamlet, compreender a tradução sobre a qual se está trabalhando, ver uma tecnologia da reescritura (o que chamaríamos adaptação), conectar com o pensamento e a poética de Veronese e do que seria um Shakespeare em sua historicidade. Em nenhum momento digo se devem ou não gostar. Eles brigam muito comigo. Digo para verem algo e voltam dizendo que é uma porcaria. Peço que se deem tempo. Já aconteceu de me dizerem que um espetáculo é um desastre e, sete anos depois, o mesmo espectador me dizer que agora entende porque foi ver tal coisa. Isso é uma aprendizagem e uma abertura que tem muito a ver com a vontade de abrir a cabeça. Gosto muito de falar em amigabilidade, disponibilidade espiritual com os acontecimentos. Na segunda hora, vêm os artistas, o diretor, o dramaturgo, o produtor, os técnicos, e o que fazemos é escutá-los muito atentamente. Não dizer-lhes o que nós pensamos mas escutar o que eles pensam. E fundamentalmente as perguntas são: como trabalharam, como veem o mundo, por que fizeram isso, quais os principais procedimentos e perguntar muitos detalhes. “Na cena do monólogo tal, você faz de costas. Por quê?”. Sempre aparece a ideia do diálogo com o artista. Uma ideia de companheiro – que vem do latim, compartilhar o pão. O convívio é justamente a mesa, uma reunião para beber e comer. Tenho uma espécie de classificação dos contramodelos de espectador, os que eu não recomendo, e dentro deles está justamente o não-companheiro, o espectador assessor, credor, carrasco. São distintos tipos de espectadores que reconheci e, quando aparecem, trato de lhes trazer consciência. Já se passaram na Escola casos incríveis, como trazer um mestre de trajetória impressionante, que se digna a vir conversar conosco, e nem começou a falar quando uma senhora levantou a mão e disse que o espetáculo não lhe interessou porque é uma merda. Isso seria o espectador carrasco, combativo, que não vai disposto ao diálogo, mas para violentar. Isso é muito midiático, está na televisão, muita gente pensa que isso é o protagonismo. Alguns espectadores da Escola me disseram que vão lá questionar e criticar os artistas. Não se trata disso, se quiserem, que abram um blog e escrevam o que queiram. A Escola é um espaço de diálogo em termos de companheirismo. Às vezes, isso me custa muito. As pessoas têm uma tendência à violência e não sabem dialogar, mas quando isso acontece, eu o freio, porque não é a função da Escola. Não é ensinar o que se tem que pensar ou as conclusões, mas exige da pessoa a disponibilidade de receber ferramentas. Uma dessas ferramentas é tratar de entender a cabeça do artista, o que ele quis e propôs. Depois, considere se conseguiu ou não.
Luciana e Mariana – No Brasil, há uma escola em Porto Alegre. É possível se pensar em escolas em outras cidades?
Jorge Dubatti – Um grupo me chamou para abrir em São Paulo. Creio que sim. Vivendo em Buenos Aires, que é uma grande capital teatral, comecei com oito pessoas e com muita resistência. Ninguém entendia que teria que estudar para ser espectador – eu dizia, claro que tem de estudar, eu vivo estudando para ser um bom espectador. Não entendiam do que teriam aulas. Sinto que isso já se instalou aqui. No Brasil, a Escola de Porto Alegre começou com 150 pessoas. Já está criada a expectativa. Fez-se uma reunião no Festival Santiago a Mil e se falou da Escola de Espectadores de Buenos Aires. Mas creio que em São Paulo já há um rapaz, o Flávio Desgranges, que está fazendo escola de espectadores, mas nas escolas de educação básica. São duas coisas distintas. Não trabalho com escolas, trabalho com espectadores. Estamos armando um módulo para trabalhar com as escolas, mas sou muito crítico da forma que se está trabalhando neste momento porque não creio que se deva transformar o espetáculo e o acontecimento em um espaço pedagógico. Tem que ser puro espaço de gozo. Levar as crianças para que se divertir, desfrutar, como uma excursão. E que não se transforme em uma aula, como de literatura.
Luciana e Mariana – Seu livro será publicado no Brasil?
