– por Felipe Cordeiro-
Esta crítica integra a cobertura da 16ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH) e foi escrita a partir do espetáculo “As cores da América Latina”, do grupo manauara Panorando Cia e Produtora, apresentado no Teatro Francisco Nunes
A obra As cores da América Latina, da Panorando Cia e Produtora (2016), sob direção de Fábio Moura, apresentada na 16ª edição do FIT-BH, traz logo em seu nome uma conexão inseparável com a América Latina. Ainda que grande parte da programação também seja fruto de produções realizadas nessa porção do continente – a única exceção é o espanhol “Papers!” – há algo que distingue a proposta das outras peças. Em virtude disso, podemos nos perguntar: para além de ser produzido na América Latina, o que seria um teatro de caráter latino-americano?
Fotos: Hamyle Nobre e Fábio Moura
Contextos latino-americanos
Compreender a produção teatral latino-americana, conforme sinalizou o teatrólogo guatemalteco Manuel Galich, na abertura do livro Nuestros primeros padres (2004), envolve reconhecer que os latino-americanos são fruto de uma tripla e violenta miscigenação entre indígenas, europeus e africanos. Passados mais de cinco séculos, o teatro tem sido uma das principais manifestações culturais a buscar ferramentas e expressões para compreender nossas identidades, mesmo sendo um dos campos de saber mais negligenciados na historiografia da região.
No entanto, apesar de todas as nossas histórias diacrônicas, é fundamental considerar o “viés marginal do teatro latino-americano como espaço ativo – metafórico e imaginal – de resistência e questionamento de injustiças e da ordem estabelecida pelo poder autoritário”.[1] Diversos historiadores já destacaram que a América Latina esteve interligada em diferentes momentos da história, como no período pré-colombiano e nos movimentos de independência. Soma-se a isso as similaridades entre suas colonizações ibéricas, a formação dos Estados, a simultaneidade das ditaduras civis-militares do século XX, a circulação de ideias e pessoas, bem como práticas políticas, questões sociais e étnicas, produção cultural e perspectivas religiosas.
Por isso, para o teatrólogo equatoriano Franklin Rodriguez Abad, uma das premissas fundamentais na construção de modelos explicativos do nosso teatro é considerar o continente latino-americano como uma grande “unidade na diversidade”, levando em conta que a unidade, dialeticamente entendida, “não é a unidade do mesmo, mas do diferente” (Rodolfo M. Agoglia). Há formas estéticas que coexistem, cada uma recebendo um tipo de valoração e legitimação estética e histórica.
A partir dos ideais revolucionários de Simon Bolívar (1783-1830), que visava uma perspectiva global para a América Latina, diferentes gerações buscaram soluções integracionistas para problemas regionais. Muitas vezes, é comum falar sobre “cultura latino-americana” mesmo quando nos referimos a um país ou região específica. O mesmo ocorre com o surgimento de determinados sujeitos históricos como protagonistas do drama latino-americano em diferentes épocas. Podemos citar nomes emblemáticos como Griselda Gambaro, na Argentina; Santiago García, na Colômbia; Augusto Boal, no Brasil; Miguel Rubio, no Peru; Eugenio Hernández Espinosa, em Cuba; Rodolfo Usigli, no México, entre outros.
Com base em proposições como essas, Abad conclui que o teatro latino-americano não pode estar determinado exclusivamente por sua origem geográfica e fatores linguísticos, “senão pela identificação concreta do discurso e da imagem teatral com a história, a cultura e a libertação latino-americana”.[2] Para o pesquisador, podem ser consideradas expressões do teatro latino-americano, inclusive, produções das minorias latino-americanos que vivem nos EUA, bem como o teatro chicano ou o teatro de exílio (seja ele forçado ou voluntário).
De modo semelhante, Galich (2004) afirma que só a partir dos anos 1960 se produziu um grande movimento de renovação e afirmação do teatro latino-americano, pois, até então, só se podia falar nesse teatro como exceção. A produção desse período foi denominada de Novo Teatro Latino-Americano. Vivian Martinez Tabares afirmou que essas produções teatrais são geralmente dirigidas por um mestre que combina qualidades pessoais com uma visão singular do teatro. Esses diretores seguem uma orientação ideológica e estética específica, interessando-se por encenar uma dramaturgia nacional que aborda os desafios da realidade contemporânea. Tabares destacou ainda que esses encenadores sustentaram uma ética de sobrevivência e um modelo de desenvolvimento pessoal e coletivo, praticando um sistema de ensaio próprio e validando o processo de criação como uma fase tão crucial quanto o resultado final confrontado pelo espectador.
