Por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras – UFMG/CNPq
Crítica sobre os espetáculos Pupa, pupita, pupila. Un masaje de la visión, Misa Patólica e Kill me, assistidos em Madri no primeiro semestre de 2024.
O meu interesse pela arte performática e pela crítica teatral é contínuo e foi um dos aspectos que me levou a desenvolver a pesquisa de pós-doutorado intitulada Poéticas dos corpos aqui e alhures: afetividades, dramaturgias, narrativas e performances, na Universidad Complutense de Madrid, cuja primeira parte foi realizada no primeiro semestre de 2024. Cheguei à cidade no dia 3 de março e logo comecei a buscar informações sobre peças que estavam sendo apresentadas nos espaços teatrais locais. Madri, como em outros grandes centros urbanos mundiais, apresenta um vasto número de espetáculos comerciais. Portanto, dezenas de propostas espetaculares são realizadas tendo como modelo os musicais a la Broadway, permitindo que o público madrilenho e os milhares de turistas que transitam pela cidade todos os dias possam acessar as grandes salas com os diferentes tipos de musicais que costumam ser apresentados em outras metrópoles mundiais como Aladim, o musical; Grease, o musical; Mamma Mia, o musical; Malinche, o musical, O Rei Leão, entre vários outros.
Em Madri, de março a junho, vi cerca de 20 espetáculos e, obviamente, não tenho condições de escrever sobre todos os trabalhos, não que não merecessem que eu dedicasse um tempo de minha pesquisa para realizar leituras sobre cada proposta espetacular assistida. Em relação aos musicais citados, tive interesse em assistir à montagem de Malinche, pelo fato de conhecer previamente a história da personagem e pela importância que a mesma tem – e representa – para a cultura latino-americana. Malinche, também conhecida como Malintzin (de seu nome nahuatl Malinalli) e Marina (Doña Marina, alcunha que recebeu ao ser batizada pelos espanhóis), passou a ser conhecida como a tradutora e como a indígena que se tornou amante do colonizador Hernán Cortéz, além de sua confidente e guia. De sua imagem, interessa-me a força simbólica que representa como mãe e figura feminina que, por meio de sua inteligência, cumpriu um papel imprescindível dentro da cultura patriarcal mexicana. A partir de seu extremado valor como mulher e indígena conseguiu mediar os conflitos na relação de seu povo com os conquistadores espanhóis.
Assisti a Malinche, o musical, no dia 12 de junho, no Recinto Ferial de IFEMA. A produção, dirigida por Nacho Cano, estreou em setembro de 2022 e conta com um elenco integrado por cerca de cinquenta artistas que interpretam, cantam e dançam nas quase três horas que dura a performance. O espectador tem contato com um espetáculo, dinâmico e esteticamente muito bem elaborado, com artistas com aptidões corporais e vocais muito expressivas. A originalidade do espetáculo está no fato de a direção utilizar das referências musicais e corporais das linguagens do flamenco e do hip-hop na construção dramatúrgica do trabalho, possibilitando ao público momentos explosivos de cenas que trazem para a apresentação tanto os elementos do flamenco quanto do baile urbano, com uma performance irrefutável. Em minha leitura, tecnicamente, o musical é impecável. Não obstante, em termos dramatúrgicos, me incomoda o lugar que é dado à personagem principal. Acredito que Malinche é meio pano de fundo na primeira parte do espetáculo, a dramaturgia não dá conta de representar a força que a personagem merece e tem historicamente. Apesar do intento do texto de exaltar o personagem, como latino-americano, sinto que o olhar dramatúrgico ainda se mantém muito centrado na mirada estrábica do colonizador. Portanto, o que vi foi uma produção que, ainda que tenha investido esforços para divulgar os lugares de pertencimento da Malinche, deixou a desejar, pois não deu conta de lidar com criticidade tudo que a persona e sua história evocam e merecem. A dramaturgia alimenta, em vários momentos, os estereótipos que costumam ser atribuídos à Malinche, mantendo a visão do colonizador como o salvador.