Jorge Dubatti – Aparentemente, sairia uma introdução à Filosofia do Teatro, publicada em São Paulo pelo Sesc. Estou terminando a versão e vou mandá-la, terá de ser revisada, aprovada, traduzida. Tomara! Me encantaria porque estou viajando muito ao Brasil, tenho conexões com universidades de distintos lugares e vejo que estamos na mesma coordenada. Estamos em uma etapa de abertura epistemológica a uma consideração do teatro a partir de um outro lugar. Gosto muito do pensamento cartografado. Não se trata de impor um novo paradigma universal, como a semiótica pretendeu ser. O que se trata é de, problematizando as questões, estudar os contextos locais. Eu estudo Buenos Aires e a partir daqui produzo um pensamento teórico. Me parece que o mesmo têm de fazer Brasil, Uruguai, Córdoba. E isso está acontecendo. É uma ideia de uma cartografia radicante. No Rio se estuda uma coisa, em Buenos Aires outra, em Córdoba outra, em estreita relação com o teatro que vemos. Senão, gera-se essa coisa espantosa é termos de falar sobre o que está se passando na Alemanha, quando não é o teatro que vemos. Isso nos obriga a não termos objeto de estudo, a repetir a bibliografia e a desconhecer nosso próprio objeto de estudo. Uma cartografia radicante diria: tenho que pensar o teatro a partir do que eu sei. Tive uma entrevista com um grande pesquisador francês que levei à Universidade de Buenos Aires, e ele disse aos alunos: “Porque vocês viram Planchont…”. Não. Ninguém viu. Ele me olhou: “não conhecem Planchont?” Chegou um momento em que me disse que não poderia prosseguir. Eu lhe disse para falar de teatro, não das obras que ele viu, porque eles falariam das obras que eles viram. Uma cartografia radicante implica conhecer a própria territorialidade e estabelecer diálogos de conexão com França, Alemanha, com todo lado, mas a partir do que se conhece, dos acontecimentos. Não tenho porque estar falando de Bob Wilson, vou falar do que vejo esta noite e daí vou produzir pensamento e me conectar com toda a bibliografia mundial. Essa é uma mudança muito importante porque começamos a reconhecer que temos que falar do que se passa e não do que deveria estar passando. Falei disso com o Lehmann em Porto Alegre, num encontro sobre Bertolt Brecht, conversamos nos almoços, caminhando pela rua. Disse-lhe: “o conceito que você trabalha de pós-dramaticidade não me serve para pensar o teatro de Buenos Aires, o teatro que eu vejo não é o que você diz”. E ele me respondeu uma coisa muito sensata: “Eu nunca falei do teatro de vocês, estou falando do que eu vejo lá”. Isso me parece muito importante, devemos começar a falar de coisas concretas, e claro, depois ouvir atentamente ao Lehmann para ver se o que ele diz tem a ver com o que vivemos. Nos congressos, muitas vezes, sinto que estamos vendo uma coisa e falamos de outra. Acabamos de ver uma obra de teatro em que há personagem, história, dramaticidade e, depois, analisamos esse espetáculo falando de pós-dramaticidade e morte do personagem. Não tem nada a ver com o que vemos. A América Latina tem uma missão agora: começar a falar do que se passa nos teatros locais. Tenho que falar de Buenos Aires. E você tem que falar do teatro do seu lugar. E, claro, conhecer toda a bibliografia mundial.

A Prefeitura de Belo Horizonte apresentou hoje pela manhã, em entrevista coletiva, o novo trio de curadores do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte. Eduardo Moreira, Diego Bagagal e Walmir José compõem a nova curadoria, substituindo Geraldo Peninha e Jefferson da Fonseca à frente do evento.
O ator e diretor Eduardo Moreira é fundador do Grupo Galpão, coletivo que concebeu as primeiras edições do FIT, ainda nos anos 90. Natural do Rio de Janeiro, Eduardo mudou-se para Belo Horizonte em 1974. Fez suas primeiras incursões no teatro no final da década de 1970, desenvolveu uma trajetória premiada e, em 1982, fundou o Grupo Galpão, tendo participado de todas as suas montagens como ator, diretor (“Um Molière Imaginário”) e assistente de direção. Desde a fundação do grupo, tem sido responsável pela sua direção artística. Fora do Galpão, dirigiu trabalhos de grupos como o Clowns de Shakespeare, de Natal, e o Maria Cutia, de Belo Horizonte.