Sendo assim, é preciso nos concentrarmos em alguns pontos de referência, naqueles acontecimentos históricos que alteraram os setores produtores dos objetos culturais e, em consequência, a construção dos imaginários virtualizados nas obras, nos códigos estéticos e teatrais legitimados.
As cores da América Latina
A estética da Panorando, graças à formação de seus membros, estabelece um diálogo profícuo entre a dança, o teatro e as artes visuais. O espetáculo As cores da América Latina, inspirado nas manifestações culturais Fiesta de la Tirana (Chile), Huaconada (Peru) e Cavalo-Marinho (Brasil), combina dança e teatro em performances marcadas por uma estética visual de cores fortes e vibrantes, com personagens utilizando máscaras de Fofão, tradicionais do carnaval de São Luís do Maranhão, bem como outras variações. A companhia já apresentou essa obra em diversos festivais nacionais e teve o espetáculo reconhecido com o 34º Prêmio Shell de Teatro, na primeira edição da Categoria Destaque Nacional, entre produções que estrearam em 2023, sendo o primeiro da Região Norte a receber uma indicação para o prêmio.[3]
Há uma citação de Abad, publicada no livro Poética del Teatro Latinoamericano y del Caribe (1994), que, apesar de ter sido escrita antes mesmo do nascimento de parte dos membros da Panorando, encontra um diálogo direto com o espetáculo. Ao discutir as poéticas de nossa região, o pesquisador destaca a diversidade de formas e correntes estéticas no teatro latino-americano, resultante da fusão cultural intercontinental, produto de interação cultural entre diversos povos, raças e culturas – também marcada por violências e apagamentos. Ele apontou que essa cadeia de mutações e sincretismos, descrita por Alejo Carpentier como “barroca” e marcada pelo “real maravilho”, torna difícil estabelecer parâmetros comuns para analisar o fenômeno teatral na região.[4]
Digo isso porque, em cena, vemos pernas de pau; centenas de fitas de cetim colorido formando andores, cortinas, véus, e adornos para o cenário e os atuantes; o uso de diversos tipos de mascaramento (base neutra, chapéus, Fofão e outros); e uma trilha sonora multifacetada com percussões, tambores, metais, sopro, corda, sanfona, rabeca, pandeiro, ganzá, reco-reco, maracas e zabumba. As manifestações populares incluem forró, tambor de crioula, frevo, folguedos dos Bois da região Norte e Nordeste, variações do Maracatu, entre outras expressões multiculturais. Os tambores, trompetes e sanfonas da festa La Tirana, o evento religioso mais famoso do Chile, que mistura elementos da população indígena andina com as máscaras do carnaval chinês, encontram ecos nas produções das culturas afro-indígenas brasileiras, atravessando também as coreografias religiosas e mascaradas da Huaconada dos Andes peruanos.
A influência da Huaconada é evidente, com referências aos huacones que saem às ruas no início de cada ano para impor ordem, vestidos com trajes tradicionais, máscaras e portando chicotes. A complexidade da dança, com suas raízes nas culturas puquinas, aimaras, quechuas e xauxa-huankas, reflete uma prática ancestral com mais de 1.500 anos de existência. Elementos de jogo de status, como a bruxa que rouba um bebê, mas é repelida pelos seres encantados, enriquecem a narrativa, tornando o espetáculo uma celebração vibrante e multifacetada da cultura latino-americana.
Logo, vemos uma produção que remonta não apenas à profusão de formas, cores e ritmos das festas populares latino-americanas, mas também à unidade desses povos e países muito antes da criação de nossas fronteiras imaginárias. Observamos performances rituais que evocam os primórdios dos próprios conceitos de teatralidade, seja na concepção grega, asiática ou africana, da louvação ao divino. Corpos que se expressam dramaticamente por meio de ritmos, situações dramatizadas, ornamentações, jogos e brincadeiras, e a celebração do corpo em festa.