Não obstante, para o presente texto, não pretendo dedicar atenção aos espetáculos que eu estou lendo como comerciais, pois o meu interesse está centrado nas montagens que considero como produções contemporâneas e performativas. Assim, para cumprir com esse objetivo, passo a compartilhar algumas ponderações sobre três diferentes trabalhos que acredito que atendem a esses aspectos e que foram concebidos, respectivamente, por Leticia Morales e Idoia Zabaleta, Leo Bassi e Marina Otero. Escolhi as performances desses artistas pelo fato de terem sido vistas por mim, cronologicamente, em momentos distintos de minha estada em Madri e, principalmente, por considerar que, como propostas espetaculares, apresentam algumas particularidades que dialogam com minhas pesquisas e tratam de alguns temas que me interessam tecer algumas reflexões.
Pupa, pupita, pupila. Un masaje de la visión, com Leticia Morales e Idoia Zabaleta, foi uma das primeiras montagens que assisti na cidade, no dia 29 de março, no Teatro de Pradillo. O espetáculo foi uma recomendação da amiga e crítica parceira do Horizonte da Cena, Julia Guimarães, que me encaminhou a chamada do espetáculo e eu fiquei tão interessado com o que li que quis conferir pessoalmente:
Você marca um horário, chega ao centro, uma pessoa te cumprimenta e te convida a se deitar em uma maca ao lado de uma mesa com pequenos objetos e alguns comprimidos. Se estiver calor, se precisar de um cobertor, ele pede que você deixe os olhos fecharem, que os abandone no fundo do crânio e que lhe ofereça as pálpebras. Claro, é um ato de generosidade e disposição para a aventura. A partir daí, as luzes se apagam e começa uma massagem única que lembra o que você continua vendo nos seus sonhos. A massagem durará uma hora, o teatro também, o sono, porém, será mais curto. Até lá teremos chegado ao porto.[1]
O texto da sinopse relata exatamente o que acontece na experiência do espectador que teve a oportunidade de assistir ao trabalho.
A minha experiência se deu num dia frio de Madri. Fazia cerca de 9° graus, e lá fui eu para a sessão do espetáculo que seria às 16h. Chego ao teatro por volta das 15h55, para a primeira apresentação do horário vespertino e, sentindo muito frio, fico uns 25 minutos esperando até ser conduzido por um integrante da produção do espetáculo para adentrar o espaço e sou convidado para esperar o início da apresentação, sentado, confortavelmente, num ambiente com calefação. Alguns minutos depois, chega outro espectador que assistiria ao espetáculo comigo. Às 16h30, aparecem as atrizes – intérpretes, massagistas, performers – Leticia Morales e Idoia Zabaleta, que, respectivamente, de forma amigável e com muita simpatia, convidam a mim e ao outro espectador para acessarmos o espaço de representação.
Já dentro do teatro, o que se observa é que, no espaço da plateia, os assentos estão totalmente vazios, e, por sua vez, no palco, o espaço da cena, há duas macas estrategicamente colocadas, aproximadamente, a dois metros uma da outra e, como público, eu e outro espectador nos entreolhamos e ficamos na expectativa do que viríamos a experienciar. As atrizes solicitaram que nós tirássemos os nossos calçados e abrigos, que os mesmos fossem deixados em alguma cadeira da primeira fila do teatro e que nos deitássemos nas respectivas macas que estavam no palco. Depois de estarmos confortavelmente e em estado de “repouso”, somos cobertos com mantas que nos deixam mais aquecidos e as atrizes solicitam que fechemos os nossos olhos para recebermos da maneira mais tranquila e relaxada possível a “história” que virá. As atrizes/massagistas/performers, simultaneamente, performatizam, com cada um de nós, os dois espectadores, um roteiro dramatúrgico que assistimos, ou melhor, presentificamos, vivenciamos – sentimos e experienciamos – com elas. No período de aproximadamente uma hora daquele dia frio, recebemos cada nuance e estímulo sensoriais das microcenas proporcionadas pela performance/massagem.