Diego Bagagal tornou-se recorrente colaborador do Grupo Galpão. É ator, diretor e dramaturgo, cofundador do grupo MADAME TEATRO. Especializou-se em ‘Criação Teatral e Performance’ pela London International School of Performing Arts (LISPA), assinou a direção e dramaturgia de espetáculos como ‘BATA-ME! (Popwitch)’ e ‘POP LOVE’ (2010), além do infanto-juvenil ‘Lilimão’ (2006). Em 2011, integrou a equipe do espetáculo ‘Eclipse’ do Grupo Galpão (BH), como assistente de direção do pedagogo russo e diretor Jurij Alschitz. Como ator, soma trabalhos em importantes centros de pesquisa, entre eles o Grotowiski Institute (Polônia) e a Compagnia Instabili Vaganti (Itália).
Walmir José é ator, diretor, dramaturgo e professor de teatro, tendo longa e sólida atuação no teatro mineiro. Natural de Belo Monte (MG), inicia a atividade artística no teatro estudantil, na Escola Técnica Federal, nos anos 1960. Até 1973, integra o grupo Gruta, dirigido por Alcione Araújo e, posteriormente, ingressa no primeiro grupo profissional de Minas Gerais, o José Mayer Produções. Em 1974, Walmir José funda, com outros artistas de Belo Horizonte e em parceria com a Associação Mineira de Imprensa (AMI), o Grupo de Teatro AMI, que atuou até 1979. Desde então, tornou-se nome importante na produção teatral mineira, seja como ator ou diretor, assumindo papel referencial na formação de cursos profissionalizantes e escolas de teatro.

Texto escrito para o Ateliê de Crítica e Reflexão Teatral ministrado por Luciana Romagnolli no projeto Diálogos Cênicos, a partir da aula-espetáculo de As Rosas no Jardim de Zula.
– Guilherme Diniz –
Uma mulher que, por razões insondáveis, abandona a casa, filhos e marido em busca de um real significado para sua existência; se lança abertamente ao mundo, colhendo dele os mais amargos e diversos botões para no fim plantar um vasto jardim de memórias, em que cada rosa abriga em suas pétalas partículas de experiências íntimas, sonhos e frustrações realizadas, e um passado controverso, enraizado no âmago de seu ser. Estamos em um jardim espinhoso talvez, mas não menos florido do que tantos outros.
As Rosas no Jardim de Zula é algo trágico, flerta com o drama, mas se acomoda na cadeira do documentário. O primeiro espetáculo da Zula Cia. de Teatro reconta parte da vida de Rosângela, mãe de Talita Braga (atriz integrante do grupo). Do momento em que se retira do lar às vivências vindouras que sua escolha acarreta. Em realidade, assistimos não à peça completa, mas a uma aula-espetáculo cujo objetivo era nos fazer conhecer as referencias artísticas e teóricas utilizadas, seu processo de pesquisa e criação, as transformações que a obra sofreu e como se efetuou sua forma última.
Uma das questões levantadas residia no caráter funcional do documentário. Mesmo que se associe a ele a habitual função de mobilização social e política, este fator se dá menos pela sua correspondência identificável com a realidade do que pela forma como ele rearranja símbolos e elementos reais e os reconfigura plasticamente, assegurando entre eles relações móveis, novas e geradoras de outros sentidos. Para a encenação em questão, seu aspecto documental possibilitava a reinvenção de memórias e sua adaptação cênica. Ademais, sua constituição fundada em acontecimentos reais fomenta reflexões indagativas a respeito do que é ser mãe e de como a mulher contemporânea se articula neste universo.
Sua fonte de pesquisa primária é a memória de Rosângela; os limites e potencialidades das reminiscências balizam tal construção teatral. A presença da não-atriz em cena, na projeção, acentua as vicissitudes e crises da representação cênica contemporânea. Sua imagem paralela à imagem da atriz que a interpreta intrinca seu papel e importância, além de questionar se tudo é passível de representação artística, se todos os extratos da realidade são cabíveis em personas/artifícios ficcionais.
O documentário Jogo de Cena (2007) de Eduardo Coutinho orientou o coletivo neste sentido. O filme coloca atrizes para interpretar, à sua maneira, relatos de anônimas, propondo um choque vívido sobre o que é real e até onde a representação abarca fidedignamente um fato. A poética fílmica de Coutinho foi, para Andrea Quaresma e Talita Braga, um manancial de apontamentos sobre o que significa ser fiel (ou não) à realidade e sobre o apoderamento de narrativas alheias compreender detalhes que mesmo uma boa atuação pode não mostrar. O ator traz algo de pessoal para a personagem e molda, através de sua presença cênica, a imagem do outro, conferindo-lhe características suas.
Outro ponto-chave debatido na aula-espetáculo é o lugar da atriz Talita Braga na qualidade de filha da documentada. Qual o momento apropriado para revelar tal informação? Antes ou depois do espetáculo?