Como destacou a jornalista Soraya Belusi durante o debate pós-apresentação, o espetáculo propõe um olhar sobre a América Latina através da lente do popular e da alegria, desviando do foco recorrente em tempos ditatoriais e pós-ditatoriais que enfatiza dor, miséria e sofrimento. O grupo busca resgatar uma dimensão lúdica da cultura por meio de manifestações vivas e pulsantes, transformando a coreografia em um movimento orgânico e brincante. Utilizando-se de suas formações em circo, danças urbanas, folclóricas e clássicas, o corpo cênico atua tanto em espaços públicos como ruas, praças, terreiros e teatros, criando uma ode à alegria e ao diálogo entre o tradicional e o urbano, destacando-se pelas cores e pela diversidade que estas representam.
A atmosfera proposta pelo espetáculo inspira-se em tecnologias ancestrais tanto próximas quanto distantes geograficamente, explorando uma teatralidade ampla que se destaca especialmente pela intermidialidade, amalgamando imagem, som e movimento. Demonstra-se, assim, que essas fronteiras podem ser menos rígidas do que imaginamos. A obra resgata o passado, mas também catalisa o presente e lança olhares para o futuro de seus espectadores. O patrimônio latino-americano é absorvido e reinterpretado de forma antropofágica, constantemente lembrando que as forças do passado podem ser tão inovadoras quanto as vanguardas contemporâneas.
A maestria física, sonora e imagética da Panorando torna difícil permanecer imóvel na cadeira do teatro. O espetáculo encanta e provoca, por meio de suas múltiplas vozes, cores e línguas, convidando o público a uma imersão profunda nas tradições culturais e artísticas da América Latina. A performance dos bailarinos se destaca ao ocupar todos os planos da cena, desde os altos, baixos e médios, até as intervenções cênicas que atravessam a plateia. Eles se movem fluidamente por cada canto do palco, criando um dinamismo contínuo que mantém a atenção do espectador.
A cenografia e a iluminação são elementos cruciais na ambientação do espetáculo, recriando uma cidadezinha bucólica do interior. O cenário é composto por um painel coberto de tecidos de diferentes padrões, atravessado por um varal de pequenas luzes redondas em tom ambarado. O uso de fumaça e recortes de luz desenham o ambiente, alternando entre a claridade e cenas mais soturnas. Os figurinos, inspirados na tradição do Cavalo Marinho, são coloridos e adornados com franjas dançantes, incluindo os arcos de flores característicos, utilizados em diversas variações de movimento. Os atores, com seus corpos completamente cobertos e rostos mascarados – inicialmente com um pano que serve como base para outras sobreposições de máscaras –, transformam-se em seres híbridos e encantados, sem gênero definido, evocando uma aura de mistério e magia.
A coreografia do espetáculo incorpora movimentos inspirados em animais e ritmos do continente latino-americano, enraizados em um sincretismo musical. Gestos cotidianos são elevados a passos de dança por meio de oscilações rítmicas e corporais, evocando o teatro popular que celebra o mundo rural e sertanejo no Brasil, ao mesmo tempo em que se alimenta de tradições andinas e das regiões desérticas do Atacama.
Em suma, um espetáculo como As cores da América Latina dialoga com a transformação do teatro latino-americano, muitas vezes limitado à imitação de modelos hegemônicos europeus e norte-americanos, destacando um movimento significativo em direção à valorização das próprias culturas e tradições. O avanço do teatro contemporâneo e a reivindicação das culturas marginalizadas pelo colonialismo desafiaram padrões tradicionais, permitindo o reconhecimento das teatralidades pré-colombianas, como exemplifica essa produção da Cia Panorando. Companhias teatrais comprometidas com a realidade local desenvolvem encenações que refletem as complexidades sociais e políticas da América Latina, valorizando tanto o processo de criação quanto o resultado final. Esse teatro contemporâneo, ao reconfigurar suas estratégias, integra elementos da cultura popular em suas práticas, ao mesmo tempo em que reflete criticamente sobre o papel do artista latino-americano em um cenário cada vez mais cosmopolita.
Referências
ABAD, Franklin Rodríguez. Poética del Teatro Latinoamericano y del Caribe. Quito: abrapalabra editores, 1994.
GALICH, Manuel. Nuestros primeros padres. Havana: Casa de las Américas, 2004.
PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2018.
TABARES, Vivian Martinez. Teatro na América Latina. Enciclopédia Latinoamericana. Disponível em: https://latinoamericana.wiki.br/verbetes/t/teatro Acesso em: 28/jun./2024.
[1] Abad, p. 14. Esta e todas as outras traduções presentes nesta crítica são de minha autoria.
[2] p. 18. Tradução minha.
[3] Neste mesmo ano o Ateliê 23 também foi indicado.
[4] p. 13.