O nome do espetáculo é bem sugestivo – “Pupa, panela, pupila. Uma massagem de visão” –, pois nos coloca, como espectadores, diante de um roteiro dramatúrgico que explora, por meio de nossas corporeidades, as relações sensoriais, investigando as possibilidades oferecidas por nossa face, com as particularidades evocadas por meio do contato e toque de nossos olhos, pálpebras, cílios, sobrancelhas, boca, nariz, queixo, pescoço e ouvidos. Cada atriz/massagista leva o seu espectador a experimentar cenas de uma dramaturgia sensorial, conduzindo-nos, por meio do toque e da voz, a outros tempos e espaços. Recebemos comandos sussurrados para fechar os olhos, para aguçar os nossos sentidos, escutamos alguns depoimentos de pessoas sobre situações distintas, ouvimos músicas e as sonoridades proporcionadas a partir do som de instrumentos caseiros – colheres, vasilhas, tampas de panelas, conchas etc. – que vão sendo manipulados enquanto nossa face os recebe a partir das mãos que tocam os nossos rostos e nos massageia. Fim do primeiro ato… (sussurra a atriz/massagista em meu ouvido); depois: fim do segundo ato; e mais adiante é possível ouvir: fim do terceiro ato.
Assim, experienciamos quase uma hora de múltiplas partituras textuais que nos serão presentadas/sussurradas até o desenlace da peça – ao final do décimo ato –, quando também recebemos massagens nos pés e em outras partes do nosso corpo para chegarmos ao destino final da viagem, cada qual, no (seu) porto. A performer sussurra aos nossos ouvidos que chegou o momento de ancorarmos, convida-nos a tomar uma porção de vitamina C e saem de cena, deixando-nos no espaço, para que cada um se recomponha da experiência vivenciada.
Como espectador de uma proposta tão inusitada, ao final do espetáculo, senti uma explosão de sensações sinestésicas, fiquei um certo tempo deitado até abrir os olhos, quando pude, novamente, observar o espaço e vi o outro espectador também se recompondo, calçando os sapatos e vestindo o seu abrigo. Devo aclarar que não tive a oportunidade de conhecer a pessoa que comigo completava o público presente dessa sessão do trabalho. Não tivemos como dividir nossas impressões sobre o espetáculo, mas pude presenciar o seu sorriso, o seu olhar de afetividade e agradecimento para com a sua atriz/performer/massagista. Também me recompus, cumprimentamo-nos amigavelmente e ambos saímos extasiados do teatro. A performance tinha cumprido com os seus objetivos.
O outro trabalho que chamou a minha atenção foi a Misa Patológica, performance de Leo Bassi, que assisti no dia 26 de maio, na Iglesia Patólica, espaço sediado em Lavapiés, um bairro multicultural, com suas ladeiras e ruas em estilo medieval, uma comunidade na qual, além de madrilenhos, vivem pessoas de diferentes localidades mundiais e milhares de latinos.
- Amarás o bom humor acima de tudo.
- Não se levará a sério (essa também é a chave dos palhaços).
- Santificarás a festa.
- Honrarás a liberdade de expressão (e eu acrescento, mesmo que o outro seja um babaca).
- Não matarás, mas sou palhaço e digo, exceto de risos.
- Não cometerás atos impuros (tenho 72 anos e não sei o que são atos impuros… então eu acrescentei: não cometerás atos impuros, se não são divertidos).
- Não roubarás.
- Não permitirás pensamentos racistas.
- Respeitará o planeta e toda a sua biosfera.
- Fará de sua vida uma ode à alegria e ao amor.[2]
Esses são os dez mandamentos patólicos, segundo a concepção Leo Bassi e que são repetidos em todas as suas performances recebendo o aplauso e o entusiasmo do público ávido para receber cada palavra trazida pelo performer-bufão, que vai acrescentando reflexões à sua homilia performática com frases repletas de ironia e muitas críticas a várias questões políticas. Sua performance, pautada no humor com um ato libertário, traz suas vivências de uma prática de anos como ator-performer-clown.
