Vertigem sob controle
por Marcos Coletta
Delírio & Vertigem, 15ª edição do projeto Oficinão Galpão Cine Horto apresenta dois espetáculos que somam 2h30 de duração, o que, de imediato, parece exigir disposição e causa certa hesitação a quem decide assistir. Não que espetáculos não devam durar mais que 1h ou 1h30 (ainda que a era virtual tenha nos deixado mais preguiçosos e impacientes a longos formatos), mas principalmente, ao levarmos em conta as particularidades de um projeto como o Oficinão. Todo ano, cerca de vinte atores com experiências e formações diversas são selecionados para vivenciar um processo de criação com um diretor escolhido pelo Galpão Cine Horto. Este diretor é responsável pela proposta do espetáculo e por sua condução ao longo do ano. No caso de 2012, a artista convidada foi Rita Clemente, atriz e diretora de reconhecida trajetória dentro e fora de Minas Gerais. A ela coube administrar os desejos, as ambições e as alteridades de dezessete atores (treze permaneceram até a estreia) na tentativa de compor uma obra com o mínimo de unidade estética e discursiva – tarefa complicada para qualquer diretor, considerando o número de profissionais envolvidos, o curto prazo e o fato do Oficinão ser esperado pelo público mais como um espetáculo profissional do que como uma pesquisa ou exercício artístico, como ocorre com os trabalhos de conclusão dos cursos profissionalizantes da cidade. Diante destes e de outros dificultadores, é sempre possível que os espetáculos do Oficinão frustrem público e atores participantes, alimentados pela grande expectativa em torno do projeto e por uma imagem construída ao longo de seus quinze anos.
Em Delírio & Vertigem, o ponto de partida são treze textos curtos do dramaturgo carioca Jô Bilac com evidente inspiração no universo rodrigueano, fator bastante propício no ano em que se comemora o centenário do autor. Esquetes de cunho cotidiano revelam estranhezas, manias e desvios hiperbolizados de personagens tragicômicos em situações recorrentes na obra de Nelson como a traição, a obsessão, a fetichização de objetos, a crítica à instituição familiar e à hipocrisia social. Mas, por que montar textos tão rodrigueanos e não um texto do próprio autor? Talvez pelo fato de que trabalhar a obra de um dramaturgo como Nelson (alvo de tantos equívocos teatrais) seja mais difícil do que um texto de um jovem dramaturgo contemporâneo, a quem é possível recorrer diretamente (Jô Bilac participou do processo, vindo a Belo Horizonte para alguns encontros). Isto não quer dizer que Clemente opta por um caminho fácil, mas elimina um obstáculo dentre outros tantos que compõe sua empreitada, podendo se dedicar a outros desafios. Encenar um “Nelson que não é Nelson” permite passear em seu universo sem aquele prejudicial pudor e temor tão insuflado por encenações, estudos e críticas que só serviram para transformar o autor que tocava em tabus em próprio tabu teatral. Outro ponto positivo da escolha está na grande quantidade de cenas curtas que propiciam diversos personagens e situações, dando flexibilidade e espaço equalizado para que treze atores possam mostrar seu trabalho, afinal, este é um dos principais objetivos para quem participa do Oficinão – se a intenção inicial do projeto era servir como laboratório de reciclagem para atores experientes, acabou se tornando uma oportunidade de prática, aprendizagem e inserção no mercado para jovens atores em formação que compõe a maioria dos elencos das últimas edições. Assim, o texto de Jô Bilac oferece ao espetáculo a agudez crítica e tragicômica de Nelson Rodrigues e se livra do peso de se encenar o próprio, além de oportunizar espaço igualitário aos atores. Com esta estratégia, Rita Clemente ganha maior propriedade para criar um ambiente aberto à experimentação e exploração do gênero, tentando aproveitar o melhor de seu elenco.
