Reflexões a partir de Navalha na Carne Negra apresentada no Festival de Curitiba 2019.
– Por Soraya Martins-
Fotos de Humberto Araújo/Festival de Curitiba
Tradição
Navalha na Carne de Plínio Marcos. Marco da literatura dramática brasileira. Adjetivo-brasileira da literatura que não inclui Sortilégio, Além do Rio, por exemplo, como marcos. Daí vem Navalha na Carne Negra de Zé Fernando, que se mantem fiel ao texto de Plínio Marcos. O que se tem é uma reviravolta espetacular. Esse “espetacular” se refere à distinção que o pesquisador italiano Marco de Marinis faz entre a dramaturgia, ou seja, o texto escrito e o texto encenado, o colocado em cena, ESPETACULAR. Corpos negros-espetaculares. Agora, é uma navalha na carne-estilete, que diz sobre estilo-lapidação-labor-aprimoramento-escolha-reinvenção. Trabalho de artesão na tessitura de redimensionar a tradição (já que “os clássicos”, “os marcos” na economia do mundo tem a ver com o poder de quem pode ou não decidir o que é “clássico”, “universal”, etc.) do teatro. Reviravolta que se refere, sobretudo, à tomada de parte na constituição da tradição e da sua partilha e recriação. Corpos negros-espetaculares como símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no ato de criação e até mesmo no ato de viver em vários tempos e várias histórias simultaneamente[1]. Qual a relação com a tradição do teatro aqui? Olhar a ausência do negro, a violência sobre o negro. Logo, encenar um texto da tradição é elaborar uma contra prática.
Presença
O que acontece quando os corpos negros ocupam o espaço do branco? O fato mesmo de se tornarem presença. Vê-se a cor das personagens, apesar de não ter sido indicada por Plínio Marcos, mas de antemão, na estrutura compartimentada e maniqueísta da nossa sociedade, sabemos quem são os condenados da terra – alguém é pobre porque é preto, alguém é preto porque é pobre. Uma parte pelo todo redimensionando a tradição: olhar o texto em cena, agora, é olhar também o Brasil.
Explosão
O termo negra se instala em cena nos detalhes, pingando. Não é apreendido como uma essência, detentora de um sentido metafísico ou absoluto. Não se projetam imagens capturadas pela câmera que foram inventariadas para definir de maneira torta e reducionista o negro. A coreografia da singularidade e alteridade negras não se prende à cor e ao fenótipo da atriz, da videomaker, dos atores e/ou do diretor. Se ancora na cor e no fenótipo, mas também na experiência e no lugar do sujeito. Se todo signo tem uma marca ideológica e tudo que é ideológico possui valor semântico, eis a negrura se costurando por uma rede de relações e interpretações: a música vai de Ludmilla, passando pelo “senta firme” do Baco Exú do Blues e chega ao “ pra quê sujar o chão da própria sala?”, de Elza Soares; a câmera – olho, corpo, mão e sangue pulsante da videomaker – no jogo teatro-cinema, focaliza quase sempre o olhar de Neusa Sueli (ou quando esta, querendo as carícias de Vado, se adere ao corpo da videomaker: o que se vê em cena e no vídeo parte do ponto de vista feminino). O que se tem, portanto, é um olhar duplamente marcado pelo gênero e pela raça. Para além desses exemplos mais à mão, que não tornam necessariamente, por si só, uma peça mais ou menos negra, o que se tem, em geral, nessa navalha-estilete negra, é um tornar-se negra não acreditando em existências apertadas do “samba no pé” (pensando na explosão de significado dessa expressão), mas exibindo corpos como imagens desejadas, ostentando a imagem como prazer e inscrevendo a cor como texto.
Janelas
Cortes, fragmentos e emolduração do jogo cênico. A cena e o filme ao vivo. Justaposição de materialidades. A possibilidade de escolher o quê olhar: o palco, a filmagem ou os dois ao mesmo tempo? De qualquer forma, para onde se olha, é preciso perpassar o transbordamento de imagens e enquadramentos para conferir as cenas na sua suposta inteireza. A câmera como linguagem possibilita apreender o mundo e, ao mesmo tempo, é incapaz de dimensioná-lo na sua grandeza, assim como a linguagem-palavra.
Desequilíbrio
Jogo do faz-corta-e-refaz a cena. Repetição. Faz-corta-e-refaz. Repetição como proposta estética. Que significante novo emerge dessa prática? Penso que aqui a repetição não faz emergir, necessariamente, algo novo, mas nos tira a segurança do significado, desloca o olhar, disputando, assim, a imaginação política do espectador. Nesse sentido, nunca é a repetição do mesmo.
Redistribuição
O “viadinho” como é representando constantemente nos palcos é instrumento de riso do macho. A personagem Veludo, da navalha negra, aponta para uma mudança na microfísica do poder-violência que se instaura entre ele, Neusa Sueli e Vado. E o riso é a chave dessa mudança, na medida em que o espectador ri com o Veludo e não do Veludo. Ele é agente, mesmo sendo objeto, da violência. O riso aqui é o da exposição de feridas abertas que provoca tensão e dela cria espaços para os contra-discursos, dela parte a iminência de uma revanche, mostrando que os corpos não são domesticados, mostrando que os corpos querem experimentar a existência de outra forma. São corpos ressurgentes.
Força
A câmera adere quase sempre o rosto de Neusa Sueli, muitas vezes vemos com e pelos olhos dela. A tessitura da personagem como imagem e desejo. Miséria, desespero, humilhação e o desejo também de provar a existência de outra forma. O olhar da puta contempla a imagem de futuro. A busca pelo lampejo. Um olhar no futuro que emerge no e do passado/presente na busca por inventariar a própria cena em ação e a forma de habitar o mundo.
Citação
O que acontece quando a margem se move?
Margens são veias de um sistema, e pulsam. Nelas circulam sangue. Quando se movem, os corpos ditos marginais movem as margens do sistema, evidenciando o provisório de toda e qualquer centralidade[2].
Metalinguagem
A noção de uma estética fragmentada não nasce de um processo de “desencanto” ou de desagregação social, de um mundo fragmentado e polarizado entre capitalistas e comunistas, da efervescência das vertentes pós-estruturalistas e desconstrutivistas, como acontece com a arte contemporânea branca-hegemônica. Não tem a ver em oferecer à criação, assim como à recepção, uma liberdade fantástica. A noção de fragmentação aqui não é um processo, mas uma condição negra: ser forjada a partir de partes dispersas por todos os cantos da memória e do mundo.
Teatro
Fazer imaginar outro mundo.
Referências:
AZEVEDO, José Fenando Peixoto de. Eu, um criolo. São Paulo: N-1 Edições, 2017.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
Ficha técnica:
Direção Geral e Dispositivo Cênico: José Fernando Peixoto de Azevedo
Assistência de Direção e Vídeo: Flávio Moraes
Atores: Lucelia Sergio, Raphael Garcia e Rodrigo dos Santos
Operação de Câmera: Isabel Praxedes
Desenho de Luz: Denilson Marques
Operação de luz: Daniel Calmon
Direção de Arte: Criação Coletiva
Assessoria para o Trabalho Corporal: Tarina Quelho
Produção: Corpo Rastreado
[1] MBEMBE, 2018.
[2] AZEVEDO, 2017.