Como é comum em todas as suas performances, Bassi pergunta se alguém da plateia que batizar (lembrando que na sua Igreja Patólica ele também já celebrou casamentos de inúmeras pessoas) e, imediatamente, uma jovem se adianta e diz que sim, que esse era o seu desejo. Todos aplaudem, Bassi diz palavras irônicas descrevendo a importância daquela ação como um ato libertário, como uma forma de despir-se das amarras sociais e instrui a jovem a, lentamente, se oferecer uma torta na cara, o que ela o faz com muito entusiasmo oficializado o rito de seu batismo, enquanto a plateia, também entusiasmada e aplaudindo, repete fortemente as palavras-oração: “quá-quá-quá”…
No dia em que assisti a Misa Patólica havia pessoas não só da Espanha, mas também de outros países como Argentina, Áustria, Brasil e México, Argentina, o que atesta a popularidade de Bassi no universo artístico e como influência na cena performativa e relacionadas com a bufonaria de outros países. A maioria dos presentes no espaço, assim como eu, além de assistir a performance do artista, tinha o interesse em conhecer o espaço, o teatro/igreja, um espaço pequeno e acolhedor, que comporta cerca de 30 pessoas, que ficam bem próximas umas das outras. Julia Guimarães já escreveu um excelente olhar crítico sobre o trabalho de Bassi, no qual apresenta suas considerações sobre o espaço:
Situada em Lavapiés, emblemático bairro da cultura dissidente de Madri, a Igreja Patólica de Leo Bassi é herdeira dos valores iluministas, defensora do ateísmo e da dimensão sagrada do riso. Embora a teatralidade barroca que adorne a capela seja um ponto comum com o catolicismo, os “santos” presentes no altar não deixam dúvida quanto ao projeto político-artístico do espaço: seus ícones são pessoas que, na visão de Bassi, colaboraram para a humanidade, como Chaplin, Voltaire, Gandhi, Nietzsche, Mae West.[3]
A missa é construída como uma manifestação performativa, onde o público, assim como os fiéis no rito religioso cristão, cumpre com o papel fundamental que o ato performático/religioso seja concretizado. Em sua missa dominical, seguindo a estrutura dos sermões das igrejas católicas, Leo Bassi conversa com seus espectadores/fiéis sobre vários temas, refletindo, sempre a partir de um tom em que reina a ironia, o humor e o sarcasmo algumas questões sociopolíticas e sua preocupação com o meio ambiente.
Da performance de Bassi, um momento esperado e que chama a atenção é a cena clássica em que ele, ao som de uma música instrumental, segura um taça com água, evoca Don Simon (uma marca de vinho tinto muito famosa e popular da Espanha) e transforma a água em vinho: “A benção da quarta missa do dia 26 de maio do ano de 74 mil e nove: em nome do pato, do ovo e do espírito ganso…”.[4] Bassi é ovacionado pela audiência presente em sua Igreja Patólica e, ainda, segurando uma dessas vassourinhas típicas de lavar os vasos sanitários dos banheiros caseiros, introduz o objeto num recipiente com água – benta? (a mesma vassoura que é utilizada como escova de dentes, causando gargalhadas entre os presentes) –, que é aspergida sobre as pessoas ao toque de uma sineta.
Ao final da performance o artista invita a todos os presentes a visitarem o espaço, o seu tempo sagrado e profano do humor. Um espaço pequeno que é repleto de imagens, relíquias, patos de diversos tipos e tamanhos, lembranças e souvernirs que remetem a diferentes localidades pelas quais o artista passou, inclusive vários objetos oriundos do Brasil.
Por fim, gostaria de tecer alguns comentários sobre o espetáculo Kill me, de Marina Otero, que assisti no dia 19 de junho, na Sala Verde do Teatros del Canal. Sobre os outros trabalhos da atriz-performer, eu já tinha visto a obra Fuck me na programação da Mirada Festival Ibero-americano de Teatro, que aconteceu em Santos, em setembro de 2022; um trabalho que despertou diferentes olhares e comentários por parte do público e críticos presentes no Festival.[5] Em relação ao novo trabalho, Otero comenta:
Kill me (2024) é a continuação do Love me (2022) e Fuck me (2020), por sua vez, faz parte do projeto “Recordar para viver”, no qual pretendo apresentar diferentes versões de obras até o dia da minha morte.
Entrando no clichê da crise dos quarenta, comecei a filmar tudo o que fiz: com o coração aberto 24 horas por dia, eu registrava tudo. Até que um dia eu desmaiei, eles me deram um diagnóstico psiquiátrico e decidi fazer disso o meu próximo trabalho. Convoquei quatro dançarinos com transtornos mentais e Nijinsky, para fazer uma peça que fala sobre loucura pelo amor.