Independentemente do momento selecionado, o conhecimento público dessa informação coloca em segundo plano a atriz, destacando seu estatuto de “documento”. Este efeito carrega em si alavancas que podem reforçar o documentário e seu discurso, entretanto sua parcela de pessoalidade se avoluma consistentemente; se ganha legitimidade, esta vem cingida de subjetividade afetiva, tal resultado não depaupera a escritura cênico-dramatúrgica, pois ao diminuir a distância com o objeto estudado, produz atritos que jogam melhor no âmbito da empatia do que no reino improvável da imparcialidade absoluta.
O receio de, como filha, expor uma narrativa dessa natureza tão pungente contribuiu para Talita Braga repensar se era válido explicitar sua relação filial com Rosângela. Não era a intenção da atriz tratar a mãe como mero personagem, não obstante, é da natureza da arte ficcionalizar os seres que passam por seus domínios, uma má construção teatral poderia não somente tornar ficcional a história retratada, mas artificializar as circunstâncias, atenuando o fulgor que elas possuem.
O encontro com a diretora Cida Falabella norteou decisivamente o trabalho documental, conforme visto, suas direções estruturaram esteticamente o teor épico de As Rosas no Jardim de Zula. Durante a aula, quando Cida diz que era necessário não deixar algo se instalar demais, instantaneamente somos levados às teorizações de Brecht em relação a fragmentar a ação para não instaurar a ilusão teatral hipnótica no público, propiciando dessa forma o questionamento sobre o que é visto. Os momentos dramáticos, narrativos e documentais se mesclaram para vivificar as lembranças passadas e erigir a cena.
Haja vista de que se tratava de uma aula (e não só de um espetáculo), a metodologia pela qual as explanações se presentificavam levava em consideração dois quesitos: a evolução cronológica do desenvolvimento do espetáculo e a exibição, no telão, de como eram as cenas antes de serem mudadas. As constantes alterações pontuam claramente a autorialidade da obra e como os acontecimentos pessoais das duas atrizes influenciam seus estados cenicamente, dando à peça novos rumos continuamente.
Há uma sólida e longa ponte entre a filicida Medeia e as cândidas madonnas de Rafael. Ao longo de toda a ponte em ambos os lados dela estão as rosas de Zula. A imagem desmistificada da mãe, apresentada pelo espetáculo, bebe em fontes desses dois extremos. É interessante observar como a presença da ausência da mãe (des)estrutura todo o núcleo familiar. A maternidade ainda atua como base que sustenta a vida doméstica. Mas o que as sustenta? São somente os filhos e o marido responsáveis por tornar uma mulher plenamente realizada?
A saída de casa é, na verdade, uma busca interior da individualidade ofuscada. Tal atitude é um corte doloroso (para ambos os lados) nas cordas que manipulam as bonequinhas, chamadas de mulheres, um real abandono da limitadora Casa de Boneca. É, com efeito, um ato abrupto e tão indagável quanto a moral burguesa que ainda recai, sufocantemente, sobre a mulher. Por um acaso, isto também não é questionável?

Texto produzido para o Ateliê de Crítica e Reflexão Teatral, ministrado por Luciana Romagnolli, pelo projeto Diálogos Cênicos.
– por Guilherme Diniz –
Existe uma palavrinha (literalmente pequena) francesa – “jeu” – que abarca em suas singelas três letras, uma vastidão de significados; não uma vasta quantidade numérica deles, mas cada significação compreendida por ela é como um oceano infindável, que, para qualquer marujo experiente ou aprendiz, representa muita coisa. Jogo infantil, jogo esportivo e representação; são esses os significados abarcados pelo termo francês, inegável é, o quanto cada um deles simboliza para aqueles que já velejaram, genuinamente, em suas águas.
O Centro Cultural do Banco do Brasil sediou o espetáculo O Gol Não Valeu, cuja direção pertence a Sra. Cida Falabella, pela qual o elenco da ZAP 18 pôde mostrar a que veio. Se fosse um triângulo, o drama mencionado teria como vértices os três sentidos supracitados do vocábulo francês, tanto em forma quanto em conteúdo, a peça se faz valer dessa trindade semântica que, além de ter três elementos análogos entre si, harmoniza o seu desenvolvimento cênico.
