Crítica a partir do espetáculo A invenção do Nordeste – Grupo Carmin (Natal/RN), apresentado na programação do FIT-BH 2018.
– por Elen de Medeiros –
Fotos de Guto Muniz/ FIT-BH
Talvez o caminho mais fácil de escrever uma crítica sobre A invenção do Nordeste, a peça mais recente do Grupo Carmin (Natal – RN) e que fez parte da Mostra Nacional do FIT- BH 2018, fosse falar da desconstrução dos estereótipos nordestinos. Isso porque a peça pulsa por veia irônica justamente a reafirmação insistente de tipos e estigmas do nordeste – um nordeste unificado, sem nuances entre os nove Estados que o compõem. Mas algo vem antes disso, mais potente, que acompanha o grupo em suas investigações de linguagem – pelo menos é o que se vê já em outro espetáculo do grupo, Jacy (2014). Trata-se da memória. O que é a memória? De que é a memória talvez seja uma pergunta que deva ser feita antes de de quem é a memória, observa Paul Ricoeur. A memória pode ser pessoal, psíquica, desviante, opaca. A memória pode também ser coletiva, identitária, marcante. Pode, ainda, ser histórica, fabulada, construída. Esses três prismas se cruzam e se articulam no projeto teatral do Grupo Carmin, e dão tônica e graça em A invenção do Nordeste, espetáculo baseado no livro A invenção do nordeste e outras artes, de Durval Muniz de Albuquerque Jr.
Jacy (2013) é um espetáculo que, a partir de uma frasqueira com objetos bastante pessoais encontrada no lixo, reconta parte da história de Natal, cidade sede do grupo, e também da própria história do Brasil, elaborando um passeio lírico-onírico entre as potências significativas de cada item da maleta até uma narrativa íntima da dona da frasqueira, Jacy, em um vaivém de aproximação e distanciamento entre o que se efabula, o que se toma por real, o que é construído historicamente e o que permanece apagado nas lembranças remotas. Nessa longa exploração das interseções entre as possíveis e os vários tipos de memórias, o grupo ainda faz uma pesquisa de linguagem que se pauta no uso de tecnologias para a construção dramatúrgica, articulando por meio disso os recursos de diferentes registros na cena.
Não pude ver o primeiro espetáculo do grupo, Pobres de marré (2007), nem Por que Paris (2015), mas diante de A invenção do Nordeste talvez posso aventar aí um jogo na linguagem teatral que baseia as pesquisas do grupo, bastante pautada no uso da memória e articulando as tênues fronteiras entre realidade e ficção a partir das referências do teatro documental. A fábula pode ser resumida de forma relativamente simples: trata-se de um diretor que, na missão de preparar dois atores nordestinos para uma seleção a pedido de uma produtora de São Paulo, passa sete semanas num trabalho árduo com os dois jovens, numa investigação sobre o que caracteriza este ator nordestino: a voz, o sotaque, o corpo, a literatura de cordel, a virilidade, a geografia, a seca, a história, um nome? E é assim que, juntos, perpassam por um trajeto de re-construção da memória: pessoal, identitária e histórica.
Robson viveu na pele a seca e, por ser do sertão, acredita-se mais nordestino que Mateus, nascido em Natal, mas aparentemente criado em São Paulo. Robson gosta de recitar cordéis contemporâneos, sem métrica e com rima cruzada; já Mateus prefere fazer o Chicó, icônico personagem de Suassuna, mas projetado principalmente pelo filme e pela série televisiva, numa mimese da interpretação de Selton Mello. Ambos, na disputa pelo papel, carregam suas escolhas pessoais e refazem as matrizes do que se constrói o imaginário estereotipado do nordestino. Para guiá-los na ingrata tarefa de construir um “original” coronel nordestino – papel procurado pela produtora – Henrique os estimula a jogos e narrativas a partir de referenciais canônicos da constituição do que se entende por nordeste: Euclides da Cunha, Gilberto Freire, Glauber Rocha, trazendo à lume com ironia e sarcasmo a maneira como cada um, à sua maneira, construiu o seu próprio nordeste, que se consolidou para a posteridade, figurando os regionalismos. Quem, afinal, inventou o Nordeste? E qual o Nordeste que os três almejam?
Aos poucos os três vão descascando, às vistas do espectador, as camadas de como se elabora uma identidade coletiva, que pouco elucida as particularidades de cada Estado do nordeste, e muito menos de cada indivíduo. Será possível, afinal, encontrar o “genuíno” coronel nordestino? E fazem esse percurso articulando as problemáticas históricas da região com as atuais, os coronelismos, as disputas políticas, os paradoxos que os constituem. Para tanto, lançam mão do uso da auto ironia, registrada e acentuada pelo recurso de projeções que funcionam em si como instrumentos narrativos sobrepostos – uma prática já sólida na pesquisa de linguagem do grupo.
É dessa forma, portanto, articulando as possíveis memórias em uma visão crítica e revisionista da história oficial, aliada a uma sátira aguda, que A invenção do Nordeste tece diante de nós uma forma simples, inteligente e sensível de fazer teatro contemporâneo, rindo de si mesmo (e aqui me refiro às sátiras com a própria linguagem contemporânea), mas provocando seu interlocutor (leia-se, espectador) à reflexão sobre os estereótipos que projeta habitualmente.
Espetáculo assistido em 17/09/2018 no Teatro Francisco Nunes.
Ficha técnica:
Direção e figurino: Quitéria Kelly
Assistência de direção, dramaturgia audiovisual e desenho de luz: Pedro Fiuza
Elenco: Henrique Fontes, Mateus Cardoso e Robson Medeiros.
Elen de Medeiros é professora de literatura e teatro na UFMG. Desenvolve pesquisas sobre dramaturgia brasileira moderna e contemporânea.