Mas digamos que a questão é sobre saúde mental para entrar na agenda inclusiva do mercado da arte. Porque essa é a minha condenação, ter que fazer obras que vendam para me manter viva no mundo (do teatro).[6]
Não pude assistir a Love me e, portanto, meu olhar diante da trilogia da artista é incompleto e, por sua vez, fragmentado. Não obstante, a partir dos dois espetáculos assistidos e também com base na fala da atriz transcrita, observo que as obras Kill me e Fuck me conversam em alguns aspectos quando penso na trajetória artística da diretora, atriz, dançarina e performer.
Novamente, são vistos corpos nus em cena. Se em Fuck me, a artista seleciona cinco atores/bailarinos homens para dividirem a cena com ela, em Kill me, ela mantém a mesma estrutura, mas rompe em relação ao formato, pois é realizada uma audição por meio da qual são escolhidas, desta vez, quatro mulheres totalizando com ela, novamente, o número de cinco intérpretes. Entretanto, Otero elege também um homem para ser integrado à montagem. Assim, nesta obra, dividem o palco com Marina Otero as artistas Ana Cotoré, Josefina Gorostiza, Natalia Lopéz Godoy, Myriam Henne-Adda e o artista Tomás Pozzi, o único escolhido sem passar pela audição, segundo a diretora. As intérpretes são selecionadas pelas suas particularidade em relação a algum tipo de transtorno. Todas excelentes dançarinas e com habilidades específicas que são exploradas na dramaturgia e nas cenas: uma apresenta domínio completo sobre os patins, outra discute a relação de seu corpo com a dança clássica, outra toca piano e tem uma voz preciosa que emociona o público cantando em vários momentos da representação, especialmente, quando canta uma das canções memoráveis de Edith Piaf.
Kill me é extremamente performativo e imagético. Mais uma vez, como em Fuck me, o espetáculo começa exibindo um (longo) vídeo em que a atriz – se utilizando, novamente, das estratégias da autoficção – apresenta fragmentos de imagens e passagens que autorreferenciam suas relações com o mundo e com os outros, mais especificamente, trazendo as contradições de um “mal de amor”, projetado na persona/personagem nomeada como Paulo. Nesse vídeo, o espectador começa a criar pontes para entender a dramaturgia que virá. Assistindo ao vídeo, há frases que se destacam como “la ficción una vez más sacándome del polvo” (a ficção mais uma vez me tirando do pó); “era un hielo, seducía, seducía y todos lo creían” (era como gelo, seduzia, seduzia e todos acreditavam nele); ou “era encantador en público, pero en privado hiriente” (ele era encantador, em público, mas ofensivo, no privado). Assim, com a interrupção e a partir desse vídeo, o espetáculo ganha o palco do teatro e as intérpretes entram em cena nuas, usando uma peruca com o cabelo ruivo e cantando. A partir dessa primeira cena, o espetador se deparará com muitas imagens que geram rupturas e discursos fragmentados:
- uma cena em que todas dançam uma coreografia com passos marcados e empunhando uma arma;
- uma das intérpretes se senta ao piano e toca, enquanto as outras repetem coreografias com a arma até que uma dela se destaca debatendo-se no solo, até que todas têm o seu momento de se debater no solo;
- entra o dançarino que interpretará Nijinsky, Tomás Pozzi, vestido com uma calcinha confeccionada para o seu tom de pele e, na qual, foram colados pelos pubianos;
- Marina Otero faz xixi num vaso em que há uma flor artificial e no qual está escrito “narciso”;
- entra uma dançarina com asas de anjo e sobre patins de quadro rodas;
- as intérpretes, cada uma a seu tempo, vai retirando as perucas ruivas e revelando seus cabelos “naturais”;
- uma música é tocada ao piano, enquanto Marina Otero fala compulsivamente;
- discursos, discursos, discursos…;
- “por eso bailo, para poder caer” (danço para poder cair);
- “57 años y no tengo valor para suicidarme” (tenho 57 anos e não tenho coragem de me matar).
Ao longo do espetáculo, o elenco vai construindo um tipo de altar, no qual vai deixando (depositando) um objeto “especial”, depois que cada intérprete realiza sua cena/solo e que, por meio de seu corpo dançante, discute as implicações de seu transtorno na sua vivência pessoal e dentro da concepção dramatúrgica/espetacular da montagem. Nessas cenas, são trazidos para o palco alguns depoimentos pessoais do elenco e também as partituras corporais que demonstram a qualidade técnica dos artistas. À direita, bem à frente do palco o público poderá identificar os objetos que comporão o altar: uma vela, pétalas de flores, o vaso com o narciso, os patins, as asas do anjo, a peruca… Uma grande ficção?
