
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Por Marcos Antônio Alexandre
Faculdade de Letras – CNPq
A Campanha de Teatro de Palco e Rua de Belo Horizonte comemorou bodas de ouro e disponibilizou para o público da capital mineira mais de cem espetáculos de gêneros distintos como tem sido comum em suas edições, mantendo a tradição de fazer com que o público belo-horizontino ocupe os teatros da cidade nos meses de janeiro e fevereiro. Em sua 50ª Edição, as pessoas tiveram a oportunidade de assistir a 195 propostas espetaculares que foram apresentadas em Belo Horizonte e na região metropolitana, peças diversas e divididas tematicamente, como nos anos anteriores, em “teatro para adultos”, “teatro para crianças” e “dança”.
Da grade da programação da edição de 2025, eu selecionei 17 espetáculos para acompanhar, alguns para assistir pela primeira vez e outros para rever:
- Infantil: Chuá, criação e direção coletiva da Insensata Cia de Teatro, peça integrante da “Trilogia Entre Infâncias” produzida pela companhia;
- Adultos (e inéditos para mim): A casa de Bernarda Alba, adaptado e dirigido por Mariana Muniz[1]; Karaokétipos, dirigido por Tatá Santana; Pequenas infidelidades, dirigido por Sérgio Abritta; Transbordando love, dirigido por Beto Plascides; e Xou da Xac, dirigido por Juarez Guimarães Dias. Todas essas montagens foram apresentadas na Funarte e integraram os “Projetos Especiais”, que contou com a curadoria do ator e produtor Beto Plascides; e Eldorado, dirigido por Rony Camargo, assistido no Teatro da Biblioteca Pública;
- Adultos (e já assistidos): Aqueles dois, da Cia Luna Lunera, dirigido por Cláudio Dias, Marcelo Soul, Odilon Esteves, Rômulo Braga e Zé Walter Albinati; Banho de sol, da Zula Cia de Teatro, dirigido por Mariana Maioline e Talita Braga; Marilyn Monroe.doc, direção de Juarez Guimarães Dias; Peixes, solo com atuação e direção de Ana Regis, Sapato Bicolor, de Fabiano Persi com participação de Cláudio Márcio e direção de Polyana Horta; Sobre vivências, criação coletiva do Grupo Trama de Teatro; e Um pouco de ar, por favor, da Cia Pierrot Lunar, com direção de Chico Pelúcio;
- Dança: Pérola Negra – Devir, da Cia de Jazz Emaline Laia, e Você Perto…, da Cia de Dança do Palácio das Artes (ambos inéditos para mim).
Da lista selecionada, uma grande frustração foi o cancelamento de Casa, espetáculo da Zula Cia de Teatro, com direção de Andreia Quaresma, Gláucia Vanderveld, Kelly Crifer, Mariana Maioline e Talita Braga, previsto para ser apresentado no Teatro Marília, mas foi impossibilitado por “problemas técnicos”. Como espectador e fã do trabalho produzido pelo grupo, meu desapontamento foi eminente por se tratar de uma peça que ainda não tive a oportunidade de assistir, da qual ouvi elogios e pela qual gerei uma grande expectativa.
A maioria dos espetáculos revistos e revisitados por mim já foi assunto de alguma mirada analítica descrita em outros textos. Não obstante, é preciso reforçar que se trata de produções que considero especiais por possibilitarem que nós, como espectadores, possamos nos colocar em discussão e em desconstrução de diversas formas possíveis:
- Peixes, como uma proposta espetacular que nos coloca diante de uma questão social improtelável e relacionada às inúmeras práticas de abuso sofridas por milhares de mulheres na contemporaneidade;
- Banho de Sol, trabalho que também desvela e reelabora nuances e situações diversas sofridas por mulheres em condição de cárcere, muitas vezes sabidas, mas negligenciadas pelos órgãos governamentais e públicos;
- Sapato Bicolor, direcionando-nos para o universo dos bailes urbanos (soul music, black dance, hip hop…), uma produção cultural voltada para as populações periféricas e, em sua maioria, negra. Trata-se de uma atuação notável de Fabiano Persi, que com sua arte nos fornece um grande revival das performances negras produzidas nos espaços periféricos das grandes cidades. A inovação dessas apresentações é o fato de que o ator convidar artistas negros e negras para estarem consigo em cena;
- Um pouco de ar por favor, ressignificando o fazer teatral, as três personagens colocam em jogo suas “impotências”, trazendo para discussão as dificuldades psicológicas e sociais que vão minando nossas ações e desejos, deixando-nos, cada vez mais, com a sensação de “falta de ar”;
- Aqueles dois, um espetáculo que continua reverberando em mim como quando o assisti em sua estreia, a 18 anos atrás, em 2007. O trabalho mantém o frescor e a força do texto, das partituras físicas e dos jogos que são propostos pelos quatro atores em cena para vivenciarem as nuances do universo de Raul e Saul. A maturidade dos intérpretes apenas evidencia a qualidade do elenco, dando mais credibilidade ao espetáculo e ao seu sucesso, mesmo quando representado no grande palco do Palácio das Artes, espaço que por suas características e dimensões distancia o público dos atores, mas não consegue limitar a experiência dos espectadores na recepção dos textos e das ações performativas dos atores-personagens.
