— por Vinicius Souza —
Divagações sobre a produção dramatúrgica no Espanca!
Farpa é uma boa palavra. Pelo menos aqui, com meu sotaque mineiro da capital, o vocábulo com seu érre forte, como se diz na fonética, parece ser engolido garganta à dentro, me arranhando as cordas, rumo a certo interior. Ao mesmo tempo, a palavra é feita da vogal mais aberta de todas: lançada, em arreganho, para o ar de fora, para o mundo externo. Farpa é uma palavra cortante, pontiaguda, tal qual a pequena lasca, estilhaço mínimo da madeira, à espreita da primeira superfície distraída. E quem é que nunca se distraiu? Farpa é uma tira miúda que berra! Quem já teve a pele perfurada sabe disso. A lasca parece inofensiva de tão pequena, mas impede qualquer continuidade automática do cotidiano. Atravessada na carne, grita sua existência enquanto nos lembra da nossa. Que lasca! Talvez venha daí a expressão que eu costumava ouvir no quintal de casa: Tô lascado! Mas desta vez, longe de um furo no dedo ou coisa parecida, tratava-se da vida em perigo, em estado de urgência. Várias vezes eu estive lascado – irremediável condição de quem está vivo. Para mim, texto do Espanca! é lasca, é farpa.
Eu ainda nem pensava em estruturas dramatúrgicas quando, nos idos de 2005, assisti a “Por Elise”, primeira investida teatral do Grupo Espanca! Revi a peça alguns anos depois, e costumo ainda folhear as páginas da primeira publicação, lançada como edição da autora, Grace Passô, no mesmo ano da estreia. Enquanto a peça inaugurava para mim o contato com dramaturgias contemporâneas, inaugurava em Belo Horizonte a existência de um teatro violentamente doce, como se acostumou chamá-lo por aí. O impacto que a peça me causou, um espectador de olhar novo e curioso, parece não ter sido diferente daquele que tomou a cidade de súbito: um teatro que falava com miudeza das coisas mais profundas. A simplicidade e poesia das palavras, a abordagem de universos cotidianos, a economia de elementos cênicos e a proximidade com o espectador já vinham se desenhando nas propostas da Cia Clara, dirigida por Anderson Aníbal, na qual trabalharam anteriormente alguns dos integrantes do grupo. No entanto, foi na construção dramática e cênica do Espanca! que esses elementos foram deflagrados de maneira radical, tanto no questionamento das convenções teatrais, quanto na ampliação das temáticas e significações do mundo. Esses aspectos, junto ao uso da metáfora e ao recurso da metalinguagem, marcariam a dramaturgia do Espanca! daí adiante.
Dos seis textos montados pelo grupo, de 2004 até 2014, só “Líquido Tátil” (2012) foi escrito por um dramaturgo estrangeiro, o argentino Daniel Veronese, e finalizado antes do processo de montagem – inclusive já tendo sido montado bem antes em Buenos Aires. Todos os outros são assinados por dramaturgos mineiros e estreados pelo grupo. Grace Passô, que integrou o coletivo durante oito anos, escreveu “Por Elise” (2005), “Amores Surdos” (2006), “Congresso Internacional do Medo” (2008) e “Marcha para Zenturo” (2010). Já “Dente de Leão” (2014) é assinado por Assis Benevenuto. Influenciados pelos processos colaborativos que surgiram na capital mineira no início do século XXI, onde se destaca a horizontalidade entre os artistas na criação de um discurso coletivo que valorize as funções e vozes individuais, os textos de Grace e Assis foram elaborados junto à criação das cenas, em um diálogo direto com diretores e atores. Ainda que na maioria das vezes fragmentos de textos ou roteiros da peça estivessem já esboçados previamente à cena, a finalização dramatúrgica se deu concomitante à finalização da montagem cênica. Inclusive sendo modificada ou reconstruída ao longo dos tempos, no percurso da peça, como se tornou recorrente na produção teatral contemporânea. Talvez por isso, por esse modo de criação do grupo, seja tão difícil qualquer enquadramento do que seriam as dramaturgias dessas peças. Reduzir aqui o conceito de texto teatral ao que foi escrito no papel ou às palavras que são ditas pelos atores seria negar a existência de corporeidades, atmosferas, sensualidades e pulsões que são tão fundamentais no processo de construção e arranjo de sentidos quanto o texto propriamente dito, aquele que foi publicado em livro. Deste modo, se me ponho a divagar sobre as dramaturgias no Espanca!, falo não só daquilo que li no papel, mas daquilo que li e senti na cena. Estas duas instâncias chamadas pelo professor francês Joseph Danan de Dramaturgia 1 – o texto que foi escrito previamente à montagem e lhe dá estrutura, e Dramaturgia 2 – o encontro deste texto com todos os demais textos da cena (ou a dramaturgia da encenação), passam por mim em idas e vindas tão ligeiras que tornam-se uma só. É deste emaranhado dramatúrgico que trato adiante.