Naturalmente, um coletivo de atores que não se constitui um grupo de teatro, pois não possui um trabalho continuado, nem mesmo um plano artístico em comum, revela dissonâncias estéticas e técnicas. Alguns atores, mais amadurecidos, se mostram bastante à vontade e integrados com a obra, jogando habilmente com os elementos que a constituem e com o espectador – nestes momentos, o espetáculo ganha fôlego e a atenção do público. Já outros não conseguem se apropriar completamente da proposta de encenação ou expõe frágil atuação. Mas, é interessante notar como alguns atores que demonstram inconsistência em certas cenas dão grande salto qualitativo em outros momentos, o que diz muito sobre as identificações e os interesses artísticos pessoais. Rita Clemente dispõe com discernimento estes altos e baixos ao longo da ação dramática para que a plateia não seja vencida pela longa duração da peça. A diretora parece ter captado bem as potencialidades e deficiências de seu time e, ora coloca-os em lugares seguros ora propõe exercícios de risco, como ocorre na repetição de cenas da primeira parte na segunda parte da peça, utilizando atores diferentes e assumindo a inevitável comparação. De modo geral, o elenco constrói um corpo coletivo firme, coeso e homogêneo, ciente de que a prioridade está na qualidade da obra e não nas performances individuais.
Para auxiliar a direção cênica a alcançar uma unidade de linguagem diante de treze atores, dezesseis cenas e dois espetáculos, a direção de arte assume papel importante. Assinado por Luciana Buarque, antiga parceira do Grupo Galpão, o visual sóbrio, quase asséptico, dispõe poucos elementos cenográficos sobre piso e fundo de renda branca. Os figurinos monocromáticos fazem saltar o verde de alguns objetos e adereços. Correto e elegante sugere o onírico, estratégia inteligente já que no campo dos sonhos há lugar para qualquer multiplicidade e inverossimilhança, o que permite com naturalidade a grande gama de personagens, ambientes e situações presentes na peça. O visual sofisticado e bem-comportado chega a pedir mais ousadia e ruído em certos momentos, como quando se sugere um baile de carnaval de tom exótico e transgressor – um apontamento promissor que, infelizmente, não é desenvolvido. A escolha pela limitação de público (80 pessoas) e a disposição da plateia em corredor (bifrontal) sugere outra relação com o espectador, porém, tal proposição espacial não chega a se mostrar realmente essencial para a cena, nem explorada de maneira mais incisiva no que diz respeito a uma dramaturgia do espaço, mas condiciona o registro intimista e econômico de atuação e a sensação de profundidade resultante da disposição da plateia em conjunção com o piso/fundo contínuo.
Propondo um teor mais trágico, a primeira parte, Delírio, dispõe uma sequência convencional de cenas curtas, sem grandes ousadias dramatúrgicas, e recorre a um desfile de personagens na transição das cenas para tentar criar uma conexão harmoniosa entre as partes. Quando Delírio persegue um caráter mais grave, alguns momentos acabam soando pouco críveis ou ingênuos. É quando se desprende da pretensão de ser sério que o espetáculo se fortalece e mostra o seu melhor. Tal característica fica clara na terceira cena de Delírio e se intensifica na segunda parte, Vertigem, abertamente farsesca e cômica. No segundo espetáculo, o interessante jogo atoral de ver e ser visto faz o elenco transitar entre protagonismo, coro, plateia e figuração, em ritmo dinâmico e atraente, como na divertida sequência carnaval/avião/aeroporto/cinema que se desenvolve de forma virtuosa e surpreende o público. Ao longo de seus 60 minutos, Vertigem faz jus ao título, em trajetória vigorosa e espiralar amparada por uma estrutura acertada – outra excelente estratégia da direção em coloca-lo como a segunda parte, criando um nível ascendente de interesse da plateia, que lida bem com os 150 minutos totais.
Ao olhar para as duas partes como uma única obra (esta é apenas uma opção, já que as partes também podem ser autônomas), nota-se que o espetáculo se desenvolve sem ansiedade e aceita bem seus momentos mais frágeis, logo compensados pelas diversas potências reveladas. Texto, atuação e concepção cênica não se lançam a grandes arroubos e guardam suas qualidades no comedimento que valoriza os momentos de exaltação controlada e sutil ironia. Ao final, tem-se a sensação de que o espetáculo reflete um processo de real compartilhamento e trabalho coletivo, onde a heterogeneidade dos atores foi manipulada com controle e inteligência artística para que se elevasse a unidade da obra. Delírio & Vertigem se sustenta tanto como experimento processual quanto como espetáculo profissional, indo ao encontro dos fundamentos e objetivos originais que guiam o projeto Oficinão e indicando vida além do Galpão Cine Horto.
**O espetáculo fará segunda temporada em 2013, na programação do Verão Arte Contemporânea.