Os dois espetáculos de dança assistidos incitam reflexões para pensar os corpos dos bailarinos-intérpretes em suas dimensões performativas e sociais. A partir de uma primorosa direção de Henrique Rodovalho, que também assina a coreografia, o cenário e a iluminação, a técnica do elenco da Cia de Dança dos Palácios das Artes nos salta aos olhos, desvelando uma dinamicidade cênica, colocando-nos diante de uma produção espetacular que incide em nós, como espectadores, a experiência de vivenciar formas distintas de conexão conosco e com outras pessoas, tudo isso mediado pelo corpo, voz, partituras e paisagens coreográficas e imagéticas trazidas pelo elenco para o palco. Esta busca de realizar um encontro com o público também se dá nos trabalhos do coletivo de Jazz Emaline Laia no espetáculo Pérola Negra, por meio do qual, a partir da experiência do jazz, o grupo se pauta nas especificidades da diáspora africana. Destaca-se a presença cênica dos bailarinos-intérpretes negros da companhia, cujos gestos são amplificados por meio de suas identidades, enaltecendo as particularidades da coreografia proposta, que exalta por meio das músicas e as imagens e as paisagens negras convocadas pela dança, friccionando as temporalidades, a espacialidade e os lugares de memória evocados pelas corporeidades dos bailarinos-performers.
Entre os trabalhos inéditos assistidos fui seduzido pela peça Karaokétipos, da qual gostaria de trazer algumas considerações.
Karaokétipos
Fotos: produção do espetáculo
A montagem dirigida por Tatá Santana é uma festa, um verdadeiro encontro de público e performers. A atuação, concepção e dramaturgia é assinada coletivamente pelo elenco, composto por Ana Cecília, Arthur Barbosa, Cora Rufino, Gustavo Faraco e Jefferson Alda que emprestam seus corpos e personas para darem luz, respectivamente, às personagens Alemão, Kântor, Kátia (Cassia Samurai), Lola e Angel. A sinopse divulgada pela produção revela:
Você entra em um teatro, ou é um bar? É um karaokê! E hoje a gente vai cantar aquela que não pode faltar! Você se senta. A garçonete empilha copos, um cliente sabe os segredos dali, a dona do bar canta em línguas, o técnico coleciona sonhos e uma cliente misteriosa está a uma música de desistir de esperar o amor, você viu ele? Uma música sobre o amor. Qual você pediria? Você também recebe um convite para cantar. Pode escolher sua música.
O texto apresentado ilumina muito bem os momentos e as situações performativas que o espectador vai vivenciar no período de aproximadamente 70 minutos, tempo em que é convidado a esquecer a vida externa ao teatro para estar inteiramente presente e se fazendo “presença” naquele espaço. Dessa forma, o local de representação, o Galpão 4 da Funarte MG, é convertido numa arena show, um bar degradado com personagens decadentes e sem muitas perspectivas de se verem como pessoas bem-sucedidas fora daquele espaço, mas extremamente entregues ao momento em que estão dividindo o mesmo tempo e lugar, no caso, um bar, o Karaokê.