As ambiguidades trabalhadas e experimentadas em Fuck me, em outra perspectiva, agora não mais a partir do fragilidade corporal da performer e dos corpos viris (joviais, musculosos, vigorosos) dos bailarinos, se fazem presentes em Kill me, mas, neste trabalho, por meio de outra perspectiva dramatúrgica, buscando acessar outra poética, não mais a virtuose do corpo masculino em relação à corporeidade da artista, mas de uma poética do sofrimento que busca refletir sobre a saúde mental, os diferentes tipos de transtornos (anorexia, bipolaridade, esquizofrenia, TLP – transtorno de personalidade limítrofe etc.) e as possíveis relações provocadas pelos sentimentos humanos, amor, desejo e as pulsões de vida e de morte. Assim, a ideia de suicídio e o tema da saúde mental são expostos e discutidos cenicamente nessa nova proposta de Marina Otero.
O dia em que vi Kill me, depois da apresentação, houve uma rápida conversa com Otero e o elenco, onde cada intérprete comentou sobre a sua relação com a obra e sobre a exposição de seus transtornos pessoais. Eu comentei com a diretora que havia assistido a Fuck me e lhe perguntei sobre o porquê de, nesse espetáculo, ela ter optado por um elenco masculino e agora, no novo trabalho, a inversão trazendo para a peça um grupo de mulheres, com apenas um ator. Otero me respondeu que, em Fuck me, ela tratava de sua obsessão com o sexo masculino, já em Kill me lhe interessava, por um lado, trabalhar com o feminino, porque já havia tratado muito sobre o masculino e tinha o desejo pessoal de atuar com um grupo de mulheres, mas também porque queria refletir sobre certos preconceitos relacionados com a questão da loucura em relação às mulheres. Parecia-lhe que era melhor trabalhar a partir daquele tipo de preconceito embasado na ideia de “a louca”, “a histérica”, e por isso, era interessante que fossem todas mulheres, pois queria trabalhar esses temas. E com Nijinsky, porque queria que ele, como pessoa, também estivesse presente no trabalho. Em certo sentido, a explicação de Marina Otero é condizente com o que o espectador vê em cena nessa obra.
Os três espetáculos aqui descritos cumprem com o objetivo de apresentar um breve panorama da cena performativa que tive a oportunidade de assistir em Madri no primeiro semestre de 2024. Como já explicitei, pude ver trabalhos muito interessantes e que mereceriam também leituras analíticas. Não obstante, para este momento, interrompo minhas reflexões, ciente de que me debruçarei sobre outras peças vistas na cidade, principalmente, aquelas que pleiteiam questões relacionadas às temáticas afrocentradas, discutindo aspectos sobre as identidades, o racismo e o antirracismo, a religião e a ritualidade, entre outros aspectos que as colocam dentro da perspectiva dos teatros negros e das produções pretas que são produzidas no contexto belo-horizontino e brasileiro. Esta discussão, entretanto, será empreendida em um futuro texto.
