Por Soraya Belusi
Os desafios em um projeto como este não são poucos, incluindo a direção de um elenco irregular (por sua própria natureza formativa), selecionar trechos representativos e relevantes das obras nesse trabalho de recorte, compreender e reinterpretar o discurso (dramatúrgico e cênico) do irlandês para construir, na junção das partes, uma nova configuração através da proposição da colagem – entendida aqui como a define Patrice Pavis em seu “Dicionário de Teatro”: “uma reação contra a estética da obra plástica feita com um único material, contendo elementos fundidos harmoniosamente dentro de uma forma ou de um âmbito preciso. Ela trabalha os materiais, tematiza o ato poético de sua fabricação, diverte-se com a aproximação casual e provocativa de seus constituintes”.
Ao longo de 1 hora e 30 minutos, “Um Lugar para Ficar em Pé” se aproxima e se afasta da compreensão desses desafios de maneira diversa, compondo um painel irregular da apropriação do que poderíamos entender como uma “linguagem beckettiana”, “teatro do absurdo” ou “teatro de derrisão”, todos conceitos gerados pelo impacto da obra de Beckett e seus contemporâneos (Ionesco, Adamov, Sartre, Caus, Genet, entre outros).
Exatamente por ter a linguagem como fator constitutivo – “o absurdo como princípio estrutural para refletir o caos universal, a desintegração da linguagem e a ausência da imagem harmoniosa da humanidade”(PAVIS) – , a dramaturgia de Beckett requer, muitas vezes, de ser apresentada em sua completude, correndo-se o risco de, no recorte, perder-se no vazio do desentendimento, levando à errônea visão do absurdo como despropositado, sem lógica ou sentidos internos. Em maior ou menor medida, isso acaba ocorrendo nos mais de 12 quadros apresentados em “Um Lugar para Ficar de Pé”. Não só não se atinge o propósito de “alinhavar” os quadros de maneira orgânica e simbólica como, se vistos independentemente, algumas vezes não se sustentam despregados do todo. Um dos exemplos pode ser o quadro de “Catastrophe”. Enquanto a leitura e a fruição de todo o texto da peça-curta nos leva à síntese imagética de Beckett da alegoria do poder do totalitarismo, tendo o Protagonista como símbolo do povo comandado por ditadores, no recorte apresentado na montagem, o quadro se reduz à interpretação cômica de um diretor vaidoso, meio maluco e patético, um retrato muito mais jocoso do que crítico e dilacerador.
Não pretende-se, aqui, criar ou seguir cartilhas de como se montar Beckett, mas, sim, tentar compreender algumas das premissas que compõem sua obra e como estas foram ressignificadas e/ou utilizadas na montagem. Partindo da própria ideia de colagem, não há nada questionável de, a priori, utilizar-se de múltiplas referências e de materiais de diferentes tessituras. Mas, ao longo do espetáculo, essas escolhas, com algumas exceções, parecem não se justificar quando olhadas no todo. As partes parecem não se somar e nem se contradizer, o que poderia se tornar, por si só, um outro exercício de linguagem. O trabalho consegue se aproximar desse propósito em momentos como “O que, Onde”, quando, na seleção do fragmento e da forma de apresenta-lo cenicamente, o coletivo conseguiu trazer à cena a proposta central da peça, da opressão pela linguagem, pela repetição, pela encruzilhada da palavra, refletida nas ações robotizadas e seqüenciais dos atores.
O trabalho tenta dar conta deste inominável na existência humana, como na imagem em que Winnie aparece enterrada até o pescoço de corpos mortos. Mas isso não se propaga para todo o trabalho. A encenação de Héctor Briones aposta como seus pontos fortes na construção de belos momentos imagéticos, em que predominam os focos pontuais de luz, uma permanente quase escuridão, e ganha novos contornos quando integra elementos da dança ao trabalho dos atores. Consegue dar uma unidade ao elenco pela própria natureza do trabalho, fazendo com que todos tenham relevância no desenvolvimento do espetáculo, sempre um grande desafio em um exercício de formação. Porém, algumas vezes, a ideia mal-interpretada de absurdo como “algo tão vago que já nada significa (Ionesco)” é o que permanece ao fim de cada quadro. Ao contrário, cita Marvin Calson em seu “Teorias do Teatro” as palavras de Ionesco, o propósito dessa dramaturgia só se realiza “quando se busca a fonte da existência ou se pretende entendê-la como um todo razoável é que o incompreensível aparece”.
(*) O espetáculo “Um Lugar para Ficar em Pé” foi apresentado dentro da programação do Feto 2012 – Festival Estudantil de Teatro