O elenco interpreta tipos sociais, personagens que estão à margem e cujas ações nos permitem refletir sobre as suas rotinas, cada qual traz elementos fundamentais para a fabulação que é proposta pelos artistas envolvidos no processo de construção do espetáculo, que surge como uma cena embrionária e que vai ganhando dimensão de pocket show e se transforma num cabaré: A atriz Ana Cecília representa Alemão, personagem já vivido pela performer em outros trabalhos e que, em Karaokétipos, é uma figura assídua no bar da Kátia, reconhecida, paradoxalmente, como uma enciclopédia viva da MPB, é gente boa e um grande admirador da vida boêmia. Arthur Barbosa interpreta Kântor, um técnico de som recém contratado pelo bar e que sonha em um dia ser um rockstar. Cora Rufino encena a personagem que é a dona do lugar, Kátia (Cassia Samurai), a proprietária de um espaço decadente e que é visto como o lugar onde todos vão para se divertir e para “brilhar”. Na descrição fornecida pelo grupo no Instagram, ela é a personagem que “ama tanto karaokê que resolveu ter o seu próprio só pra cantar de graça. Fã de músicas em espanhol, se considera muy latina como Rosalía e Alejandro Sanz. Toma um shot de tequila sempre que alguém canta “Evidências”, o que a tornou viciada em sofrências musicais.” Gustavo Faraco encarna Lola, uma figura que é a faz-tudo do Karaokê: corre para lá e pra cá, desdobrando-se em várias funções, serve copos, mata baratas e quebra gelo. Montada, quase o tempo todo, em saltos altos, ela trabalha naquele recinto há tanto tempo que reconhece as particularidades de cada cliente que frequenta o bar. Jefferson Alda encena Angel Knowles Carter, uma ilustre frequentadora de Karaokês e assídua aos apps de relacionamento.
As descrições demonstram o quanto cada personagem apresenta um comportamento peculiar, desempenhando uma linha tênue que nos leva para uma interpretação pautada numa linha performativa em que a ironia e o deboche trazem elementos do teatro cabaret tão comum em outros países latino-americanos, como Colômbia, México e Peru. Karaokétipos, enquanto proposta espetacular brinca com o universo do música e do entretenimento. As personagens transitam no universo do melodrama e do humor, apresentando momentos de uma crítica social e política, com um tom paródico mediado por músicas que integram o imaginário da maioria da plateia presente.
O espaço cênico é fundamental para o bom desenvolvimento da proposta espetacular. Assim que o público adentra o Galpão 4 da Funarte, ele, o espaço, se converte num “bar” e vemos, a nossa frente, inúmeras mesas que poderão ser ocupadas, sendo divididas em pequenos grupos de pessoas conhecidas ou não, podendo ocupar ainda uma arquibancada, montada estrategicamente numa das laterais do espaço. Em cada mesa, há alguns aperitivos e um cardápio impresso com um QR code que dá acesso ao pix com os valores das bebidas que são oferecidas naquele dia (água, refrigerante, Heineken lata, Amstel long neck e Xeque mate), pelo bar da Kátia, e que a Lola poderá oferecer com sua peculiar desenvoltura e humor. No mesmo cardápio, o público tem acesso às músicas disponíveis para serem “degustadas”, ou melhor, cantadas, no Karaokê do bar. Assim, como espectadores, somos convidados a apresentar nossos dotes artísticos e as músicas que poderão ser performadas são divididas em três modalidades:
- PARA SOFRER
Sufoco (Alcione)
Depois do prazer (Só Pra Contrariar)
Infiel (Marília Mendonça)
Encostar na tua (Ana Carolina)
Como nossos pais (Elis Regina)
- PARA AMAR
É o Amor (Zezé Di Camargo e Luciano)
A lenda (Sandy e Junior)
O amor e o poder (Rosana)
Alma Gêmea (Fábio Júnior)
Escrito nas estrelas (Tetê Espíndola)
- PARA DANÇAR
Pintura Íntima (Kid Abelha)
Lua de Cristal (Xuxa)
Ragatanga (Rouge)
Não quero dinheiro (Tim Maia)
Girls, just want to have fun (Cyndi Lauper)
Nessa reconfiguração do espaço, as cenas se dão e somos convidados a nos envolver com o roteiro que vai sendo construído diante de nossos olhos a partir das histórias das personagens-performers, cujas particularidades vão sendo delineadas, revelando nuances de cada uma, suas aventuras e desventuras. Durante o desenvolvimento do roteiro, as ações dramáticas se constituem a partir de um constante jogo em que a música (o Karaokê) dá vazão às histórias que vão sendo entrelaçadas de forma que somos convidados a compor o quebra-cabeças que vai unir as personagens àquele local, transformando o bar uma zona de conflitos e de confrontos habitáveis.
Karaokétipos é um espetáculo dinâmico, divertido e que surpreende o público de diversas formas, fazendo-o cúmplice das histórias que vão sendo divididas em cada apresentação. Comigo não foi diferente e, como minha crítica nunca é isenta de meus afetos, compartilho momentos vivenciados no dia em que assisti ao espetáculo, quando pude presenciar cenas divertidas e memoráveis.