“Por Elise” poderia se resumir como pequenos encontros entre moradores e passantes de uma rua qualquer; “Amores Surdos” como a família que descobre a existência de um hipopótamo em um de seus aposentos; “Congresso Internacional do Medo” como uma reunião de congressistas que falam diferentes línguas e discutem assuntos da humanidade; “Marcha para Zenturo” como uma festa de réveillon, entre amigos, num futuro distante; “Dente de Leão” como um grupo de estudantes que resolve fazer algo diferente na tradicional Feira de Ciências. Os textos poderiam ser assim resumidos não fosse a extrema complexidade que revelam ao unir aspectos que, à primeira vez, parecem dicotômicos ou contrastantes demais para estarem tão próximos ou combinados. Tal qual a farpa de que falava – que é ao mesmo tempo para dentro e para fora; delicada e agressiva –, a dramaturgia produzida por Grace e Assis no Espanca! parece fazer conviver a palavra e o silêncio, o grande e o pequeno, o banal e o extraordinário, o real e o ficcional, o poético e o coloquial, o íntimo e o coletivo, a morte e a vida.
Em “Congresso Internacional do Medo” o mesmo sangue que é derramado no nascimento de uma criança é aquele que banha a morte da personagem Tradutora; a linguagem que possibilita os discursos é a mesma que causa sua distorção; o conhecimento almejado e compartilhado pelos convidados para a mesa do congresso é, ao mesmo tempo, a prova da nossa irremediável ignorância frente aos enigmas da existência; o que há de mais singular em cada um dos congressistas acaba por constituir o que chamamos de universal. A história fantástica de “Amores Surdos” é também só mais uma história comum; o minimalismo de seu espaço geométrico e organizado é também operístico, dramático e lamacento; o cômico e o trágico em inacreditável convivência; os vizinhos bem letrados, e suas notas musicais eruditas, amanhecem junto com os populares passos de sapateado e com os desejos por pequis. A extrema e às vezes agressiva proximidade entre os membros da família é também sua distância, sua cegueira e surdez. Em “Amores Surdos” foi o Pequeno quem trouxe o Grande Bicho. A festa e o protesto, o clássico e o contemporâneo, o teatral e o cotidiano habitam juntos a cerimônia de réveillon do grupo de amigos em “Marcha para Zenturo”. O encontro é, paradoxalmente, o desencontro dos personagens – não se tocam, nem se falam diretamente por conta do delay que há entre eles. No entanto, compartilham o mesmo espaço. Compartilhamento que também se deu no processo de criação da obra, feita entre dois grupos: o Espanca! e o grupo XIX, de São Paulo. A peça acabou por combinar diferentes percursos teatrais e geográficos. “Por Elise” traz o dia caloroso da correria cotidiana, mas também o palco nu, escuro e noturno. Lá estão os silenciosos gestos de lagoa, mas também as letras garrafais de alguém CORRENDO EM DIREÇÃO AO MAR; estão os três pontos de conversas sem assunto, mas também os bifes de uma dona de casa que tem mil historinhas pra contar. Os personagens convivem, mas estão sós. Eles estão na rua, espaço público por excelência, mas também nos seus silêncios particulares; se protegem para não se envolver, e se envolvem pra não se proteger tanto; colocam cacos de vidro em seus muros, mas não conseguem abater suas galinhas. Em “Por Elise”, o fim é o começo.