O espetáculo traz ao tablado a espirituosa história do menino Rivelino. Riva, como é carinhosamente apelidado, é a cativante criança, por excelência, com os olhos vívidos e curiosos a respeito do mundo, nuançados pelo sentimento que nutre pela paixão (futebolística) nacional, um típico brasileirinho. Não só isso, Riva é defensor inconteste de seu time –Guaxupé FC – que, enquanto equipe, é um autêntico malogro. Todos estes atributos são aglutinados pela lépida presença do garotinho; seus nove anos não são paredes limitadoras de seu espírito vivaz, são, quando muito, grandes vazadas que o permitem colocar um braço, uma perna ou a cabeça toda para o lado de fora e experimentar aquilo que a pouca idade não lhe oferece. As mais habituais e as mais tresloucadas aventuras de sua vida passam pelo crivo de sua lógica infantil, esta racionalidade cândida pela qual os fatos costumeiros se avultam, os problemas se minorizam e as consequências dos atos são como fogos fátuos tão bruxuleantes quanto uma estrela solitária, ou seja, são minimamente visualizadas.
O texto de Francisco F. Rocha esculpe as palavras poética e comicamente. Estes dois sensos presentes na estrutura dramatúrgica alcançam tais efeitos por fazerem uso de elementos e referências conhecidas do futebol (narradores populares, cânticos e hinos reconhecíveis, ademanes, trejeitos e jargões esportivos), transladados para a cena por meio de imitações jocosamente fidedignas, cuja aproximação com o público sempre se presentifica, pois parte de generalidades cotidianas para alcançarem um estrato diferenciado no palco. Seu senso poético é instado justamente pela cotidianidade de suas partes, mas acrescido de particularidades cênicas, manipuladas pela representação. Dessa forma, a artisticidade do espetáculo, isto é, o modo como os elementos são manipulados, suscita a própria espetacularidade das referências citadas, seu caráter teatral, convencional, logo, poético, na acepção dramática da palavra.
Cida Falabella converge dois registros distintos e complementares estruturantes da encenação. O narrativo e o dramático. O primeiro é facilmente notificado pela narrações que desenvolvem o enredo. É mister dizer que temos dois protagonistas em cena que, em suma, são uma e só coisa, isto é, os dois são a mesma pessoa. Temos o garoto e o adulto Riva, rememorando suas vivências. Essa urdidura cênica é bastante peculiar. Pelo viés do Rivelino mais velho os fatos são lembrados como ações passadas, pelo olhar do outro, as instâncias são presentes. A deliciosa confusão temporal vai, progressivamente, sendo solvida para o derradeiro momento. Tal aplicação é interessante, porque possibilita ao público conhecer o passado e o presente do garoto, estabelecendo, assim, suas próprias diferenciações de ambos. Já crescido, Rivelino confronta suas próprias concepções de mundo, repensa algumas ações tolamente infantis, mas não abandona o substrato de seu ser. Entretanto, o emprego do recurso narrativo se enfraquece quando é unicamente ilustrativo; o ato de ilustrar por meio de palavras a ação que, logo em seguida, acontecerá, é uma repetição cujo resultado é a redundância de dois modos diferentes de apresentar um fato, não valorizando nem um e nem o outro.
O modo como sua direção manipula a área de jogo valoriza toda a espacialidade do palco, criando movimentações dinâmicas e mantenedoras do ritmo constante do espetáculo. Fator este que ressalta os desenhos de luz, devido à posição simultânea dos atores em várias partes do palco, e evidencia a funcionalidade do cenário. A respeito deste, as muitas mãos que o criaram (alunos da Oficina de Cenografia da UFMG, Ed Andrade, Cristiano Cezarino e Morgana Mafra), conferiram à sua composição verdadeira plasticidade visual e aplicabilidade cênica. Sua vistosa profusão cromática é um deleite para os olhos; mais do que isso, possibilita à direção de Cida elaborar saídas e entradas sutis, propicia jogos de cena divertidos e salienta uma das vigas mestras desta arquitetura teatral – o futebol. O telão do cenário é deveras significativo, sobretudo por abrigar projeções nostálgicas e evocativas de momentos emocionantes do esporte, extraídas da realidade, criando novos desdobramentos afetivos e empáticos para com o público.
São cinco atores em cena, e somente dois (Kely Anne e Gustavo Falabella) ficam a cargo de um personagem apenas, porém cada qual o interpreta em idades diferentes. O restante (Thiago Macedo Renata Andréa e Lucas Costa) interpreta vários outros que estão, de uma maneira ou outra, atrelados ao foco de ação principal. O grupo se mostra coeso e íntimo do texto e do tema; tal asserção se justifica pela fluidez dos diálogos, pela boa execução das marcações atorais e pela prontidão nas trocas de figurinos.