Naquele 5 de janeiro de 2025, na companhia de pessoas amigas como, entre outras, Ana Regis (a quem eu reveria alguns dias depois brilhando em Peixes), Anselmo Bandeira, Carolina Cândido, Denilson Tourinho e Isabela Arvelos, experienciamos um momento incrível e, para mim, inesquecível. É relevante explicitar que o encontro com essas pessoas se deu de forma inesperada, ou melhor, não combinamos de ver o espetáculo no mesmo dia. Uma informação que poderia ser irrelevante para a maioria das pessoas presentes, para mim foi imediatamente notado: no cardápio do bar da Kátia, não tinha disponível a cerveja que eu tanto gosto, mas fui surpreendido pela ação carinhosa da personagem Lola que me presenteou com um latão de skol, ação que me deixou extremamente feliz e surpreso por se tratar de minha bebida predileta e que não constava do cardápio. Naquele momento, se eu já me divertia e dava altas risadas, senti-me ainda mais “soltinho”. Lembremos que Lola trabalha naquele recinto há tanto tempo que reconhece as particularidades de cada cliente que frequenta o bar, rsrsss…
Em meio a tantas histórias compartilhadas e diante da forte presença de cada pessoa que se jogava no “palco” cantando uma das canções escolhidas do cardápio, chegou o momento de todos os presentes votarem para decidir qual seria a música final a cantada pela personagem vencedora do Karaokê. É um momento do espetáculo em que cada personagem vai defender sua canção predileta com todas as suas armas: Alemão defende e incita o público para escolher sua canção, “Conga la conga”; Angel tenta convencer o público para estar com ela votando na música “Você me vira a cabeça”; Kátia buscar conquistar seus aliados pra votarem em “Boate Azul”; Kantor é enfático em convencer a plateia para escolher “Total Eclipse of the Heart”; e, por sua vez, Lola busca seduzir todas as pessoas presentes a seguirem a sua predileção por “Evidências”.
Apesar de se tratar de canções conhecidas, entre as pessoas presentes, assim como eu, havia vários fãs da Alcione, o que levou a mim, meus parceiros de mesa e outras pessoas sentadas nas mesas vizinhas a realizarmos um verdadeiro levante para que a canção eleita fosse “Você me vira a cabeça”. Fizemos tanta algazarra que fomos bem sucedidos e a personagem Angel levou a melhor, ou seja a música de Alcione foi a mais votada. Assim, cantamos a música da Marrom a plenos pulmões. Naquele momento, Lola, que trabalha naquele recinto há tanto tempo que reconhece as particularidades de cada cliente que frequenta o bar, que, outrora, me presenteou com um latão de skol, indignada por não ter sido bem sucedida em convencer a maioria para votar em “Evidências”, montada em seus tacones lejanos, se dirigiu a nossa mesa e tomou posse de minha cerveja que ainda estava sendo consumida, deixando-me com cara de paisagem… (Aplausos para Gustavo Faraco por sua performance impecável, por sua interpretação e pela capacidade de improviso.)…
Risos e mais risos de todos os lados, todo mundo se divertindo, o refrão da música da Alcione sendo cantando em alto e bom tom e Angel divando com sua canção que passa ser a canção de todas as pessoas presentes.
Mas tem que me prender (tem!)
Tem que seduzir (tem!)
Só pra me deixar
Louca por você
Só pra ter alguém
Que vive sempre ao seu dispor
Por um segundo de amor
Oh! Oh!
Um momento de catarse coletiva propiciado pelo Teatro…
Fica em mim a expectativa de rever o espetáculo e, quem sabe, assistir a outro final escolhido pelos clientes do bar da Kátia e, talvez, ser presenteado pela Lola com outro “mimo” alcoólico… esperando que ela não seja rancorosa, é claro…
Ficha Técnica de Karaokétipos
Autor: Autoria coletiva
Diretor: Tatá Santana
Elenco: Ana Cecília, Arthur Barbosa, Cora Rufino, Gustavo Faraco, Jefferson Alda
Figurinista: Luis Dias
Iluminador: Kaká Correa
Trilha original: Gabriel Ventura
Produção: Arthur Barbosa
Instagram: @karaokétipos
[1] Vale a pena destacar que o trabalho foi construído com estudantes do curso de Teatro da UFMG e que a diretora também esteve à frente da adaptação e direção da montagem do espetáculo Eu odeio Hamlet, também realizada com a participação de estudantes do curso. Ambos os trabalhos muito bem adaptados e com um elenco afinado e completamente envolvido com a proposta espetacular produzida.