Em “Dente de Leão” a primeira fala do texto, dita pelo personagem Igor, é: “Por favor, desliguem seus celulares. O teatro vai começar… To be or not to be, that’s the question…”. Poderia ser uma estratégia brechtiana para dizer aos espectadores que aqui não há ilusão, que estamos no teatro, que é preciso estar acordado e esperto ao se que se passa. Mas não. O personagem está sim imerso numa realidade ficcional, na qual nós somos também encantadoramente mergulhados. Mas nem por isso estamos hipnotizados e passivos frente a uma tela de movimentos. Convidando pra estar ao mesmo tempo dentro da ficção e fora dela, a dramaturgia de Assis possibilita camadas de significação e jogo entre a fábula e a representação, os espaços reais e os ficcionais, os papeis e os sujeitos, os personagens e os atores, a cena e o espectador. Esse jogo de composição entre realidade e ficção, também magistralmente manuseado pela Grace nas demais peças, é um dos aspectos mais fortes nas dramaturgias criadas para o grupo. Aqui, de novo, isso traz a possibilidade da convivência de contextos distintos e contrastantes, sem anulação ou perda de um deles. Ao contrário: dá-se a criação de um painel de possíveis realidades simultâneas, linhas de sentido em diferentes direções e cruzamentos. Em “Amores Surdos”, um dos personagens fala com os espectadores. Quando pensamos que houve uma martelada na construção ficcional, outra personagem vem e indica que ele é sonâmbulo, que quando sonha habita outra realidade. Num susto então aquilo que parecia a martelada era na verdade mais uma camada de reboco sobre a construção. O diretor e dramaturgo Marcio Abreu, ainda sobre Amores Surdos, disse que “convive neste e em outros mecanismos do texto o jogo de realidades múltiplas que fortalece o caráter ficcional, expandindo nossa realidade de espectadores ativos numa platéia de teatro”. Levando em consideração esses mecanismos, as dramaturgias de Grace e Assis montadas pelo Espanca! não parecem, dentro do panorama das escritas teatrais pós-modernas, detonar o drama e seus elementos tradicionais (como a mimese e a fábula), mas incluí-lo em suas composições, reformá-lo, e sobretudo, combinar suas potências a outras possibilidades mais épicas e performáticas.
As dramaturgias do Espanca! foram preparadas para nos manter vivos, para nos lembrar da existência, da emergência do presente; estão cheias do que Jean-Pierre Sarrazac chamou de forma-desvio: esse escape da forma dramática em busca do espanto, do estranhamento, de uma aproximação mais radical da realidade. Mas, aqui, o desvio se dá sem ser desviado; se dá sem desfazer a linha fabular, dela fazendo parte. O inverso também acontece: o drama, este que parece o rotineiro, é ele o próprio desvio. Em “Por Elise”, o cão é quem corre para fora do palco, é quem surge no fim da peça e late para a plateia – mas, ora! é natural que um cão não siga convenções teatrais, não se limite ao espaço cênico, à marca da luz: cão é que não é oco, é o que não está oco. Em “Marcha pra Zenturo”, Marco é o único dos personagens da trama que se aproxima da plateia, é na verdade quem pode se aproximar dela porque também é o único que está doente – a doença de viver o tempo presente, de estar aqui e agora – como também estão os espectadores.
Depois de um tempo, quando então eu já pensava em estruturas dramatúrgicas, me perguntei se um texto teatral poderia ser ao mesmo tempo dramático e performático, político e poético, simples e complexo, e tantos outros aspectos que por vezes são dados como opostos. Ou ainda, se dramaturgia poderia combinar tanto com papel quanto com palco. As dramaturgias aqui divagadas me aparecem como resultados dessas possíveis convivências de linguagens, olhares, estilos, modos e fins. Tanto Grace Passô quanto Assis Benevenuto fazem parte da nova geração de autores teatrais mineiros que se caracteriza especialmente por resignificar e valorizar o texto no teatro. Não mais um texto morto que não consegue dizer do tempo em que estamos ou centralizador de todos os elementos teatrais, mas um texto poroso, flexível, aberto a uma infinidade de recepções, vivo. Ler os textos do Espanca! (os quatro primeiros foram publicados em 2012 pela editora Cobogó) é um convite a fazer das palavras matéria, é desejá-las no ar, é experimentar a fisicalidade das vozes e dos silêncios. Assim como suas encenações são um convite a notar cuidadosamente um arranjo de palavras que em geral deixamos para o caderno, é deixar que as letras criem espontaneamente formas e imagens, que elas revirem os sentidos, redescubram significados. Foi talvez por isso que desde Por Elise, as dramaturgias do Espanca! tem impressionado plateias de todo o país e marcado de maneira decisiva a dramaturgia mineira contemporânea – seja por desenrolar uma linhagem de escrita que espanca, mas espanca doce; seja por servir de ponto de referência para escritas que caminham rumo a outras direções estéticas e temáticas. Por fim, devo dizer que essas dramaturgias, ao promover essa radical convivência de contrastes, aparecem-me como quem aponta que talvez a nossa existência também seja assim; que eles, os textos, só tentam combinar aquilo que já está combinado na vida – essa farpa de madeira intensa.