É válido ressaltar a versatilidade dos três últimos atores para compor diversas personas com certa riqueza de detalhes psicofísicos, os quais valorizaram o espetáculo na sua totalidade. Kely Anne parece ter sido uma escolha criteriosa para o papel. Ela se responsabiliza por levar à cena o menino Rivelino. Suas disposições fenotípicas – baixa estatura, cabelo curto, jovialidade física – corroboram para uma caracterização interessante do personagem, até mesmo sua voz aguda a permite abrir um vasto leque de inflexões que soam naturais e, visivelmente, não cobram um esforço prometeico. Mas seu grande mérito é a representação psicológica do garotinho. Kely retrata com ternura e delicadeza a criança, aquela que sorri para escamotear a timidez, que se aproxima dos outros com medo, simpatia e surpresa, até que, finalmente, a simpatia triunfa divertidamente. Não há infantilizações artificiais (na acepção mais baixa da palavra) na sua gesticulação, e nem há tentativas de tornar grandiloquente a presença de Rivelino. Prevalece a sutileza e a graciosidade natural de criança. Gustavo Falabella é o Riva crescido. O adulto e o infantil, além de comungarem o amor pelo futebol, partilham de um olhar sensível para com o mundo. Uma espécie de centelha sonhadora, o maravilhamento saudável em relação às coisas que acontecem. Gustavo, serenamente, traduz na sua atuação o elo afável com seu passado meninil.
O que lhe atribui significação social é menos o tema do que as circunstâncias de criação da peça. A ZAP 18 tem um reconhecido trabalho com jovens da periferia. A feliz mescla de arte e juventude, assentada sobre este tema que perpassa a conjuntura da sociedade brasileira como um todo, adensa possíveis debates sobre como seu povo se vê representado na forma futebolística, o nacionalismo associado ao esporte e a estreita relação deste com as artes espetaculares, no tocante às qualidades poéticas de ambos. Poder-se-ia indagar se o encontro de tantas pessoas (torcedores) num só lugar e com intuitos ora semelhantes ora dessemelhantes não se configura como uma espécie de teatralidade, levando em consideração sua qualidade de convívio e territorialização, segundo o argentino Jorge Dubatti, teórico e filósofo do Teatro.
O Gol Não Valeu, porém sua representação, sim; obviamente, não é a mesma coisa, mas para nós, é tão bom quanto.

– Luciana Romagnolli –
Incapaz de andar para frente, o caranguejo metaforiza mais do que a imobilidade de uma mulher cujo marido desapareceu na ditadura. É metáfora para uma sociedade que evita enfrentar – aqui, cabe a redundância: de frente (como o radical da palavra pede) – a barbárie cometida durante o regime militar (1964-1985) no Brasil. Enquanto países vizinhos buscaram incansavelmente os desaparecidos e puniram os ditadores, aqui aguarda-se a Comissão da Verdade modificar, quem sabe, um cenário de apatia pós-anistia. O caminho para frente está por desbravar.
Mesmo na arte, são escassas as proposições do olhar igualmente para vítimas, agressores e colaboradores. Se cabia ao teatro de resistência à ditadura opor-se o quanto pôde, meio século depois a equação social exige que se problematize todos os lados. Pode o maniqueísmo que elege vilões apaziguar melhor consciências – mas o que seria de Hitler sem uma população que o apoiasse ou se omitisse? Encarar os mecanismos deflagradores, legitimadores e perpetuadores da violência política torna-se novamente urgente em tempos de novos brados pró-ditadura.
Em “Câmera Escura”, os autores Carla Kinzo e Marcos Gomes aproximam-se dessa complexidade a partir da perspectiva de duas gerações. Alternam-se fragmentos de vida do casal desfeito quando o marido desaparece aos dramas do filho do desaparecido e da filha de um médico colaborador do regime. Por meio desta, a questão do carrasco recebe um primeiro olhar, indireto.
Na impossibilidade de preencher as brechas sem abafar a matéria viva das questões irrespondíveis sobre o período, o ato de contar a história sobressai à clareza da história contada. Torna-se difícil distinguir algumas relações entre personagens e fatos narrados, o que pode gerar leituras confusas. Mas o próprio ato de narrar ganha relevo na voz da mãe, confrontada com a inadequação das narrativas daquele tempo para fazer uma criança dormir. Aquelas são, sim, histórias para acordar os homens.