Fichas Técnicas
Pupa, pupita, pupila. Un masaje de la visión
Masajistas: Leticia Morales e Idoia Zabaleta
Voces: Camila Tellez, Miriam Inza y Ainara Legardón
Se escucha: The Most Dramatic Panda EVER de María Benito y An acoustic balad de Ode Aseguinolaza del album “Stolen Voices”
Misa Patólica
Concepção, direção e interpretação de Leo Bassi
Kill me
Texto y dirección: Marina Otero
Intérpretes: Ana Cotoré, Josefina Gorostiza, Natalia Lopéz Godoy, Myriam Henne-Adda, Marina Otero y Tomás Pozzi
Música en vivo: Myriam Henne-Adda
Asistencia en la dirección: Lucrecia Pierpaoli
Diseño de iluminación y espacio: Víctor Longás Vicente y David Seldes
Diseño de sonido: Antonio Navarro
Diseño de vestuario: Andy Piffer
Sastra: Guadalupe Blanco Galé
Dirección técnica e iluminación en gira: Víctor Longás Vicente
Dramaturgista: Martín Flores Cárdenas
Fotografía: Sofía Alazraki
Vídeo: Florencia de Mugica
Técnico de sonido: Sandra Vicente Perea
Programador de Iluminación: Jesús Díaz Cortés
Producción general y ejecutiva: Mariano de Mendonça
Asistencia en la producción: Kysy Amarante Fischer
Distribución: Otto Productions (Nicolas Roux, Lucila Piffer), Tecuatro (Jonathan Zak, Maxime Seugé) y PTC Teatro (Olvido Orovio)
Coproductores: Teatros del Canal (Madrid), HAU Hebbel am Ufer (Berlín), Cité européenne du théâtre, Domaine d’O, Montpellier/ PCM2024, Théâ tre du Rond-Point (París), Célestins – Théâ tre de Lyon, Théâ tre des Célestins (Lyon) y FITEI Festival Internacional de Teatro de expressão Iberica (Porto)
Apoyos: Residencia artística de la Casa Velázquez del Ministerio de Educación Superior e Investigación de Francia, FITLO Festival Iberoamericano de Teatro de La Rioja y Museo de Arte Moderno de Buenos Aires: El Borde de sí mismo.
[1] Minha tradução do original: “Pides cita, llegas al centro, te recibe una persona, te invita a tumbarte en una camilla al lado de una mesa con pequeños objetos y alguna pastilla. Que si hace calor, que si una manta, te pide que dejes caer los ojos, que los abandones en el fondo del cráneo y que le ofrezcas los párpados. Claro, es un acto de generosidad y disposición a la aventura. A partir de ahí, se apagan las luces y comienza un masaje singular que te recuerda que en sueños continúas viendo. El masaje durará una hora, el teatro también, el sueño, sin embargo, será más breve. Para entonces habremos llegado a puerto.”
[2] Texto transcrito a partir da gravação de Bassi performatizadas em espanhol: “1. Amarás el buen humor sobre todas las cosas. / 2. No te tomarás a ti mismo en serio (esto también es la clave de los payasos). / 3. Santificarás la fiesta. / 4. Honrarás a la libertad de expresión (yo pongo, incluso si el otro es gilipollas). / 5. No matarás, pero soy payaso y pongo, excepto de risas. / 6. No cometerás actos impuros (tengo 72 años y no sé lo que son actos impuros… entonces yo he puesto: no cometerás actos impuros si no son divertidos). / 7. No robarás. / 8. No consentirás pensamientos racistas. / 9. Respetará el planeta y toda su biosfera. / 10. Harás de tu vida una oda a la alegría y al amor.
[3] Confira a íntegra da crítica de Julia Guimarães, publicada no site do Horizonte da Cena, no link https://www.horizontedacena.com/o-ativismo-patolico-de-leo-bassi/.
[4] Tradução minha de “La bendición de la cuarta misa de 26 de mayo de 74 mil y nueve: en nombre del pato, del huevo y del espíritu ganso…”
[5] A obra foi comentada no primeiro episódio do Podcast do Horizonte da Cena, a gravação de uma conversa realizada a partir de espetáculos apresentados no Mirada 2022. A discussão pode ser escutada (31:58 – 45:00), acessando o link: https://open.spotify.com/show/58ZYxPWSrHsoDg8OEJDdfV.
[6] Tradução minha do texto original em espanhol: “Kill me (2024) es la continuación de Love me (2022) y Fuck me (2020), a su vez es parte del proyecto “Recordar para vivir”, en la cual me propongo presentar diferentes versiones de obras hasta el día de mi muerte. Entrando en el cliché de la crisis de los cuarenta empecé a filmar cada cosa que hacía: con el corazón abierto las 24 horas registraba todo. Hasta que un día colapsé, me dieron un diagnóstico psiquiátrico y decidí hacer con eso mi próxima obra. Convoqué a cuatro bailarinas con trastornos mentales y a Nijinsky, para hacer una obra que hable sobre la locura por amor. Pero vamos a decir que el tema es sobre salud mental para que entre en la agenda inclusiva del mercado del arte. Porque esa es mi condena, tener que hacer obras que se vendan y así mantenerme viva en el mundo (del teatro).”