Ossadas não-identificadas deflagram a consciência adormecida dos dois jovens sobre o passado e suas heranças. Dispositivo assemelhado ao do filme “Corpo”, de Rossana Foglia e Rubens Rewald. Os restos mortais impõem à geração atual a evidência material de uma realidade ignorada pela memória.
A estrutura textual de “Câmera Escura” contamina-se por procedimentos da memória e do cinema. Nas indicações prévias do texto, a dupla de autores escreve que “a impressão de movimento de quadros parados se dá quando a velocidade mínima de sua projeção atinge 24 quadros por segundo”. Informação técnica convertida em poética parece ecoar na encenação dirigida por Maíra Lour. As cenas sucedem-se aquém da velocidade mínima: na iminência – mas “antes” – de as imagens porem-se em movimento. Retidas pela falta.
O palco nu inicialmente materializa o vazio – tanto o vazio teatral das ilimitadas possibilidades de Peter Brook, quanto o vazio do passado. Helena Portela e Val Salles fazem relatos emocionais sensíveis de seus lugares específicos de fala: a mulher abandonada e o homem desaparecido. Móveis preenchem o espaço à medida que a segunda geração o ocupa – e ocupa-se da herança indesejada entre trivialidades cotidianas. Cleydson Nascimento e Janaina Matter carregam uma defasagem emotiva em suas atuações. No caso dele, expressão da solidão de um rapaz diante de uma sociedade que lhe oferece como reparo o batismo de um empreendimento imobiliário. No dela, um tom afetado que gera estranhamento na frieza com que conta a morte do pai, mas revela uma inabilidade amorosa.
Com as projeções de super8, a encenação recebe um tratamento temporal imagético. A projeção chuviscada impõe a imagem da ausência, como texturas indiscerníveis sobre o espaço de ação dos personagens: uma memória borrada.
A inexatidão da memória denuncia-se também no discurso e nas duas variações da cena final. É a imagem-lembrança bergsoniana: aquela que tornaria possível o reconhecimento de “uma percepção já experimentada”. “Nela nos refugiaríamos todas as vezes que remontamos, para buscar aí uma certa imagem, a encosta de nossa vida passada”, diz Henri Bergson. Restaria retraçar os contornos dessa imagem-memória até torna-la nítida, clara. Até ser possível colocá-la em movimento.
*Espetáculo visto no dia 08 de dezembro de 2014, na Mostra de Dramaturgia do Sesi – Teatro Guaíra, em Curitiba.

– Luciana Romagnolli –
Em “Edom”, espetáculo apresentado na Mostra de Dramaturgia do Sesi-Teatro Guaíra no domingo, o dramaturgo e diretor Jean Carlos Sanchez reaviva a parábola bíblica de Esaú e Jacó. O tratado sobre inveja, ardil e perdão num núcleo familiar que viria a originar uma divisão entre povos desenvolve-se em um campo de forças opostas concorrentes, sob o signo da coexistência.
Como uma dobra no fluxo sensível do tempo, o passado mítico do embate entre os irmãos pela benção do pai Isaque encontra o presente do acontecimento teatral. Marca disso são os figurinos usados pelos atores Ade Zanardi, Kauê Persona e Thiago Mique – incluído o indefectível tênis all-star acenando para a realidade contemporânea aos espectadores, como modo de identificação fácil com um estrato social jovem e urbano.
Enquanto o tempo dentro da parábola transita linear, determinado na fala, nos deslocamentos corporais e da luz, o atrito entre texto e imagem faz com que os tempos passado e presente coexistam na encenação. Pretérito que já não é memória, mas simultâneo, modificando a percepção cronológica habitual. Ao romper esteticamente o fio da História, suprime-se então a distância tempo-espacial entre a parábola e o agora, aproximando os atos e afetos.
Sobre um chão coberto de areia, à semelhança das pinturas de Mark Rothko, os irmãos disputam poder às vistas cegas do pai. O traçado de seus movimentos é rigorosamente retilíneo, gestos e vozes depurados contêm-se em modulações precisas. Sobressai na cena um tratamento pictórico altamente estilizado, num ordenamento apolíneo de formas geométricas que se abrem ao vazio.
A abstração geométrica do cenário e da movimentação cênica confronta-se ao figurativismo dos personagens, que cumprem seu destino bíblico sobrepondo o épico ao dramático. Sintetizada em diálogos e narrativas, a parábola preserva os motivos e emoções envolvidos – exceto pela exclusão da participação da mãe e, em certa medida, pela reconciliação final, isenta de justificativas.
Tanto quanto o oscilar entre o épico e o dramático oferece perspectivas distintas do conflito, também a relação com o espectador sofre deslocamentos. Na cena inicial, a título de prelúdio, a luz fecha a imagem no rosto do ator, como um close cinematográfico para um quadro subjetivo. A partir de então, a cena se oferece ao olhar como um quadro. Num terceiro momento, porém, o pai (Adê Zanardini) posiciona a cadeira próxima ao público para narrar-lhe os acontecimentos, abrindo o eixo extracênico a uma relação direta que reforça a conexão temporal com o presente.
O gesto contemporâneo em “Edom” reside mesmo nessa simultaneidade de sensibilidades, na superação temporal, regida por um sentido ético de conciliação.
*Espetáculo visto em 07 de dezembro de 2014, no Teatro José Maria Santos, na Mostra de Dramaturgia do Sesi-Teatro Guaíra, em Curitiba.

– Por Soraya Belusi –
Ao comentar sobre o texto “O Declínio do Egoísta Johann Fatzer”, o pesquisador, dramaturgo e diretor da Companhia do Latão, Sérgio de Carvalho, destaca seu caráter declaradamente experimental e inacabado, sendo a obra muitas vezes chamada por “Fragmento Fatzer” e/ou “Material Fatzer” – do qual Brecht só publicou um núcleo, constituído de três partes e um coro, em 1931.
“Nunca completado, o ‘Fragmento Fatzer’ se tornou uma espécie de referência necessária quando o dramaturgo Heiner Müller apontou ali um sentido modelar, não só para sua obra pessoal, como para toda a dramaturgia política do século 20”, analisa Carvalho. Tal afirmação sobre o caráter laboratorial e referencial dos esboços-textos escritos por Brecht vai ao encontro da abordagem pela qual o grupo Teatro Máquina se relacionou com o próprio material textual que deu origem a “Máquina Fatzer – Diga que você está de acordo!”.
O coletivo cearense, em atividade continuada desde 2003, propõe, assim como sugere o título do espetáculo – que faz dupla referência ao nome do próprio grupo e, talvez, também ao Hamlet-Machine de Heiner Müller –, sua própria versão da situação e dos temas escritos por Brecht, tornando-os pré-textos, linguagem a ser devorada, decifrada e desconstruída, e sintetizada em repetições e padrões de movimentação gestual e vocal, em que se evidenciam a dimensão laboratorial que vai da gênese à cena.
Essa evidenciação se faz presente na aceitação do inacabado como forma, como poética, como dramaturgia, em que os esboços de personagem constroem e destroem aos olhos do espectador a certeza do sentido, através de uma língua inventada e sem sentido, este sim presente nos corpos, nos estilhaços de humano que se desenham em cena, na fragmentação permanente das relações e do sentido, como se a linguagem, a fala, o texto, já não dessem mais conta de dizer alguma coisa, de significar algo em um contexto de guerra.
A “fábula” da situação proposta por Brecht – em que quatro soldados desertores se veem confinados sob a “liderança” de um deles – é transformada em plataforma para a construção de desenhos no espaço; para a criação de jogos entre os corpos que se submetem, violentam e subjugam; para a dissolução da linguagem como veículo de sentido. Os elementos do texto original permanecem lá – o confinamento, a busca pelo alimento, as “tentativas” de consenso, a figura feminina –, mas são apresentados de maneira tão sintética e instável que funcionam apenas como sugestões, e delegam ao espectador o exercício de também aceitar as lacunas.
É justamente dos vazios que parece nos falar o espetáculo. A língua se apresenta em cacos, em que o sentido se faz presente mais na sonoridade do que nas palavras, estas inventadas e reinventadas aos olhos e ouvidos do espectador. As pequenas dimensões criadas pela concepção cenográfica, em contraposição com o espaço vazio ao redor no palco, recriam o paradoxo de liberdade x confinamento, assim como a repetição e a tensão dos fragmentos proporcionam a percepção do tempo circular e indefinido.
A dimensão laboratorial que se manifesta na criação do espetáculo – em que o “Material Fatzer” foi recriado e relido pelos criadores sem um modelo a ser atingido e assumidamente inacabado – transborda também para a dramaturgia da cena, esta também com formulações instáveis, que se desconstroem, que se assumem incompletas.